Luiz Carlos Prestes: o “Manifesto de Maio” e a “Revolução de 30”

Para impulsionar a luta revolucionária em nosso país, é necessário encarar a formação histórica em que essa luta sempre foi travada e hoje continua sendo. Uma formação histórica marcada pelo controle das instituições públicas e do Estado por classes dominantes conservadoras e poderosas, proprietárias de grandes extensões de terras e, durante quatro séculos, mantenedoras do regime escravista.

Luiz Carlos Prestes sentado à sua mesa de trabalho no galpão da Calle Gallo. Buenos Aires, 1928-1929 (Acervo Anita Prestes).

 Por Anita Leocadia Prestes

O Manifesto de Maio de 1930, assinado por Luiz Carlos Prestes, foi tornado público no Brasil no dia 29 de maio daquele ano na 2ª edição do jornal paulistano Diário da Noite. O documento consagrou a ruptura de Prestes com o movimento tenentista e explicitou sua posição revolucionária, anti-imperialista e de luta contra o latifúndio e pelo poder para os trabalhadores. Dizia o texto:

A revolução brasileira não pode realizar-se com o programa anódino da Aliança Liberal.1 Uma simples mudança de homens no poder, o voto secreto, promessas de liberdade eleitoral, honestidade administrativa, respeito à Constituição, moeda estável e outras panaceias nada resolvem nem podem interessar, de modo algum, à grande maioria de nosso povo, sem cujo apoio qualquer revolução que se faça terá o caráter de uma simples luta entre as oligarquias dominantes.

Mais adiante, afirmava-se no mesmo texto:

Apesar de toda essa demagogia revolucionária e das afirmações dos liberais de que propugnam pela revogação das últimas leis repressoras, não houve na Aliança Liberal quem protestasse contra a brutal perseguição política de que foram vítimas as associações proletárias de todo o país durante a última campanha eleitoral, e no próprio Rio Grande do Sul. Em plena fase eleitoral, foi desencadeada a mais violenta perseguição aos trabalhadores que lutavam por suas reivindicações. Os propósitos das oligarquias em pugna são idênticos.

Embora Prestes não fizesse referência ao comunismo no manifesto, sua adesão ao programa da “revolução agrária e anti-imperialista”, proposto pelo PCB (denominado como Partido Comunista do Brasil à época), o identificava com os comunistas perante a opinião pública. O documento teve o efeito de uma verdadeira bomba na imprensa da época. Ruíam os propósitos dos setores oligárquicos de oposição, derrotados nas eleições de 1º de março de 1930, de continuar utilizando o mito do Cavaleiro da Esperança para a conquista de seus objetivos. Até aquele momento, esse mito alimentara a ilusão desses setores de transformar Prestes num líder a serviço de seus interesses exclusivistas, que conduzisse as massas populares pelo caminho das reformas liberais, de acordo com a fórmula enunciada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada:2 “Fazer a revolução antes que o povo a faça.”

A nova posição de Prestes o transformou num renegado para os políticos das classes dominantes que contavam com sua liderança. Para setores ponderáveis das populações urbanas, era o abandono, o sentimento de orfandade. A maioria das pessoas não conseguia entender por que Prestes, designado por seus colegas “tenentes” para ser o chefe militar da “revolução” que se aproximava, renunciara a essa missão e não aproveitara a oportunidade que lhe era oferecida para chegar ao poder e pôr em prática um programa de medidas populares.

Há que lembrar que o tenentismo não possuía a autonomia que muitos lhe atribuem. Foi um movimento ideologicamente caudatário das classes dominantes – explicável por suas raízes sociais nas camadas médias da sociedade –, que se revelou incapaz de evoluir para posições independentes de efetiva liderança dos setores populares. Num contexto de aprofundamento da crise do sistema oligárquico então vigente no Brasil, agravada pela crise internacional do capitalismo de 1929, os “tenentes” foram habilmente envolvidos pelos políticos das oligarquias oposicionistas, articulados em torno da figura de Getúlio Vargas. Com a ruptura de Prestes, a chefia do movimento armado foi entregue ao tenente-coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro, ex-comandante de tropas legalistas que combateram os rebeldes paulistas e perseguiram a Coluna Prestes. Os “tenentes” – mesmo os mais conhecidos, como Juarez Távora, João Alberto Lins de Barros, Djalma Soares Dutra, Osvaldo Cordeiro de Farias, etc. – ficaram subordinados ao comando de Góis Monteiro e do próprio Vargas.

Se Prestes tivesse aceitado participar do movimento armado, teria sido levado a abdicar de suas posições revolucionárias, tornando-se um instrumento a serviço das oligarquias dissidentes que – após a derrubada de Washington Luís por uma junta de generais – assumiram o poder em novembro de 1930. Não existiam no Brasil organizações populares preparadas para dar respaldo e sustentação a um programa efetivamente revolucionário liderado por Prestes, o que foi por ele compreendido. Prestes preferiu ficar isolado – “um general sem soldados”, segundo suas palavras – a capitular frente às classes dominantes. Escolheu o caminho da revolução socialista, o árduo caminho da luta junto aos explorados e aos oprimidos por uma solução radical dos problemas sociais, pela extinção da exploração do homem pelo homem, pela conquista de justiça social.

