Muito além das quatro linhas: o racismo contra Vinícius Jr.

Vinícius Jr. se tornou o bode expiatório de promoção ao engajamento de vários fascistas espanhóis e qualquer possibilidade de romper com esse ascenso não está nas suas mãos ou nos seus pés. Não se limita às quatro linhas. Requer uma mobilização coletiva de jogadores e torcedores que ainda defendem a igualdade fundamental como valor inegociável e são ardorosamente antifascistas. Greves e passeatas de jogadores... utópico? Por que não?

FOTO: QUALITY SPORT IMAGES/GETTY IMAGES

Por Douglas Rodrigues Barros

Encontrar expressões racistas no futebol não é difícil. Para os atentos à arte, há a percepção de que ele muitas vezes revela o real dos desdobramentos históricos. É possível, através dos jogadores, interpretar o capitalismo contemporâneo: Cristiano Ronaldo, por exemplo, é a encarnação da Weltanschauung (cosmovisão) neoliberal, com o corpo desenvolvido para a eficácia da jogada, a concorrência é sua última palavra e a satisfação do torcedor se prova nos gols. Messi, apesar de crescer sob tal égide, tem alguma coisa do inesperado, um lance que se cria, fora da posição exigida pelo técnico, e se revela como surpreendente num drible fantástico que põe o realismo mágico como algo démodé. Já Neymar é a expressão do neoliberalismo social do petismo: produto made in Brazil. Vivêssemos em outro tempo, eu não precisaria dizer que estou, nas linhas acima, ironizando uma conduta sectária que faz do futebol o pórtico de análises políticas tacanhas, ditas anti-imperialistas, sem respeitar a forma futebolística e sua autonomia. Brincadeiras à parte, a verdade é que o futebol, ao se colocar como espetáculo, muitas vezes recoloca o escândalo da concretude histórica, algo que preferimos enxergar como obscenidade.

E por falar em ritmo histórico, felizmente, ele é movido por dissonâncias; se o atual técnico do Valencia, ao ser alertado pelos atos de racismo contra Vini Jr., simplesmente disse foda-se; 31 anos antes, outro técnico do mesmo time, Guus Hiddink se recusou a entrar em campo enquanto uma bandeira supremacista da torcida do Albacete, time rival, não fosse retirada. Eram os idos de 1992, à época a já conservadora diretoria do Valencia quis abafar o assunto, mas Hiddink manteve sua denúncia. Tais posturas, radicalmente antagônicas no tempo, deveriam pelo menos nos indicar o alarme de incêndio soando por toda Espanha.

Que os chefes da La liga tenham acordo com partidos de extrema-direita, que o Yomus, torcida viúva de Franco, ganhou passagem livre nos estádios a partir de 2021, revela só a ponta de iceberg. Mutatis mutandis, mais importante, que a análise da dúbia moral de cartolas corruptos e de torcidas movidas por afetos ultranacionalistas, é refletir sobre o fato de que as atitudes contra Vini Jr. abrem brechas para entender problemas políticos graves na Europa. Se, ela é indefensável1 – como creio que realmente seja – vale observar que há um sintoma, na partida Real Madrid x Valencia, expressando algo fundamental. Aliás, a meu ver, ela se tornou um acontecimento que pode desnudar pontos importantes para entendermos para onde a barca europeia vai – muito provavelmente, e de novo, para o Aqueronte da guerra. Infelizmente, dessa vez, as quatro linhas foram excedidas não pelo brilho do drible ou da jogada, mas pelo cheiro do ralo que espalha a catinga fascista por todos os lados do globo e só é sentido por narizes sensíveis. Tenhamos faro!

