Boric, as esquerdas chilenas e o realismo político

Neutralizar o giro da história desde 2022 em favor da direita não será tarefa fácil para a nova esquerda chilena, que se demonstra imatura, inexperiente e prisioneira de tradições liberais reforçadas pela longa hegemonia do neoliberalismo no Estado chileno.

FOTO: RODRIGO GARRIDO/REUTERS

Por Carlos Eduardo Martins

Boric enfrenta vários problemas que escapam à sua vontade, como a resistência e bloqueio do Parlamento chileno às suas iniciativas, cuja principal expressão foi o rechaço à reforma tributária que permitiria dar base fiscal mais confortável às suas propostas de reforma da saúde e da previdência. Nesse rechaço foi determinante a ruptura do Partido Ecologista com o governo, um dia antes da votação, que lhe suprimiu três votos, em função de um episódio menor: a discussão acalorada entre o ministro da Educação, Marco Antônio Avila, e a deputada Viviana Delgado sobre a reabertura de uma escola em Maipú, usado como pretexto para não votar a política de Estado progressista que se pretendia implantar em favor da grande maioria da população. Tal acontecimento mostra que se as pautas emancipatórias, como as feministas, devem avançar, também são objeto de disputa, colonização e usurpação pela direita para preservar seus privilégios e estruturas de poder antipopulares.

Todavia, Boric não tem por que se render ao fiscalismo neoliberal e condicionar suas reformas ao equilíbrio fiscal: a taxa de desemprego é altíssima no Chile, em torno de 8%, e a dívida pública bastante baixa, rondando os 40% do PIB. A ampliação dos gastos públicos em saúde, previdência e educação deve preceder a reforma tributária. Isto permitiria mobilizar apoio popular e garantir a sua aprovação no Parlamento com a pressão das massas organizadas e da opinião pública, que se mostraram efetivas para a convocação da Constituinte em 2021.

Entretanto, o grande defeito que marca o governo Boric e setores majoritários da esquerda chilena é a rendição ao eleitoralismo e à democracia liberal. Tendo alcançado maioria avassaladora em um sistema eleitoral sem o voto obrigatório, arriscaram essa posição favorável dedicando-se à imposição do voto obrigatório, que ampliou enormemente a participação eleitoral e incluiu no sistema político as massas desorganizadas e despolitizadas sobre as quais a esquerda não possuía hegemonia. No Plebiscito Nacional de 2020 sobre a realização de uma Assembleia Constituinte, o “Sim” alcançou 5,9 milhões de eleitores, 78% dos que exerceram o direito de voto, derrotando esmagadoramente as posições pinochetistas. Nas eleições para a Convenção Constitucional de 2021, a direita obteve menos de 1/3 dos votos, mas o cenário mudou drasticamente a partir do plebiscito para ratificá-la, quando se introduziram pesadas multas para punir a abstenção, reduzindo-a significativamente. O contingente de participantes passou de 7,5 milhões de eleitores em 2020, 6,1 milhões nas eleições para a Convenção Constitucional de 2021 e 8,3 milhões no segundo turno da eleição presidencial de 2022; para 13 milhões de votantes no plebiscito sobre a aprovação da nova Constituição em 2022 e 12,8 milhões nas eleições para o Conselho Constitucional de 2023. Isso implicou na elevação da taxa de participação eleitoral de 50,9% em 2020, 41,3% em 2021 e 55,6% nas eleições presidenciais de 2022; para 85,9% no plebiscito de 2022 e 84,9% nas eleições para o Conselho Constitucional de 2023.

Ao invés de garantir a expansão das políticas públicas sobre as massas populares desorganizadas e descrentes do sistema eleitoral, vulneráveis à ofensiva ideológica da direita, para depois alterá-lo, as esquerdas chilenas preferiram o caminho oposto: priorizar os cânones de um idealismo liberal abstrato ao realismo político, desperdiçando a oportunidade histórica de realizar grandes transformações no Estado chileno, que teriam forte impacto na América Latina. As comunidades mais pobres e desorganizadas como Huara, Cunco, Carahue, Fresia e Quilleco – acentuaram o rechaço à aprovação da proposta de Constituição de 2022, se unindo às mais ricas – como Los Condes e Vitacura – para ocupar o lugar de retaguarda do bloco constituído pela extrema-direita e a direita em um sistema político ampliado. Nas dez comunas mais pobres, o rechaço de 2022 alcançou 77%, muito acima da média nacional de 61%.

Neutralizar o giro da história desde 2022 em favor da direita não será tarefa fácil para a nova esquerda chilena, que se demonstra imatura, inexperiente e prisioneira de tradições liberais reforçadas pela longa hegemonia do neoliberalismo no Estado chileno. Uma esquerda sem capacidade estratégica e tática e sem realismo político será presa fácil das articulações do imperialismo e da burguesia dependente que acumulam imensa força econômica, grande capacidade de corromper e uma longa história de exercício do poder.

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Carlos Eduardo Martins é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), publicados pela Boitempo.

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