Succession, a irresistível Dinastia dos Destroços
Para o Blog da Boitempo, o psicanalista André Alves analisa como a série Succession é um tributo ao mantra freudiano de recordar, repetir e elaborar.
[Atenção, spoilers na pista. ⚠️]
Nos últimos meses, boa parte da internet esteve fixada em um assunto: o futuro da família Roy. Protagonistas de Succession, série da HBO, os Roy são uma espécie de família real dos EUA cujo patriarca passa quatro temporadas comandando um torturante jogo de sucessão com seus filhos. Só que aqui, nosso Rei Lear chama-se Logan Roy, vive na Nova Iorque do século XXI e seu império é o conglomerado Waystar Royco, um reinado que está por um fio.
Muita gente fala sobre como a série é inspirada em Rei Lear, uma das grandes tragédias de William Shakespeare. Espelhamento esse que, segundo alguns fãs, inclusive nos dava pistas de como a aclamada última temporada da trama iria acabar. Tragédia das clássicas, as cenas de Rei Lear ecoaram na história da psicanálise, comentadas por Freud e Lacan. Enquanto isso, muitas cenas de Succession ilustram com precisão conceitos psicanáliticos como o falo, o complexo de Édipo e trauma. Mas penso que a série criada por Jessie Armstrong é mesmo um tributo ao mantra freudiano de recordar, repetir e elaborar.
Repetição é um dos conceitos mais fundamentais da psicanálise, uma ideia que ganhou novos contornos em 1920, quando Freud desenvolve a pulsão de morte em Além do Princípio do Prazer. Resumindo bastante, o caráter compulsivo da repetição está, geralmente, ligado a afetos que não encontram representações e, assim, acabam projetados a esmo, furiosamente. O sujeito segue então reeditando novas edições de acontecimentos traumáticos. Tudo isso nos interessa porque, na essência, a sucessão é também uma questão de repetição, um esquema de retransmissão do sangue e, com sorte, dos valores de uma família. A grosso modo, a sucessão é uma aposta de que “nós, iguais” somos as pessoas certas para seguir dominando, controlando, reinando – e, claro, enriquecendo. Dessa forma, Succession nos mostra o sentido de continuação da sucessão, uma tentativa de reverberação e reincidência.
Só que as três crianças quebradas de Logan estão presas demais na repetição de seus conteúdos traumáticos para que possam dar seguimento à dinastia Roy. Por quatro temporadas, Kendall, Siobhan-Shiv e Roman dançaram a mortífera ciranda da compulsão à repetição. Kendall e Roman vs. Shiv; Kendall vs. Shiv e Roman; Kendall, Roman e Shiv vs. Tom e Greg; Kendall e Greg vs. Shiv vs. Tom. Os 39 episódios transbordam manipulações, golpismo, intrigas, traições, reconciliações e frustrações, nenhuma das quais transformou os personagens ou fez suas histórias efetivamente progredirem. E, assim, terminam seus arcos em lugares muito semelhantes àqueles em que estavam no começo da primeira temporada.
A repetição, no entanto, me parece ser um dos ingredientes de sucesso da série, assim como de tantas histórias que caem nas graças do público. Ao invés de repetitiva, a saga de fracassos e frustrações dos Roy oferece ao espectador uma generosa porção de satisfação.
O sucesso de Succession
Assistir à miséria dos bilionários trapaceiros nos proporciona uma espécie de desprezo recreativo. Ainda que consigamos nos conectar com a miséria afetiva desses personagens tão incapazes de estabelecer e cultivar vínculos, diminuímos o crédito do sofrimento dessas pessoas porque, mesmo sofrendo, “pelo menos são bilionários”. De certa forma, ficamos céticos a esse sofrimento, um experimento fascinante de desobsessão pelos ricos, como muito bem descreveu o professor Christian Dunker.
Por outro lado, a onda recente de produtos culturais que nos incentivam a ver “como os ultraricos também sofrem” é também uma forma de convocar nosso lado mais empático, acolhedor, piedoso. Uma forma de cultivar a ideia de que “rico também é gente”, como bem apontou o Thiago Guimarães. Essa é uma estratégia muito sagaz do tecnoneoliberalismo de tirar um pouco de responsabilidade do topo da pirâmide, além de sutilmente esfumaçar a consciência de classe, como se habitássemos todos a mesma classe de “humanos”.
No balanço final, essa ambiguidade produz uma forte fixação pela série, nos dando um belo objeto para amar odiar. “O Tom é patético”, “Kendall é boy lixo, mas eu amo”, “quase senti pena do idiota do Roman”, desabafam as caixas de comentários. Se é difícil encarar nossas esquinas mais escuras e nossas partes menos nobres, Succession é o tipo de trama que nos dá um certo alívio moral, uma sensação silenciosa de “posso não ser uma pessoa muito boa, mas esses daí são muito piores”, “eu jamais faria isso” ou até mesmo “minha família é complicada, mas nossa, bem melhor que essa!”.
