Frankfurt, 100 anos. Teoria Crítica e Formação

Cabe a nós defender a Bildung contra seus admiradores conservadores, mas também contra seus detratores neoliberais. Do contrário, ocorrerá com a teoria crítica o que escutei outro dia sobre alguns de seus representantes: se tornará uma teoria cítrica, que faz arder, mas não flameja.

Por Bruna Della Torre

“O processo de formação hoje em dia se erige precisamente no momento no qual o indivíduo, em sua própria impossibilidade, se torna ciente da impossibilidade da formação.”
“Sobre formação musical hoje”, Theodor W. Adorno

A “formação” tornou-se um conceito quase tão suspeito quanto o de “tradição” ou “esclarecimento”. Falar em Bildung hoje é, no mínimo, sinônimo de ingenuidade, além de evocar frequentemente o eurocentrismo e seu elitismo discriminatório. Mas talvez as ideias mais erodidas pelo tempo (como a ideia de formação – e talvez o mesmo possa ser dito do socialismo, uma ideia a ser resgatada de seus admiradores) sejam justamente aquelas que devemos defender. Uma relação viva com a teoria crítica passa por esse projeto – por mais problemático que ele tenha se tornado.

Na comemoração do centenário do Institut für Sozialforschung (IfS), gostaria de celebrar a data retomando algumas reflexões de Theodor W. Adorno sobre o tema – fundamental também para a crítica brasileira. Quando retornou à Alemanha na década de 1950, Adorno proferiu uma série de palestras que foram publicadas no livro Vorträge 1949-1968. O tema da formação atravessa todas, mas está presente principalmente nas conferências “Formação musical hoje” (1962) e “Sobre o conceito de formação política” (1963). Conforme ressaltou Michael Schwarz, o organizador do livro e autor do posfácio, Adorno era um colaborador requisitado do Studium generale – também para a práxis da crítica o problema da formação era central.

O conceito de Bildung é um tema clássico da filosofia e da literatura alemãs desde Alexander von Humboldt, Johann W. von Goethe e Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Em alguma medida, ele representa a fase heroica do idealismo alemão. Como se sabe, o termo é de difícil tradução e vai muito além da ideia de educação como instrução formal. Em sua interpretação humanista e iluminista, esse conceito esteve ligado à formação de cidadãos. Por isso, ele é indissociável da história da constituição nacional alemã. Para Humboldt, “o verdadeiro fim do homem – não aquele que a inclinação mutável lhe prescreve, mas a razão eterna e imutável – é a Bildung mais alta e proporcional de suas forças para um todo”. O conceito de formação também se desdobrou imiscuído dos protestos românticos contra a racionalização na modernidade, do embate da poesia da vida com a prosa do capitalismo – para utilizar uma expressão de György Lukács. Nos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, a Bildung torna-se forma a partir do confronto do artista com o mundo burguês. A formação, nesse sentido, tensiona a divisão do trabalho alienante produzida pelo capitalismo ao mesmo tempo em que a sua defesa é, ela própria, sintoma dessa mesma divisão.

Esse projeto da Bildung, que recebeu inúmeras críticas desde sua concepção, havia se tornado extremamente problemático na Alemanha após a Segunda Guerra. Uma vez que ele aludia, ao menos em seu sentido corrente, a uma formação cultural ampla, a Bildung foi posta em xeque pelo nazismo, que evidenciou a impotência da cultura e fez cair por terra os pressupostos do idealismo. Adorno menciona em uma de suas palestras o exemplo de Reinhard Heydrich, político nazista que foi um dos protagonistas do plano de extermínio dos judeus. Segundo Adorno, Heydrich era uma pessoa sensível, profundo conhecedor e apreciador da música, especialmente Bach, Mozart e Beethoven. Nada disso impediu sua participação no crime. Depois desse evento, nenhum posicionamento ingênuo diante da arte e da cultura seria mais possível. A pergunta relativa à poesia após Auschwitz não é desligada desse contexto e da necessidade de incorporação consciente dessa impotência na arte do tempo que, como diz Adorno em Minima Moralia, só pode se chamar de “após o fim do mundo”. Não se trata, no entanto, de defender uma retomada da cultura pós-Auschwitz. O argumento da “reconstrução”, para Adorno, pressupõe a investigação de um processo de destruição da cultura muito anterior a Hitler. Uma questão, aliás, que devemos nos colocar após o governo Bolsonaro – qual era o estado da cultura no Brasil anterior a ele? O que, como esquerda, defendíamos no âmbito da cultura e defendemos agora após quatro anos de governo neofascista?

