O ataque ao PL das fake news

Do ponto de vista político, as plataformas, hoje em dia, encontram-se totalmente à margem de qualquer controle social ou estatal. Exercem exclusivo poder para decidir, pelos seus algoritmos, o que cada indivíduo pode visualizar ou ouvir, moldando os comportamentos individuais e sociais, inclusive os políticos e ideológicos.

Por Marcos Dantas

Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube, TikTok, Telegram, Twitter são meios de comunicação de massa, ou, como dizemos no nosso colonizado português abrasileirado, “mídia”. Eles proporcionam a 60 ou 70 milhões de brasileiros e brasileiras, sejam crianças, jovens ou adultos, sejam pobres, ricos ou remediados, sejam gaúchos num extremo ou acreanos no outro, acesso à informação, conhecimento, cultura e diversão. Sobretudo diversão. Exatamente como os meios, ou mídia, mais tradicionais: jornal, rádio, televisão.

A enorme parte da população que faz uso desses serviços é o mesmo público mediano da televisão: busca apenas entretenimento que não lhe demande maior esforço intelectual em seus momentos de lazer. Grande parte do que aí circula, seja nas “redes”, seja na TV, é politicamente inofensivo (valores ideológicos a parte…). A televisão, como sabemos, vende esse seu público para anunciantes, daí retirando suas receitas e lucros. O Facebook e o YouTube não fazem diferente: também obtém suas receitas e lucros da venda de suas audiências para anunciantes publicitários.

Porém, há uma grande e importantíssima diferença entre a mídia tradicional e essa nova mídia. A “velha” precisa investir não somente em tecnologia e instalações, mas sobretudo em gente para produzir os conteúdos que atrairão público para os seus anunciantes: jornalistas, artistas, animadores de auditório, roteiristas, produtores, e tudo o mais necessário à sua produção, inclusive marceneiros, cozinheiros, motoristas, eletricistas, trabalhadores anônimos, mas também necessários à realização de seus programas. A “nova” mídia não investe em nada disso.

Quem investe é você, caso tenha por projeto de vida se tornar “influenciador”. O risco é todo seu: comprar a filmadora, computadores, outros equipamentos necessários a uma boa produção; montar algum ambiente próprio para a gravação de imagem e som; identificar seu nicho de audiência; elaborar seus roteiros; aprender ou saber se comunicar com a voz e corpo etc., etc. Se der certo, parabéns! O YouTube ou TikTok repartirão com você uma parte (pequena) dos lucros. Se der errado, se você não alcançar o sucesso que se julgava merecedor, problema seu… a plataforma não perdeu nada. Nem Marx teria imaginado tamanha mais-valia!

A rigor, a imensa maioria dos usuários de Facebook, YouTube, TikTok e similares não está investindo seu tempo de atenção visando se tornar “influenciador(a)”: quer apenas “curtir” algo que considere interessante. E pode passar horas interagindo com fotos ou vídeos de gatinhos, comentários sobre vulgaridades cotidianas, quando não com imagens, digamos, mais excitantes… Uma minoria, porém significativa, entendeu que essas plataformas também funcionam como espaços de debate público sobre temas políticos, arte e cultura.

Houve, em passado não tão distante, a crença, bem difundida, que a internet permitiria a construção de um grande espaço de debate plural e democrático, livre dos filtros e censuras do Estado e das agendas dominantes da “velha” mídia. E quando as plataformas de “redes sociais” surgiram, a partir dos Estados Unidos, oferecendo serviços “gratuitos”, esses crentes de boa fé transferiram para elas essa mesma esperança, sem perceberem que, agora, estavam ingressando num playground privado: vocês podem brincar, mas o espaço tem dono e seu uso pode ter limites. Os termos de uso.

Para as plataformas, fotos de gatinhos ou discurso político têm o mesmo valor – sim, valor, naquele sentido marxiano do termo: são mercadorias a serem trocadas no mercado. Seus cientistas e engenheiros(as) desenvolvem algoritmos que identificam pessoas interessadas nas fotos ou no discurso, e empresas interessadas em enviar mensagens publicitárias para essas pessoas. É um negócio muito melhor do que o da TV. Aqui, a emissora, com base em amostragens estatísticas, vende, para as agências de publicidade, um certo perfil de público, em algum horário de programação.

