Capitalismo tecnofascista

A captura de subjetividades, no atual sistema capitalista, pode ser entendida como um “Cavalo de Troia Tecnológico”, que usa a experiência humana como matéria-prima para a extração de dados comportamentais, que tiranicamente “se alimenta das pessoas, mas não é das pessoas”, uma personalização que corrompe, ignora e passa por cima do que as pessoas têm no seu íntimo.

ARTE: DAVID PLUNKERT

Por Vinício Carrilho Martinez, Lucas Gonçalves da Gama e Ana Cristina Oliveira Mahle

Este texto pode ser lido como um pano de fundo para entendermos um pouco a guerra digital travada pelas big techs contra o PL das fake news, que nos remete às estruturas atuais do capitalismo financeiro e à captura das subjetividades pelas redes antissociais.

O capitalismo deve ser mencionado por inúmeras razões e configurações, conceituações, a começar pela extrema capacidade de se impor pelas várias formas de exploração e expropriação – e também, é óbvio, pela infinita capacidade, articulação instrumental, cultural, que eleva à potência máxima a conhecida “captura das subjetividades” – e que os mais antigos, bem como Marx, ainda carimbavam como “alienação” (no sentido menos metafísico, “alienar” significa “retirar de si”).

Também é importante destacar que entendemos por “fascismo resiliente” algo como Brecht, em que o fascismo está sempre no cio: pode modificar suas formas, roupagens, força e violência, ou sedução, mas ainda assim será fascismo. Um resumo de Umberto Eco (protofascismo) pode nos situar conceitualmente:

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como consequência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O Iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte” (ECO, 1998, p. 43).1

Sob as condições negacionistas e de barbarismo nacional, ainda reduzimos essa experiência protofascista, no Brasil, sob a alcunha de necrofascismo (MARTINEZ, 2020), como se fosse uma perversa conjugação (aberração) entre situações clássicas do fascismo histórico, nuance acentuado do fascismo nacional (racismo, sexismo, misoginia), de um terrorismo de Estado (os equipamentos de oxigênio desviados de Manaus são o melhor exemplo, além da condição de extinção dos Yanomami) das guerras híbridas (KORYBKO, 2018), da necropolítica (MBEMBE, 2018).

O terrorismo de Estado (para alguns, genocídio)2 se apoderou e pôs em ação muitas investidas institucionais contra o povo e a sociedade – num certo sentido de Estado de Exceção (AGAMBEM, 2002) ou cesarismo de Estado (GRAMSCI, 2000) –, em rota afirmativa do bonapartismo soft (LOSURDO, 2004), porém, vemos com resistência a ideia de um 18 Brumário. Desde o 8 de janeiro, o golpismo não abre mão de destruir a política, a democracia, a Constituição, os direitos fundamentais, isso é certo; contudo, falta inclusive força e clareza para que avancem em situação de bonapartismo (MARX, 1978).

Traremos ao menos uma condição em que a captura da subjetividade é orquestrada, melhor dizendo, programada (por programadores de algoritmos) – leia-se sociedade informática em rede, conceito que obteríamos unindo algo do capitalismo rentista a partir de Zuboff (2018) e a própria sociedade informática de Adam Schaff (1992). Outros casos que merecem análises em paralelo são o atual estágio do suposto Estado burguês e sua exposição atualíssima na forma de Estado rentista (MARTINEZ; ROIO, 2022). Sob esta intempérie das redes sociais planejadas, abocanhadas pelo faschio, ainda podemos investigar pelo prisma da multidão conduzida pelo Império – como total destruição da própria ideia de rede (LÉVY, 1996), contando-se a resistência desde os neozapatista (HARDT; NEGRI, 2005) até sua capitulação frente às 6, 7 empresas gigantes das comunicações, entretenimento, produtoras de plataformas digitais. Ao que também se somaria a incidência, proeminência da inteligência artificial no mundo da vida, nos negócios, nas instituições controlativas e repressivas (NSA) e a incapacitação jurídica de se fazer frente ao processo, sem que se tomem decisões efetivas.