A pergunta relativa à possibilidade e necessidade da Bildung não está ligada somente a esse debate, no entanto. Adorno reintroduz o problema da Bildung sob o governo de Konrad Adenauer, chanceler alemão que foi um dos arquitetos da economia social de mercado e do chamado “Milagre do Reno”. Sob a chamada “era Adenauer”, a Alemanha viveu uma das primeiras experiências históricas do neoliberalismo, orientada pela teoria ordoliberal. A retomada do conceito tem tudo a ver com esse contexto. Conforme destaca Michael Schwarz, neste período, a universidade alemã foi submetida a uma reforma, associada a uma “virada realista” (um clássico do neoliberalismo), que visava acentuar o treinamento profissional especializado e que o fazia por meio de um ataque à ideia mais geral de formação como um ideal prescrito, alienado e desligado das exigências reais do mundo moderno do trabalho. Era preciso “qualificar” a força de trabalho e investir na especialização.

Adorno situa-se no meio de dois polos irreconciliáveis e insuficientes por si mesmos. De um lado, a tradição idealista e romântica de Humboldt, Goethe e Hegel, bem como a tendência de reduzir a Bildung a um fenômeno individual. De outro, o realismo do capital, a especialização científica e artística, nas quais o que prospera não é o mais avançado de sua época. Adorno vai tensionar esses polos para tratar do problema da formação contemporânea. Do impasse, ele buscará fazer um caminho, ligado à defesa de uma educação profunda, que transcenda o técnico e o disciplinar, mas que não desconsidere os instrumentos desenvolvidos em cada campo do saber ou do fazer artístico. Trata-se, sobretudo, de uma defesa da Teoria Crítica. A concepção de formação, ligada aos ideais de autonomia, autodeterminação, maturidade e independência de julgamento que lhes são correspondentes vai se referir, nesses textos, também à oposição a uma força que se torna cada vez mais preponderante na nossa sociedade: a indústria cultural, produtora de heteronomia e déficit de reflexão.

Comecemos pela formação musical. Adorno refere-se, na palestra, à música ocidental produzida na Europa. É claro que podemos dizer que algo como um debate a respeito da formação musical não serve para nós da periferia do capitalismo, para quem essa tradição é estranha e a quem esse tipo de formação cultural foi em grande medida materialmente negada – e teríamos razão em afirmar isso. Mesmo para os músicos no centro, diz Adorno, a busca material pela sobrevivência é um obstáculo no processo de formação – e isso vale para uma série de profissões. Em Introdução à Sociologia, Adorno também adverte as ouvintes de que é difícil ganhar a vida estudando e criticando o capitalismo; “quanto mais se compreende da sociedade”, escreve ele, “tanto mais difícil é tornar-se útil na sociedade” e, portanto, encontrar nela um meio de vida enquanto intelectual. Mas nem por isso a reflexão de Adorno nos é completamente estranha, pois o problema posto por ele nessa palestra diz respeito a uma questão geral, relativa à importância de uma relação viva com a cultura e a quanto desejamos buscar na arte uma experiência – e a quanto isso ainda é possível. Trata-se sobretudo de uma defesa do choque com essa experiência, não de um lamento nostálgico sobre sua perda.

Em “Formação musical hoje”, palestra proferida na Hochschule für Musik em Frankfurt, Adorno discute como o conceito de formação musical se tornou problemático, uma vez que a música se tornou um campo de especialistas, sem relação orgânica com um público – conceito que, como o de Bildung, é pensado a partir de sua própria dissolução na obra adorniana. O destino das outras artes hoje é, em maior ou menor medida, o mesmo que o da música e, por isso, a palestra pode ser pensada como uma reflexão mais ampla sobre a situação da arte no presente. Falar em formação, nesse contexto, envolve pensá-la a partir dessa dicotomia social. Nessa palestra, Adorno discute o duplo aspecto do conceito de Bildung. De um lado, trata-se da atividade profissional, com o seu lado artesanal, de aprendizado técnico e, por outro lado, de uma formação mais ampla, que diz respeito a uma relação viva com a música e com um real entendimento da música em si.