Nas plataformas, os anúncios quase podem ser individuados – diz-se “microtargeting” no dialeto das agências –, isto é: um anúncio específico pode ser enviado para um consumidor potencial específico. Se você curte fotos de gatinhos, poderá ver anúncios de produtos para “pets”. Se você prefere discurso político, quem sabe não estará interessado na mais recente bibliografia de uma celebridade política, lançada por alguma poderosa editora nas livrarias de aeroporto?

Como isso é possível?

É possível porque tudo o que você faz nas “redes” ou nas “buscas” – absolutamente tudo – revela quem você é. Enquanto você está “navegando”, seja trabalhando, estudando ou se divertindo, os seus pacotes de bits vão sendo registrados, nos grandes computadores das plataformas, na forma de dados sobre seus gostos, crenças, desejos, além de idade, sexo, estado de saúde, nível educacional, nível de renda, também relações de amizade, estado civil… com quem você passou a noite passada ou o quê comprou na farmácia.

Os dados são, para a “nova” mídia, o que era o Ibope para a “velha” mídia. E como a Alphabet, dona do YouTube, ou a Meta, dona do Facebook e Instagram, podem colher minuto a minuto, dados de 2 a 3 bilhões de pessoas em todo o mundo diariamente, para elas os dados são autêntica mina de ouro. Ou, como escreveu, em matéria de capa, o The Economist, edição de 17 de abril de 2017, “os dados são o petróleo do século XXI”. Com uma extraordinária vantagem: é uma mina inesgotável.

Em qualquer país do mundo, Brasil inclusive, empresas mineradoras podem extrair petróleo ou ouro, obedecendo a leis específicas, após os devidos procedimentos administrativos, e pagando os respectivos royalties, além dos demais impostos usuais. Alphabet, Meta ou TikTok mineram o seu ouro, ou petróleo, sem para isso terem recebido qualquer autorização, nem muito menos recolher impostos à altura do que lucram, em todo o mundo. Em 2022, a receita operacional da Alphabet foi de USD 282,8 bilhões e seu lucro líquido (após impostos), de USD 60 bilhões.1 A receita operacional da Meta foi de USD 116,6 bilhões e o lucro líquido, de USD 23,2 bilhões.2

Para efeito de comparação, o tamanho do comércio entre o Brasil e a China em 2022, foi de USD 150 bilhões, com um saldo favorável ao Brasil de USD 29 bilhões. Outra comparação sugestiva: em 2022, a receita do Grupo Globo foi de R$ 15,1 bilhões ou, ao dólar médio de R$ 5,5, USD 2,7 bilhões. O lucro líquido do grupo foi de R$ 1,25 bilhão, ou USD 227,3 milhões. Chega a ser risível as preocupações com supostos ganhos dessa tenebrosa Globo, se pensarmos nos efeitos que o PL 2.630 poderá ter nos lucros daquelas grandes plataformas estrangeiras.

Que efeitos?

A Alphabet obtém 48% das suas receitas no mercado estadunidense e 52% fora dos Estados Unidos.3 A Meta obtém 43% das suas receitas nos Estados Unidos e 57%, fora.4 É muito provável que as legislações que a União Europeia, a Austrália, o Canadá, agora o Brasil, estão adotando, afetando diretamente o modelo de negócios das grandes plataformas, venha a impactar negativamente nas receitas e lucros obtidos do petróleo em forma de dados que essas duas, mas, também, Twitter, Telegram etc., mineram e extraem pelo mundo a fora.

É disso que se trata. E por isso, nos últimos dias, as grandes plataformas abriram fogo contra o PL relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).