Assim, semana após semana, desfrutamos de um dos raros momentos em que nos sentimos superiores ao 1% mais abastado do planeta. Apostando nos potenciais vencedores e execrando os piores perdedores. E estranhando muito a possibilidade de que, ao contrário do que as mídias sociais e o mercado nos dizem, talvez dinheiro não traga tanta felicidade assim.
Para coroar, temos um passe-livre ao modelo mental da liderança corporativa, o mesmo que demite pessoas por Zoom na ficção e desempenha massacres no mundo concreto. O que torna Succesion uma serie honesta sobre os bastidores do poder. E sobre quão apodrecidas, emocionalmente precárias e sem sentido podem ser as vidas dos que tornam o poder a sua única fonte de sentido.
Falha$ Básicas
Assim como Rei Lear, Succession é uma história de amor e poder. E, assim como muitos súditos do império do gozo no qual vivemos, os Roy estão convencidos de que o poder traz o amor e o amor traz o poder. Dominação e oposições fálicas fazem parte do tecido das relações, mas há grandes prejuízos quando esses elementos se misturam demais. E os Roy são um exemplo de como os vínculos – e os próprios sujeitos – acabam esfarrapados.
Logan parte desse mundo profundamente incompreendido, tendo feito uma escolha clara e profundamente solitária entre o falo e seus filhos. Kendall tenta reencenar o pai à exaustão, numa identificação projetiva tão mortífera que a única coisa que consegue criar para si é uma situação de ainda mais desamparo. A Roman resta um niilismo absoluto, celebrado com um solitário martini que ecoa suas palavras “nós não somos nada”. E para Shiv, talvez o final mais sombrio, resta o lugar de esposa conformada de um homem poderoso, numa cena que nos mostra uma fúnebre Lady Macbeth.
As palavras do psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Jung são tão pertinentes aqui: “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina há falta de amor. Um é a sombra do outro.”
Essa sombra acompanha os três Roy em toda a trama, eclipsando sua capacidade de manter qualquer relação com o outro para além dos jogos de poder. E apesar do ritmo alucinante de Succession, a série também nos mostra os efeitos longevos dessa falta de amor.
Como propôs o psicanalista húngaro Michael Balint no texto do final da década de 1960, há algo particular em sujeitos com falhas traumatizantes do ambiente e dos objetos primários. Algo que vai produzir uma dificuldade de lidar com frustrações e inclusive de fazer ligações. Uma falha básica que embaralha a vitalidade e a destruição internas. Ousando uma análise selvagem por aqui, a abordagem de Balint nos ajuda a elaborar esses sujeitos Kendall, Roman e Shiv.
Os espaços vazios entre o pai e os filhos na abertura da série nos dão pistas de como essas infâncias se deram. Mas é quando Shiv diz que seu filho dificilmente verá a mãe e vemos Lady Caroline negar cuidado ao quase-colapsado Roman porque tem “aflição de olhos humanos”, que temos mais material sobre o tipo de maternagem e parentalidade que deu origem a esses três. Lady Caroline, aliás, poderia levar o psicanalista inglês Donald Winnicott às lágrimas, tamanha sua distância de uma mãe suficientemente boa. Não são poucas as oportunidades que ela desperdiça de oferecer algum cuidado e acolhimento aos filhos.
Esses núcleos traumáticos estão expostos, mas não são trabalhados. O que se repete é a tentativa de suplantar a ausência do amor com promessas de comando. Estamos falando de sujeitos que só conseguem comunicar suas dores por meio de desabafos, momentos que parecem ser sentidos por eles como verdadeiros desabamentos. Como vemos na briga final dos três irmãos na sala de vidro, não há espaço para a função reparativa quando se vive à beira de despencar. O que sobra de tudo isso? Uma infinidade de destroços psíquicos dentro e uma força destrutiva descomunal no mundo exterior.
Faz sentido que a rede de TV dos Roy, a ATN, seja muito boa em destruir reputações. O sistema traumático que constitui essa família produz um império às custas de destroços. E talvez também torne impossível um senso de comunidade. Ainda mais quando esse sistema trata os sujeitos de forma radicalmente desigual, sobretudo em questões de gênero.
As mulheres de Succession
Assim como o mundo corporativo, o universo de Succession sempre foi um clube de meninos. Faz sentido se considerarmos que, muitas vezes, Logan é como uma espécie de Misógeno-in-chief. Kendall chega a dizer “dane-se o patriarcado” em um dos episódios, mas o que realmente vemos é que, nos jogos de sucessão, as mulheres que sempre são escanteadas.