O ponto de partida sustentável para a reflexão talvez esteja na óbvia observação de que a Espanha não se recobrou da debacle de 2008 – crise do subprime –, recentemente aprofundada pela pandemia da covid-19. Hoje o país amarga uma das mais altas crises de desemprego, beirando 13%, e vivendo com uma taxa de inflação que dilapida o acesso aos itens básicos. Soma-se à guerra da Ucrânia, que encarece os preços de combustíveis e de energia. Embora, tenha tido uma leve recuperação do PIB em 2022, atualmente, a Espanha segue sendo o quarto país mais endividado da região e se tornou visível o empobrecimento de toda uma geração. Entre os desempregados, os jovens somam 31% – chegando a 55% nos anos pós-crise! Um celeiro enorme para a atuação dos discursos neofascistas que celebram sua canalhice em choppadas preconceituosas com a finalidade de aumentar o número de militantes.

Assim, com o desemprego estrutural, o apelo demagógico da extrema-direita, que imputa aos imigrantes a culpa pela crise, ganhou forte aderência e o partido franquista, Vox, se alçou com um dos maiores catalisadores da insatisfação. O mais interessante a ser levado em consideração é a forma orgânica que o levou a constituir uma espécie de internacional anticomunista com capilaridade em diversos continentes. Mas, não só, atualmente a adesão de importantes setores capitalistas, incluindo aí os grandes cartolas do futebol – inclusive um de seus apoiadores é o presidente da La liga, Javier Tebas – se tornou central para o crescimento da extrema-direita. E o que isso tem a ver com o racismo contra Vinícius Jr.? Tudo. Em diversas demonstrações racistas, gravadas em vídeo, ficou evidente que Vini – como é comum ao engajamento na extrema-direita – se tornou o bode expiatório necessário à coesão dos fascistas. Trata-se de um engajamento que constitui um pilar radicado no fascismo e que hoje libera, com o aval da ideologia da liberdade de expressão, demonstrações de racismo e sexismo como se fossem subversivas ou contrárias à ordem.

As gravações das manifestações racistas contra Vini são iluminadoras: há nelas um deslocamento da fronteira construída pela racialidade. A suposta branquidão reivindicada – e, por isso, tornando-se branquitude – , ao apontar o outro como “macaco”, projeta no corpo negro de Vinícius Jr. o resto que persiste do passado colonial – não em chave negativa, mas afirmando-se identitariamente. Outra questão, mais importante ainda, é que, na medida em que o negro funciona como o fantasma da manifestação racista, a referência a ele, nos permite identificar os diferentes modos da persistência do racismo como um debelador de crises do capital. É mais fácil culpar “o de fora”: o racismo e a xenofobia crescem à medida que os problemas sociais gerados pela crise não se resolvem.

Se seguirmos as pistas de Fanon podemos dar ainda mais uma torcida no parafuso dessa dialética horripilante: na visão dos progressistas, que pedem a judicialização do caso, – como se ela por si bastasse para acabar com o racismo – o negro não é só aquele que se nomeia exteriormente, mas que carrega esse excesso que se quer ocultar: os processos de dominação, exploração e morte que fundaram e mantém o mundo capitalista contemporâneo.2 O problema dos legalistas bem-intencionados é que essa mesma judicialização, fundamental ao neoliberalismo, se volta contra os pobres e os racializados. Basta analisar a tendência ao encarceramento em massa no Brasil.

Evidentemente, isso não adveio do nada. E para compreender sua expressão devemos levar em consideração, novamente, a gestão social contemporânea. Já nos disseram uma vez que o fascismo é uma cadela no cio que encontra espaço sempre que uma crise é deflagrada. Acrescento a isso o fato de que ele utiliza de pressupostos raciais como fonte de aglutinação dos descontentes e de legitimação do constituído. Aliás, ando sempre matutando que, sem a noção de raça, o fascismo não seria possível. Por isso, um pressuposto básico da crítica está na admissão de que a naturalização da noção de raça, como se tal noção não dissesse nada sobre a construção da modernidade, continua como o totem da festa pseudodemocrática que aquece em fogo brando o fascismo à espreita.