Caso esse mercado – sublinhemos, estamos tratando de mercado – caso esse mercado venha a ser regulado, os custos, para as plataformas estadunidenses, subirão.5 Logo, em troca, os ganhos para a sociedade também subirão pois os lucros poderão ser melhor distribuídos entre outros agentes sociais, inclusive empresas jornalísticas brasileiras e os(as) trabalhadores que elas empregam. Hoje, aqueles lucros se dirigem todos para os Estados Unidos, remunerando com bilhões de dólares por ano seus principais acionistas (nomes bem conhecidos) e ainda centenas de bancos, clubes financeiros, corretoras de valores, fundos de previdência privada que detém cerca de 70% do total das ações em cada uma dessas corporações, especulando com esses papéis nas bolsas de valores.

Segundo o consultor Christian Dippon, se essa mania de impor leis regulatórias às plataformas pegar mundo a fora, os preços para os consumidores (estadunidenses) poderiam subir; as receitas dos serviços de “nuvem” (sediados em território dos Estados Unidos) e de publicidade cairiam 7,8%; e a economia estadunidense poderia perder 425 mil empregos diretos e indiretos.6 Até agora, marcos regulatórios já avançaram na Europa (DMA e DSA), na Austrália, e nem falemos da China. O Brasil, com o PL 2.630, poderá também ocupar o seu lugar como referência mundial nesse processo. E poderá abocanhar algum pedaço daqueles empregos que os Estados Unidos estão sendo obrigados a devolver para o resto do mundo….

Guerra pelos dados

Não admira que as grandes plataformas tenham aberto fogo contra o PL 2.630/2020 que propõe instituir uma Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Vulgarmente apelidado “PL das fake news”, às vezes “PL da desinformação”, o PL não trata exatamente disso. E por um motivo muito simples: seria impossível definir objetivamente “mentira” ou “desinformação” numa lei. Mas é possível definir objetivamente crimes contra a pessoa, até contra a sociedade, esta corporificada na nossa Constituição, instituições e leis decorrentes. Racismo é crime, por exemplo. Há uma lei que assim define: lei 7.716/1989.

Admira, e muito, que, por detalhes secundários do PL, tanta gente que se diz “progressista”, ou mesmo de “esquerda”, tenha se colocado contra ele. O tal artigo que supostamente estaria carreando “milhões” para “a Globo“, além de, na verdade, estar cobrando uma espécie de royalty para remunerar o trabalho brasileiro em toda a imprensa nacional, não em uma exclusiva empresa editorial, é apenas um artigo num corpo total de 60 artigos. Tem muito mais coisa – e muito mais importante – para ser debatida, até mesmo aperfeiçoada, nesse PL.

O PL 2.630 estabelece objetivamente que as plataformas de “redes sociais”, “busca” e “mensageria” não poderão mais permitir que, através dos seus sistemas, sejam praticados crimes claramente tipificados na Constituição e na legislação brasileiras a exemplo, já citado, do racismo, também golpe de Estado, terrorismo, violências de gênero e contra crianças e adolescentes, ainda outros. Até agora, as plataformas se julgam isentas de tomar qualquer providência que evite fazer delas, também, cúmplices desses crimes.

Escudam-se nos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Por estes artigos, o “provedor de aplicações de internet” não pode ser responsabilizado civilmente pelos conteúdos postados pelos seus usuários, exceto se descumprir medida judicial. Os formuladores desse artigo entendiam, ingenuamente, que serviços como Facebook ou YouTube não passavam de sistemas tecnológicos construídos para permitir o livre debate de ideias ou divulgação de notícias, neutros em relação aos conteúdos que por eles circulavam. Não passou pela cabeça de ninguém que, numa sociedade capitalista, não pode existir almoço grátis: essas tecnologias não seriam tão generosamente oferecidas para o “livre debate de ideias” se não fosse possível lucrar, de algum modo, com o serviço oferecido.

Por que as plataformas seriam contra regras que buscam coibir crimes praticados através delas? É como perguntar: por que um lojista cujo negócio é vender armas seria contra alguma lei que restringisse o comércio de armas? Resposta óbvia… No caso aqui apresentado, a resposta é tanto econômica, quanto política.