A captura de subjetividades, no atual sistema capitalista, de acordo com Zuboff (2020), pode ser entendida como um “Cavalo de Troia Tecnológico”, que usa a experiência humana como matéria-prima para a extração de dados comportamentais, que tiranicamente “se alimenta das pessoas, mas não é das pessoas”, uma personalização que corrompe, ignora e passa por cima do que as pessoas têm no seu íntimo. O objetivo desse novo capitalismo não é dominar a natureza, mas sim, a condição humana:

O foco mudou de máquinas que superam os limites do nosso corpo para máquinas que modificam o comportamento de indivíduos, grupos e populações em prol de objetivos mercadológicos […] Em vez da violência dirigida ao nosso corpo, a terceira modernidade instrumentária age mais como um processo de domar (ZUBOFF, 2020, p. 578).

Outra conclusão já nos adianta que, as redes sociais têm algoritmos com programação fascista (PORTO, 2023). O que já se sabe faz bem uns 15 anos. Porém, podemos acrescentar ao efeito de aprisionamento dos algoritmos e o seu reverso, o cancelamento ou banóptico (BAUMAN, 2013), um tipo de prende e solta, numa articulação em que a linguagem deveria receber muito mais atenção.

Enquanto o capital acena com lucros imediatos e satisfação instantânea (“clique e fique rico”, “compre já sua alegria”, “seja feliz!”), a extrema direita (fascismo resiliente) anuncia a fórmula sagrada para o caos social (“mais violência”, “faça por você mesmo”, “cancele hoje um CPF”), e a esquerda usa verbos como: “estude, lute, faça, leia” (mesmo que seja chato). Ou ordens unidas desse tipo: “vá pra rua fazer política, saia do sofá”.

A esquerda também defende democracia, participação e responsabilidade, divisão de lucros (aqueles que o celular disse que eram seus). Outros somam a República, a Constituição e o Estado de Direito. O sujeito que não estuda faz tempo (talvez como reflexo da fraca educação pública) já vai confundir República com partido republicano e um nome vem à sua cabeça: Trump. Falando em Constituição irá sempre associar com a preferência nacional, o futebol. Daí, resta-nos as “quatro linhas da Constituição”. Logo, o Bozo virá à mente. Estado de Direito sempre foi exceção para os pobres. Então, alguém sempre lembrará de um juiz qualquer (montado em mordomias) que soltou um mega traficante. Há um caso recente no STF. Para reverter essa lógica, ainda precisamos de um projeto político de educação baseado na ciência, na Ética, na cidadania que cabe nas “sociedades em rede e de risco”.

Sem contar que o faschio usa bots e nós, por exemplo, agora utilizamos apenas o dedão da mão direita (e o corretor-sabotador), e que a extrema direita não disputa “narrativas” entre si, pois criam, vendem e consomem uma só mentira.

A extrema direita (farentistascismo) também tem uma só ideologia, do capital financeiro, sua disputa hegemônica é somente pra saber quem mandará no mundo: China ou EUA. As “esquerdas” têm narrativas ou só algumas pautas de esquerda (selecionadas para lançar fora de casa) e hegemonia significa o partido que porventura possa conquistar o poder. Não é pouca coisa e não é o projeto “atual” de ensino médio que fará essa mudança de chave.

Como desmobilizar, dissociar a atração do capitalismo rentista nos níveis mais profundos e elementares da consciência popular? Especialmente dos pobres, da classe trabalhadora, da classe média consumidora do mundo de Nárnia? A educação só pode desembocar na liberdade, na formação da consciência, da capacidade de agir com responsabilidade (autonomia), quando agimos com autoridade sobre o que fizemos ou propomos.