Essa versão do suposto erro cometido por Prestes por ter se recusado a assumir o comando militar da chamada “Revolução de 30” é mantida, desde os anos 1930 até os dias atuais, como se fosse uma inegável verdade. Dessa forma, Prestes é responsabilizado por ter provocado um suposto retardamento no processo de transformações progressistas e/ou revolucionárias do país.

Uma outra versão, mais recente, procura justificar a posição de Prestes em 1930, alegando que a sua ruptura com os “tenentes” e com os grupos oligárquicos oposicionistas teria contribuído para que o PCB se transformasse num “partido de massas”, sem assinalar quando isso ocorrera. Na realidade, da mesma forma que Prestes, os comunistas ficaram politicamente isolados naquele momento. A intensa campanha movida pela imprensa da época contra a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, contra os bolcheviques russos e contra os comunistas em geral contribuiu em grande medida para tal isolamento.

Durante os primeiros anos da década de 1930, com o rápido desgaste do Governo Vargas e a crescente insatisfação popular diante do descumprimento dos compromissos eleitorais assumidos por esse governo, houve um renascimento do prestígio e da liderança de Luiz Carlos Prestes, que voltava a ser aclamado como o Cavaleiro da Esperança.

Embora o PCB, no início, não apoiasse nem participasse da fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), ampla frente democrática e antifascista, criada no começo de 1935, a escolha de Prestes para a sua presidência de honra, ao mesmo tempo em que era aceito nas fileiras comunistas, contribuiu para que o PCB se decidisse a apoiar e a participar da ANL, influindo decididamente na elaboração do seu programa. Contudo, se essa entidade efetivamente mobilizou numerosos setores populares e num curto espaço de tempo chegou a congregar cerca de cem mil adeptos em torno da liderança de Prestes, a mesma coisa não se pode dizer em relação ao PCB, um partido pequeno e com influência reduzida na sociedade brasileira. Durante os levantes antifascistas de novembro de 1935, a participação popular foi praticamente nula, confirmando que o PCB estava longe de ser um “partido de massas”.

A repressão desencadeada contra os comunistas e todos os antifascistas após a derrota dos levantes de novembro de 1935 levou ao esfacelamento do PCB, que só conseguiu se reorganizar a partir da realização, em 1943, de sua Conferência da Mantiqueira.

Em 1945, com a vitória sobre o fascismo das forças democráticas mundiais, tendo à frente a União Soviética, e as mudanças ocorridas no Brasil, incluindo a libertação de Luiz Carlos Prestes e demais presos políticos, o PCB conquista a legalidade, elege Prestes o senador mais votado da República e 14 deputados comunistas para a Assembleia Constituinte de 1946; Yeddo Fiúza, seu candidato à Presidência da República, obtém 10% dos votos válidos, e sua legenda rapidamente chega a congregar 200 mil membros. Tratava-se, contudo de uma organização ainda frágil, que apenas iniciava a formação dos seus novos militantes, quando, a partir de 1946, com o advento da chamada “Guerra Fria”, a repressão novamente se abateu sobre suas fileiras. O PCB não teve tempo para se transformar num “partido de massas”.

Para impulsionar a luta revolucionária em nosso país, é necessário encarar a formação histórica em que essa luta sempre foi travada e hoje continua sendo. Uma formação histórica marcada pelo controle das instituições públicas e do Estado por classes dominantes conservadoras e poderosas, proprietárias de grandes extensões de terras e, durante quatro séculos, mantenedoras do regime escravista. Classes dominantes que sempre apelaram para inaudita violência contra os trabalhadores, impedindo as tentativas de organização popular que foram tentadas, inclusive pelos comunistas, sempre perseguidos e impedidos de alcançar vitórias que não fossem efêmeras. Essa é a dura realidade a enfrentar, não sendo admissível embalar-se no sonho de que o PCB chegou a ser um “partido de massas”. Para construir um “partido de massas” – tarefa que deve ser pensada a longo prazo –, é necessário voltar-se para os setores populares mais combativos contribuindo para sua organização, mobilização e conscientização revolucionária.   

Notas
1 Aliança Liberal – coligação eleitoral oposicionista formada em 1929 pelas oligarquias dos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba para as eleições presidenciais de 1º de março de 1930. Getúlio Vargas era o candidato a presidente e João Pessoa a vice-presidente, derrotados nessas eleições pelos candidatos governistas Júlio Prestes e o seu vice Vital Soares.
2 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada – governador do estado de Minas Gerais, articulador da campanha da Aliança Liberal e do movimento armado de 1930.

Referências bibliográficas
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Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes


A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.

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Anita Leocadia Benario Prestes  é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.

1 comentário em Luiz Carlos Prestes: o “Manifesto de Maio” e a “Revolução de 30”

  1. Excelente. Só uma sugestão de acerto. O vice-presidente na chapa de Getúlio, em 1930, era João Pessoa e não Epitácio Pessoa.

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