Adorno destaca a dificuldade ligada mesmo ao aprendizado mais elementar da música, pois, com o fim da tradição musical, não há caminho seguro no âmbito da formação e a pessoa que deve se formar é obrigada a encontrar um caminho por si mesma. Trata-se de um problema relacionado não só ao ensino e à produção musical, mas à sua reprodução, pois anteriormente o que era tocado pressupunha a relação dos músicos e músicas com um público, para o qual uma série de elementos era autoevidente. Estudar música atualmente tem, nas palavras de Adorno, algo de museologia ou de trabalho de arquivo; a formação musical é retrospectiva; o mesmo se poderia dizer da lírica e do romance, por exemplo – uma vez que estamos separados por mais de um século da maior parte dos seus grandes momentos. Com a derrocada da tradição, a reprodução da música também se alienaria de seu material. Haveria, nesse sentido, uma fratura entre o métier musical e o estado espiritual de nossa época – prenhe de consequências para o aprendizado e apreciação da música atualmente.

Hoje, diz Adorno, uma produção e reprodução ingênuas da música não são mais possíveis, pois os materiais e as formas musicais se tornaram problemáticos. Um estudante de música, segundo Adorno, precisa ter compreensão do que é uma obra de arte. A ideia kantiana de que para ser artista não era preciso conhecer os debates de estética não teria mais vigência. O artista que não possua um conceito real de obra de arte, não saberá reconhecer as pressões que a indústria cultural exerce sobre a obra de arte e sobre ele próprio. A música, diz Adorno, por ser a menos conceitual das artes, colaborou para uma espécie de ideologia do inconsciente – para a ideia de que quanto menos consciência, mais espontaneidade na interpretação de uma peça musical. Essa ideia seria equivocada, alerta Adorno, – e aqui ele discute algo que também desenvolveria em sua Teoria Estética – uma vez que a espontaneidade e a originalidade em arte não são dados, mas uma construção, algo duramente adquirido pela disciplina e reflexão. O mesmo vale para as ciências humanas – o confronto com uma obra literária, na crítica literária, ou com uma comunidade, na antropologia etnograficamente orientada, nada tem de uma “espontaneidade inconsciente” obtida a partir da negação das teorias sobre aquele objeto, mas só pode ocorrer por meio de um profundo mergulho nas questões de seu campo.

Por isso, o desenvolvimento espiritual conjunto de cada músico exige autonomia e consciência. Não basta somente dominar os elementos técnicos do aprendizado, mas se tornar consciente do “fazer artístico”. E isso, diz Adorno, tende a não estar presente como problema na formação dos músicos treinados para a reprodução, que não têm, em geral, uma relação com a música moderna e seus problemas. Seria preciso entender a anatomia das obras de arte dos chamados grandes mestres para reproduzi-las. Não basta apenas tocar uma música, mas é preciso apreender o seu sentido para que a prática artística não se torne culinária (como se torna a grande parte da música “clássica” propagandeada pelas grandes casas de concerto, com os seus superstars já chancelados pela “opinião pública” de pseudoespecialistas da indústria cultural que define o que é e o que não é bom).  Aqui Adorno recorre (e subscreve) à crítica de Brecht à indústria cultural. Podemos, de vez em quando, degustar algo bem cozido, diz ele, mas não podemos nos contentar em reduzir a música e a cultura a isso. Ademais, a própria reprodução de uma música envolve conhecer não só o sentido que ela tinha em seu próprio período, mas problematizar o abismo que a separa de nossa época (esse conselho pode ser aproveitado não só para as outras artes, mas também para as teorias clássicas das ciências humanas muitas vezes apresentadas como rígidas e atemporais). A ideia de “clássico”, tanto na música quanto na ciência, além de um argumento de autoridade, acaba obnubilando também aquilo que nela é vivo.

Essa exigência de autonomia traz incerteza – o que leva as pessoas a buscarem um terreno mais seguro. Mas o desejo de segurança, alerta Adorno, tem efeitos nocivos para tal projeto de formação – tema que ele também aborda no âmbito da produção científica no curso Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade. Aliás, a abdicação dessa segurança e do espaço que ela abre para a experimentação está intimamente ligada à mobilização do ensaio pela teoria crítica. O desejo de segurança, diz Adorno, leva a um recalque do medo ligado à autonomia e à liberdade, que resulta muitas vezes numa hipóstase da técnica como resposta a problemas musicais mais amplos. Vivemos, nessa chave, uma ampla crise da formação que está ligada também à autonomização da tecnologia em relação aos propósitos que servem na música. Adorno também aponta para um elemento neoliberal que se insinua nesse processo: o princípio da eficiência, que passa a governar também a arte.