O problema é que, com o ocaso das promessas emancipatórias da modernização capitalista, assistimos o crescimento exponencial de um exército de inabsorvíveis ao mundo do trabalho, este – cada vez mais definido e comprimido em sua aparência física, em sua escolha religiosa ou em sua nacionalidade – fomenta diuturnamente a racialização. Diante disso, foi preciso a construção de um enorme aparato de dissuasão dos potenciais conflitos sociais através da identificação da demanda de grupos de pertencimento. Não devemos esquecer outro fator importante na consolidação da cosmovisão atual, qual seja: a conversão à ideia de raça particular e poligenista3 é uma das determinações concretas sempre presente como forma política na tradição liberal. Sempre é bom lembrar, como sugere Mbembe:4 a racialidade marca a ideia de democracia representativa; a própria forma democrática está eivada pela ideia de raça, enquanto a organização no interior do Estado impõe a divisão de indivíduos pelo critério racial. Tudo isso foi reforçado a partir do momento em que o Estado de bem estar social sucumbiu ante à Guerra do Vietnã.

Com o crepúsculo da noção de classe como fundamento da política, balizado pela revolução interna do capitalismo a partir da reestruturação produtiva e da transformação comunicacional, a nova forma de administração – a crise do capital como forma contemporânea de vida – tornou a jogar os indivíduos na busca de uma identidade imóvel, de um lugar fixo eivado de características singulares. Em suma, renovou o decrépito pensamento de identidade nacional, étnico e religioso noutros marcos administráveis. Agora pressupondo eficácia, concorrência e satisfação das demandas. O ocaso do Estado-nação foi paralelo à recomposição do Estado como um manager. Com tais transformações, reativou-se novamente a noção de raça superior, que a bem da verdade nunca saiu de moda.

Isso denota como as estruturas simbólicas que sustentavam um discurso social, pós-Segunda Guerra, entram em colapso a partir do momento em que a modernização se revoluciona na tentativa de manter a taxa de lucro. Kurz irá chamar de colapso da modernização, mas de minha parte julgo mais como uma transformação que abandona as características supostamente emancipatórias que ela dizia conter. A modernização continua a todo vapor, só que agora a despeito da humanidade e do meio ambiente (mas aqui não é o lugar dessa discussão). Portanto, trocando em miúdos, ainda estamos no fuso histórico da década de 1970, vivendo os desdobramentos cataclísmicos do abandono da modernização como algo progressista e emancipatório. E pensar que tudo isso tem a ver com o futebol do domingo!

Com a crise elevada à forma de governo, as novas condições que produziram, em termos gerais, uma pulverização de demandas e lugares demarcados por pautas de pertencimento são sumamente adequadas a originar políticas de exceção, da mais perigosa qualidade. Aliás, do Brasil aos EUA, passando por torcidas organizadas a partir da extrema-direita, é o que se vê. Por trás de todas as atuais fachadas “progressistas” e “liberalizantes”, a que remetem essas fórmulas inclusivas de consumo, efetua-se um tremendo processo de definição e divisão que não para de avançar sob a égide da gramática neoliberal – o processo de identificação dos corpos, sua crescente limitação à identidade, sua dependência cada vez maior de todo meio determinado, que durante séculos se inscreveria como exigência fundamental do modo de produção capitalista – ou seja, a rápida ascensão de um tipo de indivíduo essencialmente limitado ao modo de sociabilidade da mercadoria, que no discurso neoliberal impõe a concorrência como forma de vida, é a marca distintiva desse cotidiano sustentado pela identificação racial e construção de fronteiras.