É como se uma das sínteses da série fosse que há lugares limitados para as mulheres no poder. O mundo fictício de Succession se aproxima do mundo real em muitos aspectos e ainda mais quando se trata do espaço que as mulheres têm. Mais um momento em que sucessão se dá pela via da continuidade, da manutenção de estruturas – psíquicas e sociais.
Se em Rei Lear o que está em jogo é como cada uma das três filhas do monarca vai herdar o reino, em Succession temos apenas uma filha. E personagens tão fortes e complexas como Marcia Roy, Gerri Kellman, Willa Roy, Jess Jordan e Lady Caroline Collingwood têm bem menos tempo de tela. Para elas, sobram sempre cenas rápidas, nas quais oscilam entre posições de subserviência, de mulheres traídas e passadas para trás ou, evidentemente, o lugar da megera. “Bruxa”, “cunt” e “bitch” são termos muito presentes nas cenas das personagens femininas, sobretudo “bitch”, a enigmática palavra da língua inglesa que significa, ao mesmo tempo, cachorra, cadela, puta e mulher forte. Quando Shiv “vence”, ela é “that bitch”. Quando Shiv perde, ela também é “that bitch”.
É no mínimo curioso que as mulheres de Succession sejam tão polarizantes, geralmente colocadas em situações que despertam a fúria das redes. A sucessão tem uma política de “todas essas pessoas são terríveis”, mas as mulheres são ainda mais terríveis. Sobretudo com outras mulheres. Cheiro de feminismo civilizatório no ar.
Um dos raros momentos de aliança entre essas mulheres acontece no velório de Logan, quando forma-se uma primeira fila só de esposas e amantes do falecido rei. Elas compartilham um momento silencioso de compreensão e perdão. Nesse mesmo velório, Shiv dá uma das melhores definições dos jogos de misoginia de Succession: Logan Roy “não conseguia colocar uma mulher inteira em sua cabeça”. De certa forma, parece que Jessie Armstrong também não. Pelo menos não tantas mulheres.
Em meio a todas as Gerris, Marcias, Karolinas e Kerrys desse universo, foi Shiv quem se tornou a porta-bandeira do que Succession tinha a dizer sobre as nuances confusas, contraditórias, limitadas e limitantes da autoridade feminina na série. O arco de Shiv é um dos mais cativantes e mais tristes de Succession devido a como grande parte da história foi diferente para ela – mais complicada – por causa de seu gênero, mesmo com todas as vantagens de sua raça, seu privilégio e seu dinheiro.
Ela é frequentemente diminuída, descredibilizada, traída e rechaçada. E nos despedimos dela em clima de catástrofe silenciosa. Sentada no banco de trás de uma SUV ao lado de Tom, Shiv pegou a mão dele com uma aceitação relutante de seu fracasso trágico. Leituras mais esperançosas da cena sugerem que ela vai domar Tom novamente. Em qualquer um dos desfechos, o recado é claro: ela pode manipular e coroar, mas nunca reinar. Como Lady Macbeth, segue condenada aos bastidores – esse é o destino de uma mulher Roy.
O que sobrou de nós?
Mesmo com ecos de masterclasse sobre a brutalidade do patriarcado, penso que a tese da série sai da boca da Shiv: “Há algum ponto positivo no pesadelo que compartilhamos?”, ela pergunta a Tom. Ela está perguntando sobre o casamento deles, mas é uma interrogação final perfeita para Succession.
O que fazer quando o jogo de sucessão acaba? Como em uma análise, entre escombros psíquicos, os Roy se perguntam sobre o que farão de tudo isso – das perdas ao que restou.
Como diz Marcia a Shiv, no enterro de Logan, “Ele partiu meu coração. E partiu o coração de vocês também”. Aqui Marcia nos dá mais uma pista de como esses não são apenas sujeitos cindidos, mas sim aos pedaços. Com o desfecho, pelo menos temos a certeza de que, dessa vez, não vai dar para varrer tudo para debaixo do tapete do recalque e começar tudo de novo. Mesmo em meio a tanta tragédia, a brutalidade do Real quebra uma parte do ciclo de repetições. Finalmente, boas notícias. Afinal, escreveu Lacan em O Sonho de Aristóteles, “não há nada mais terrível que sonhar que se está condenado a viver repetidamente”.
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André Alves é psicanalista, escritor e pesquisador de cultura e comportamento. É co-fundador da float, um instituto de estudos culturais e pesquisa comportamental, além de co-apresentador do Vibes em Análise, podcast que faz uso da psicanálise para elaborar as mudanças do nosso tempo. Apaixonado por filmes e séries, André criou a série Psicanálise Selvagem, um conjunto de videoinvestigações do que personagens ficcionais nos ensinam sobre o desejo e o mal-estar de estar vivo, inclusive os protagonistas de Succession.
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