A música – e as obras de arte em geral – deve, segundo Adorno, ser compreendida como uma totalidade contextual espiritual, um conjunto interdependente – o tema da reificação como fragmentação da consciência é essencial aqui. É preciso entender a unidade da música e como ela é resultado da combinação de seus vários elementos. O modo como uma música soa, por exemplo, é parte de sua composição, de seu sentido. Os artistas não podem, por exemplo, diz Adorno, acelerar um adagio guiados pelo medo de as pessoas deixarem uma sala de concerto devido à lentidão da música (medo justificado hoje em dia quando até mesmo filmes e série de televisão, bem como áudios no celular são escutados em velocidade dobrada – um indício de que a temporalidade das obras de arte não é mais suportável para nós). Nessa medida, o problema da Bildung é algo que atravessa a composição das obras de arte – ou seja, aquilo que é socialmente problemático aparece como elemento da forma. A questão da formação está no interior das obras e não é um elemento exterior a elas, diz Adorno. A educação musical só seria possível por meio de uma imersão com grande intensidade e consciência nos problemas musicais e artísticos.

Essa defesa da Bildung envolve uma relação, ela também viva, com a tradição e o treinamento técnico e não se resume a um saber informado sem experiência. Em sua Introdução à Sociologia da Música, Adorno constrói uma tipologia de ouvintes, na qual se destaca a figura do expert, que conhece profundamente a história da música, os compositores e instrumentos, mas não tem uma relação com a obra em si naquilo que ela traz de não-idêntico, de surpreendente. É isso que fazem os programas de “Music Appreciation” estudados por Adorno nos Estados Unidos: tornam a música agradável e consumível, como fazem hoje os coachs de literatura com Joyce ou Proust – autores que exigem uma luta de suas leitoras com o texto e cuja experiência de estranhamento os roteiros de leitura buscam apagar. Hoje o boom do coaching e a dificuldade que as pessoas têm de enfrentar algo desconhecido atesta essa tendência. A indústria cultural contemporânea orienta também a nossa relação com as obras de arte que historicamente buscaram (ou buscam atualmente) fazer-lhe oposição – ela se torna uma Bildungssurrogate, diz Adorno.

Ou seja, a formação aparece aqui como um processo ligado à consciência da fratura. Compreender o sentido de uma obra de arte, nesse sentido, consistiria, segundo Adorno, em compreender sua impossibilidade, compreendê-la como tour de force, uma tentativa de reunir forças contraditórias e incompatíveis e com elas tentar construir algo. E o mesmo valeria para a Bildung – que nada mais é do que algo que se constrói a partir da reflexão sobre sua impossibilidade hoje. Isso certamente podemos aproveitar, assim como podemos incluir nessa reflexão a arte popular – também ela sob ameaça de aniquilação total pela indústria cultural. Mas a reflexão sobre o tema não para por aí.

No ano seguinte, Adorno ministrou a palestra “Sobre o conceito de formação política” para estudantes de uma escola profissionalizante. Aqui a Bildung vai ganhar uma roupagem mais explicitamente marxista – o que lança luz também sobre a palestra anterior. Assim como Adorno discutia a necessidade de uma relação viva com a arte, ele vai defender a necessidade de se estabelecer um entendimento vivo da política. Este tem a ver com uma compreensão do que é subjacente ao jogo político e institucional oficial – uma lição importante para a Ciência Política mainstream contemporânea. A política, diz Adorno, é algo que ultrapassa as regras de procedimento, as dinâmicas de partido, as regras da eleição, mas hoje ela aparece como algo isolado, apartado de outras esferas. Para tratar do problema, Adorno retoma o conceito de “personalização”, amplamente discutido em A personalidade autoritária.