Do ponto de vista econômico, mensagem de amor ou mensagem de ódio, tudo é mercadoria reduzida a dados. Como já nos ensinou Marx, na mercadoria, os valores estéticos e éticos – o real valor de uso – são anulados e equalizados pelo único valor que importa: o de troca. Nos últimos anos, por razões cuja explicação nos obrigaria a duplicar o tamanho deste artigo, os discursos de ódio, negacionistas, obscurantistas, fascistas passaram a ocupar e podem seguir ocupando uma grande, nada desprezível, fatia daquelas descomunais receitas e correspondentes lucros. Os acionistas das plataformas, especuladores na Nasdaq e outras bolsas, não querem deixar de bamburrar tamanhas pepitas…

Do ponto de vista político, as plataformas, hoje em dia, encontram-se totalmente à margem de qualquer controle social ou estatal. Exercem exclusivo poder para decidir, pelos seus algoritmos, o que cada indivíduo pode visualizar ou ouvir, moldando os comportamentos individuais e sociais, inclusive os políticos e ideológicos. A partir dos Estados Unidos podem decidir – e têm decidido – eleições. Se os dados são o “petróleo do século XXI”, lembremos que o petróleo era (ainda é) não somente fonte de riqueza mas também de poder. Guerras, golpes de estado, até assassinatos foram cometidos para decidir quem controlava as fontes de petróleo.

Quando a Alphabet, na página inicial de busca do Google, planta mensagens contra o PL 2.630, ela sabe que está travando uma verdadeira guerra para definir quem controla os dados: o capital financeiro que a sustenta ou o trabalho geral da sociedade que os produz?

Notas
1 Fonte: Alphabet Inc., Form 10-K, US Securities and Exchange Commision, Ano fiscal encerrado em 31/12/2022
2 Fonte: Meta Platforms, Inc., Form 10-K, US Securities and Exchange Commision, Ano fiscal encerrado em 31/12/2022.
3 Fonte: Alphabet Inc., op. cit.
4 Fonte: Meta Platforms, Inc., op. cit.
5 Marcos Dantas, “O que fazer com o Telegram”.
6 Christian M. Dippon, “Economic Value of Internet Intermediaries and the Role of Liability Protections”.


Quais são os impactos das tecnologias em nossa sociedade? Que consequências enfrentamos com a concentração das principais ferramentas tecnológicas que regem a vida de milhões de pessoas no domínio de um punhado de empresas estadunidenses? De que maneira é possível relacionar algoritmos a racismo, misoginia e outras formas de violência e opressão?

Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanonianaDeivison Faustino e Walter Lippold entrelaçam tecnologia e ciências humanas, apresentando um debate provocador sobre diferentes assuntos de nossa era. Inteligência artificial, internet das coisas, soberania digital, racismo algorítmico, big data, indústrias 4.0 e 5.0, segurança digital, software livre e valor da informação são alguns dos temas abordados.

A obra se inicia com um debate histórico e conceitual sobre o dilema das redes e a atualidade do colonialismo para, em seguida, discutir as expressões “colonialismo digital” e “racismo algorítmico”. Ao fim, apresenta uma reflexão sobre os possíveis caminhos a seguir, partindo das encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical. Para discutir a relação dialética entre tecnologia, dominação e desigualdade e propor pautas fundamentais a movimentos sociais, os autores dispõem, ao longo da obra, da contribuição de intelectuais como Frantz Fanon, Karl Marx, Julian Assange, Shoshana Zuboff, Byung-Chul Han, Marcos Dantas, entre outros.

A edição conta, ainda, com a colaboração de referências no debate nacional: a apresentação é de Sergio Amadeu, especialista em software livre e inclusão digital no Brasil; e o texto de orelha é de Tarcízio Silva, pesquisador e um dos maiores nomes do hacktivismo brasileiro.

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Marcos Dantas
 é professor titular aposentado da Escola de Comunicação da UFRJ e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Autor, entre outros livros, de O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet, juntamente com Denise Moura, Gabriela Raulino e Larissa Ormay.

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