Quando a “educação” converge para outro caminho, é porque não é educação. É adestramento, castração da mente e da vontade, e isso ocorre porque somente a educação pode unir liberdade e responsabilidade, que é uma capacidade de ação com consciência, isto é, com razão, como desdobramento do raciocínio lógico-dedutivo e controlado pela consciência que se adquire com responsabilidade (maturidade de quem reflete o significado de si mesmo, de suas ações, intenções, emoções, interações).

Com esse objetivo, a educação digital, de jovens e adultos, tenderá aos mesmos resultados: interação, formação de consciência coletiva, capacidade de ação democrática. Definitivamente, a educação digital não pode ser limitada ao tecnicismo, capacitismo tecnológico, funcional, sistêmico ou produtivo. Como a educação em seu pressuposto (ação para a liberdade com responsabilidade), a educação digital poderá ser um forte instrumento, uma estratégia de aprofundamento aos propósitos do princípio democrático.

Notas
1 A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.
2 O problema aqui é não reunir todas as nomenclaturas distinguidas pela ONU, a fim de se conjurar como genocídio. Do ponto de vista do senso comum, sim, pode-se dizer que tivemos um genocídio; porém rigorosamente, juridicamente, não reunimos toda a tipologia.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância Líquida. Tradução: Alicia Capel Tatjer. Sâo Paulo: Ediciones Paidós, 2013.
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio.Multidão: guerra e democracia na era do império. São Paulo: Record, 2005.
KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
LÉVY. Pierre. O que é o virtual?São Paulo: Editora 34, 1996.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
MARTINEZ, Vinício Carrilho; ROIO, Marcos Del. Lógica disruptiva do capital redndista. Blog da Boitempo, 2022.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, Paz e Terra, 2011.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N1 Edições, 2018.
PORTO, Walter. Redes sociais são feitas para favorecer radicalismo de Bolsonaro, diz pesquisador. Folha de São Paulo, 2023.
SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1992.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et.al. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.


Quais são os impactos das tecnologias em nossa sociedade? Que consequências enfrentamos com a concentração das principais ferramentas tecnológicas que regem a vida de milhões de pessoas no domínio de um punhado de empresas estadunidenses? De que maneira é possível relacionar algoritmos a racismo, misoginia e outras formas de violência e opressão?

Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanonianaDeivison Faustino e Walter Lippold entrelaçam tecnologia e ciências humanas, apresentando um debate provocador sobre diferentes assuntos de nossa era. Inteligência artificial, internet das coisas, soberania digital, racismo algorítmico, big data, indústrias 4.0 e 5.0, segurança digital, software livre e valor da informação são alguns dos temas abordados.

A obra se inicia com um debate histórico e conceitual sobre o dilema das redes e a atualidade do colonialismo para, em seguida, discutir as expressões “colonialismo digital” e “racismo algorítmico”. Ao fim, apresenta uma reflexão sobre os possíveis caminhos a seguir, partindo das encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical. Para discutir a relação dialética entre tecnologia, dominação e desigualdade e propor pautas fundamentais a movimentos sociais, os autores dispõem, ao longo da obra, da contribuição de intelectuais como Frantz Fanon, Karl Marx, Julian Assange, Shoshana Zuboff, Byung-Chul Han, Marcos Dantas, entre outros.

A edição conta, ainda, com a colaboração de referências no debate nacional: a apresentação é de Sergio Amadeu, especialista em software livre e inclusão digital no Brasil; e o texto de orelha é de Tarcízio Silva, pesquisador e um dos maiores nomes do hacktivismo brasileiro.

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Vinício Carrilho Martinez é doutor em Ciências Sociais, professor Associado da UFSCar/DEd-PPGCTS.
Lucas Gonçalves da Gama é graduando em Filosofia/UFSCar.
Ana Cristina Oliveira Mahle é advogada especializada em LGPD, doutoranda pelo PPGCTS/UFScar.

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