Esse processo de neoliberalização adentrou com grande força a esquerda e já acarreta resultados com que seus apologistas ingênuos, os apóstolos da representatividade política como finalidade última, estão longe de contar. Hoje, por exemplo, uma das maiores reivindicações do Vox na Espanha é o “direito” à violência machista e a imposição da identidade masculina como critério político. Se tudo é política… O não-Outro, o de fora, o negro ou o muçulmano, o imigrante ou o refugiado passam a ser vistos como um nada. O pressuposto da raça, da “nossa identidade”, ergue-se para eliminar em nome da sua diferença – que se tornou o ponto narcísico de si – a própria diferença que lhe é alheia. E isso não é só na Espanha, essa posição excludente não raramente requer a extinção do outro de maneira concreta: “Entre 2016 e 2019, foram ao menos 16 vítimas fatais (na Alemanha pela extrema-direita). Somem-se a esses casos os assassinatos com motivação racial de nove pessoas em Hanau, cidade próxima a Frankfurt, por um extremista em fevereiro de 2020 (o suspeito também matou a mãe e depois cometeu suicídio)”.

As consciências do racista e do fascista são iguais nesse ponto: ambas creem na eliminação da diferença como critério de melhoria social. Não é raro que o fascista vise eliminar a diferença como pressuposto básico de proscrição das contradições, e faz isso através do ato místico de retorno às origens, do fechamento da identidade e, por fim, da aniquilação daquele que apresenta o contraditório. Do ponto de vista da normalidade capitalista, o próprio fascismo só se oculta quando não há qualquer risco social ou crise. Com a crise, porém, se desvela o componente racial como saída primeira: a culpa deles (dos racializados e das minorias) é sempre a tentativa de eliminar a contradição. As condições de possibilidade para a emergência do fascismo residem, portanto, na própria forma de gestão do capitalismo. Permeada pela manutenção das identificações herdadas pelo colonialismo, os apelos identitários – invenção europeia do período colonial – se tornam o fim último e a suposta saída às crises. O fascismo é sempre uma cadela no cio porque além de ser “atraente”, move-se pelas paixões, tem um discurso fácil de culpar o outro pelas crises sistêmicas do capitalismo. Superficial, faz a cabeça de idiotas!

A noção de raça, que subjaz no tecido social, é sempre a ferramenta preferencial que visa não só negar o fundamento das crises do capitalismo, propiciando uma revolta dentro da ordem, como ainda mantém o status quo intocado. Cria-se o bode expiatório capaz de unir a turba: o negro, o muçulmano, o imigrante, etc. A consciência fascista é a espetacularização dos sentidos da revolta; ela repõe os apegos identitários gerados na criação e manutenção dos lugares organizados pela reprodução do capital como algo espetacularmente subversivo. Ela performa, em sentido teatral, a revolta. O fascista clama pela eliminação da contradição vista como o “outro fantasmagórico”, banimento que supostamente lhe assegurará a identidade desinfectada do outro. Por isso, é preciso sempre levar em consideração que o fascismo e o racismo são irmãos siameses: quando o segundo livremente se expressa é porque o primeiro já corroeu as relações sociais. Vinícius Jr. se tornou o bode expiatório de promoção ao engajamento de vários fascistas espanhóis e qualquer possibilidade de romper com esse ascenso não está nas suas mãos ou nos seus pés. Não se limita às quatro linhas. Requer uma mobilização coletiva de jogadores e torcedores que ainda defendem a igualdade fundamental como valor inegociável e são ardorosamente antifascistas. Greves e passeatas de jogadores… utópico? Por que não?  


Notas
1 Célebre frase de Césaire que depois do jogo se tornou popular nas redes sociais.
2 O livro de Fanon, Pele negra, máscaras brancas, segue sendo fundamental para compreender esse processo.
3 Recurso ideológico utilizado no século XIX, e já definitivamente superado pela ciência contemporânea, que esboça a ideia de diferentes troncos raciais que teriam originado a humanidade.
4 Ver a Crítica da razão negra.

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Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor e conselheiro editorial do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Racismo (Fibra/Brasil, 2020). Militante do movimento negro, foi coordenador político da Uneafro.

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