Quanto mais objetivas e preponderantes as forças sociais se tornam, afirma Adorno, mais as pessoas tendem a personalizá-las e essa personalização obscurece os grupos de poder e os processos sociais por trás de indivíduos particulares. Isso acarreta um problema de consciência que é objetivamente produzido – a referência aqui sem dúvida é Lukács; trata-se, sobretudo, de uma manifestação de reificação no âmbito da política. Há uma dissonância entre a consciência real das pessoas e as formas nas quais vivemos. Nessa chave, as pessoas podem viver numa democracia, diz Adorno, e ter sua consciência determinada por formas e representações incompatíveis com a democracia. Assim, as grandes questões políticas são apresentadas para nós como o nascimento do filho da princesa Margaret ou o casamento de um membro da realeza – as medidas X e Y são propostas pelos políticos A e B; há uma naturalização do fato de que nossa vida está nas mãos de indivíduos específicos e o verdadeiro funcionamento da política é reduzido a um conflito acidental. O que gera, por sua vez, pseudossoluções para problemas mais amplos.

A teoria das elites nas ciências humanas, diz Adorno, é cúmplice da personalização, cola-se a ela, é uma manifestação de seu caráter apolítico. Adorno chama a atenção para uma complementaridade muito instigante nesse sentido, a saber, entre as condições reais da sociedade de massas e a ideologia elitista que tende a surgir dela. Além de estar presente na Ciência Política atual, segundo ele, também o nazismo soube mobilizar essa ansiedade por meio de sua “teoria racial”, que fez com que uma maioria de não judeus se sentisse uma elite escolhida. A sociedade de massas e os processos de produção de equivalência (que não é o mesmo que igualdade) cria um anseio por fazer parte de uma elite vista como superior. A teoria social que não enxergar nas condições objetivas um potencial para o pensamento elitista (que anda de par com o fenômeno da personalização), destaca Adorno, vai cumprir um papel antidemocrático na análise da consciência política. A Sociologia deveria, portanto, estar politicamente orientada para os elementos que constituem a consciência política além dos dados conjunturais de superfície. No caso da ascensão da extrema-direita, seria preciso compreender a tendência ao autoritarismo e ao preconceito não como respostas imediatas à política formal ou à história política, mas em relação a fenômenos mais amplos. A ascensão da extrema-direita no Brasil, por exemplo, não será entendida se se levar em conta apenas fenômenos conjunturais como junho de 2013 ou o “antipetismo”.

Adorno, que ocupou uma cadeira de Sociologia durante as décadas de 1950 e 1960, alertava para o perigo dos estudos sociais sem Sociologia ou Teoria. Nesse sentido, Adorno adianta uma série de debates correntes hoje em dia sobre a corrosão interna da democracia, sobre o que Wendy Brown chamou de “desdemocratização”. A separação da política do processo vivo da sociedade, diz ele, faz com que a política se torne uma esfera especial na qual as principais decisões sobre o modo como vivemos cabem às instituições governadas por poderes sociais cegos, como as leis de propriedade. A democracia se torna, assim, meramente uma espécie de proteção relativa para abusos de poder ou algo que toleramos em nome do crescimento econômico – aqui Adorno está investigando os impactos daquilo que hoje conhecemos como neoliberalismo na política, acompanhado da ideia já presente naquela época que a sociedade se tornou um modo de vida no qual cada um deve sobreviver por si mesmo até, diz ele, congelar até a morte, e na qual a ideia de autodeterminação coletiva paulatinamente desaparece.

A concepção meramente técnica de democracia, a formalização dos conceitos democráticos, sua redução a regras e procedimentos, a transformação do pensamento político em formas político-legais – processo que já vimos no âmbito da formação musical – implicaria, então, numa renúncia ao conteúdo da democracia e na corrosão da vida democrática como um todo. A tarefa da formação política começaria, então, com uma busca pela consciência do conteúdo real objetivo da sociedade ligado à disposição sobre o poder social e sobre os meios de produção. Adorno aponta para uma espécie de decadência do pensamento burguês no âmbito das ciências sociais. Em Weber, diz ele, um autor de orientação subjetivista, a objetividade aparece ao menos no conceito de burocracia, enquanto nos autores contemporâneos, a política é considerada como mais um dentre os diversos elementos da divisão social do trabalho. Adorno vai ainda mais longe e compara a situação política da Alemanha redemocratizada ao Terceiro Reich. A ideia de que “o Führer sabe tudo”, diz Adorno, retorna sob o regime democrático na forma da confiança depositada em especialistas e professores espalhados pelos Ministérios cuja única função é perpetuar o boom econômico, enquanto a atitude contemplativa do todo diante da política é mantida. Assim como um músico precisa saber o que é uma obra de arte para ter uma relação viva com a música, um conceito de democracia também é necessário para estabelecer uma relação viva com a política, que não aniquile a força para pensar que as coisas poderiam e deveriam ser diferentes.

O isolamento da política e sua redução ao político por vocação também abre espaço para o surgimento de arrivistas, diz Adorno, que mobilizam o ressentimento das pessoas que estão objetivamente fora das decisões políticas e que preferem delegar seu poder a esses arrivistas do que deixá-lo na mão de políticos profissionais “corruptos”. A herança do Terceiro Reich na democracia também se constitui a partir da suspeição com o sistema político. O lema nazista “Fora com o sistema partidário”, sugere Adorno, ecoa na defesa de políticos outsiders – que nunca são de fora, mas conseguem vender-se como tal – “homens fortes, não profissionais e honestos que devem dar cabo desse sistema”. Todos esses temas seriam retomados na palestra Aspectos do novo radicalismo de direita, proferida em 1967 diante da ascensão de movimentos neonazistas na Europa.

Vale ressaltar que o conceito de formação política aparece aqui também como uma reflexão sobre as impossibilidades da democracia. A política, diz Adorno, é superestrutura quando confunde regras de procedimentos e políticos individuais com o funcionamento objetivo da realidade. Nesse sentido, política seria não só ideologia, mas a forma da ideologia, uma forma que contém em si a possibilidade de superação da ideologia.

Não é difícil identificar a atualidade das reflexões de Adorno, quando as ciências sociais, cada vez mais especializadas e afinadas com os modelos norte-americanos, ocupam-se majoritariamente do mapeamento dos hábitos de consumo e da descrição da vida e dos conflitos sociais por meio de pesquisas empíricas que fetichizam a técnica, que tornam a etnografia e o close reading um fim em si mesmo e que descartam a interpretação e a teoria social como metafísica, além de se dobrarem diante da indústria cultural, de modo que o ideal de acadêmico caminha cada dia mais para uma fusão com a figura dos chamados “influencers”. Aliás, uma das diferenças da teoria crítica para o restante da teoria tradicional reside justamente em opor o/a intelectual ao mero acadêmico – daí o conceito de formação ser tão importante. No Brasil, o projeto político cultural e educacional vigente – e que não é o mais retrógrado que possuímos – fomenta o empreendedorismo, naturaliza a concorrência como forma de associação social, pretere as artes e ciências humanas em prol das chamadas ciências hard, investe numa profissionalização puramente técnica e o faz acreditando que este é um meio de ascensão social e nacional num país de economia orientada pelo extrativismo primário e pela financeirização (mostrando que o neoliberalismo pode e tem uma faceta muito mais idealista e ingênua que o próprio idealismo alemão).

Nesses 100 anos de debate acumulado em teoria crítica, muita coisa mudou. O conceito de formação pode ser ainda mais tensionado do que fez Adorno. A tradição brasileira, por exemplo, debateu a formação a partir das impossibilidades de formação periférica tanto na arte quanto nas ciências sociais – Machado de Assis, por exemplo, teria antecipado em um século a passagem do que Antonio Candido chamou de “consciência amena do atraso” para a “consciência aguda do subdesenvolvimento”, conforme identificou Roberto Schwarz (orientado por essa própria consciência) evidenciando que a crítica é ela própria elemento fundamental do desdobramentos das obras de arte. As discussões feministas têm mostrado, por sua vez, que a Bildung – uma aspiração reservada aos homens – pressupõe mais um elemento da divisão social, colonial e racial do trabalho: o trabalho reprodutivo. Nesse sentido, a teoria crítica se mantém viva nas várias formas de reflexão sobre a impossibilidade – não da formação nacional – mas da formação de uma sociedade livre para se autodeterminar e, para isso, é preciso ir além da superfície. Conforme defendeu Adorno em “Sobre tradição”, “assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do perecer”. Cabe a nós defender a Bildung contra seus admiradores conservadores, mas também contra seus detratores neoliberais. Do contrário, ocorrerá com a teoria crítica o que escutei outro dia sobre alguns de seus representantes: se tornará uma teoria cítrica, que faz arder, mas não flameja.

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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.

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