O que fazemos com nossos legados?
Karina Menezes escreve sobre "Colonialismo digital", livro de maio do Armas da crítica: "Deivison Faustino e Walter Lippold apresentam a construção do legado colonial, racializado, perverso e excludente que nos foi deixado e vem sendo deliberadamente perpetuado por meio de tecnologias estruturantes e estruturais da economia do capital, sem que a maioria de nós se dê conta disso."
ARTE: JOSAN GONZALEZ
Por Karina Moreira Menezes
Enquanto poucas pessoas no mundo são herdeiras de bens como dinheiro, carro, casa, investimento e outros itens com valor financeiro, a maior parte da humanidade herda um legado que não desejou. Relatórios que analisam a riqueza global mostram que, há muitos anos, os 10% mais ricos detêm mais de 80% da riqueza do planeta, e quase metade do montante está nas mãos de apenas 1% dessas pessoas. Não obstante, 3 bilhões de pessoas não têm sequer alimentação saudável – quadro que se agravou com a pandemia de covid-19, que alastrou a fome. Tanto a abundância quanto a escassez deixam marcas.
Com ou sem herança material, todos e todas recebemos um legado e construímos outro. Isso significa, por um lado, que introjetamos em nosso ser valores culturais simbólicos, éticos, estéticos e morais compartilhados socialmente e, por outro tempo, somos passíveis de sermos lembrados pelo registro da nossa existência, através de imagens, palavras e atitudes que podem ser eternizadas por tecnologias informacionais.
Quando nos questionamos o que fazemos com nosso legado, encaramos o passado que não podemos mudar, mirando o futuro, mas nos posicionamos no presente, conscientes de que o futuro será exatamente como é o agora se não fizermos nada para mudar.
Na área de tecnologia, um sistema legado pode ser compreendido como uma plataforma ou uma infraestrutura digital que se torna obsoleta, ultrapassada. Ele já passou por várias etapas de crescimento, muitas vezes sem grandes planejamentos, mesmo tendo sido desenvolvido com intenções claras e almejando vida longa. Então, a esse sistema são adicionadas camadas de informações e modificações manuais, determinadas por aspectos de sua origem, que se tornam limitantes com o passar do tempo. Limitantes, instáveis e difíceis de compreender e modificar. Com isso, cabe a pergunta: o que fazer com um sistema legado? Atualizá-lo, substituí-lo ou mantê-lo? É disso que Colonialismo digital trata: nossos legados.
O livro interessa a todas as pessoas instigadas por tecnologias. Interessa a você, a quem está a sua volta – tanto no mundo material quanto no virtual –, independentemente do perfil, do status, da história. Sem exceção.
Alguns afirmam que parte da humanidade está se tornando ciborgue – pessoas cuja existência integra-se às tecnologias digitais – enquanto outra parte nem chega a ser considerada humana. Existe, então, essa humanidade digital que exibe seu poder financeiro, seu bem-estar, sua positividade e seus méritos good vibes, e existe aquela inumanidade invisibilizada e desconhecida; entre elas, observamos uma trama de existências diversas, desiguais e eventualmente paradoxais.
Deivison Faustino e Walter Lippold apresentam a construção do legado colonial, racializado, perverso e excludente que nos foi deixado e vem sendo deliberadamente perpetuado por meio de tecnologias estruturantes e estruturais da economia do capital, sem que a maioria de nós se dê conta disso. Ao apresentar estudos sobre Frantz Fanon, os autores denunciam marcas das violências físicas e simbólicas sobre a psique humana e como elas concorrem para permanentes aceitação e reprodução de opressões em diferentes esferas sociais. O caminho, como dizem, é arriscado, mas a necessidade de fortalecimento dos pensamentos decoloniais que rompem com legados hegemônicos, estruturados em valores de exploração e expropriação de bens materiais, simbólicos e de vidas, é urgente.
Ciência e tecnologia nos levam a alcançar longevidade, saúde, conforto, mas não apenas isso. O reconhecimento de que vivemos em um mundo informacional extremamente desigual, no qual tecnologias em rede são usadas de modo impune para manipular a cognição humana e algoritmos são usados para decidir quem vive ou quem morre, torna visíveis as barreiras materiais, políticas e culturais que nos impedem de assumir o protagonismo na criação de tecnologias e de convivências mais humanizadas.
Diante disso, arrisco dizer que o modelo econômico capitalista é um sistema legado erguido sobre bases com as quais precisamos romper. A partir desta obra, descortina-se o entendimento de que as atualizações a esse sistema estão propensas a dilacerar cada vez mais nossa existência, porque é um sistema que se alimenta e cresce com as crises que ele mesmo produz. Portanto, manter esse sistema capitalista não deveria ser opção, restando-nos substituí-lo. E um dos maiores desafios consiste em encontrar respostas possíveis para essa substituição; afinal, como cogitar a inexistência de algo que já está tão naturalizado? Somos gerações inteiras nascidas e criadas sob o jugo desse modelo econômico, presenciando formas de autoritarismo disseminadas por processos de colonização fortemente racializantes. Fatalmente, começamos a achar comum e natural aquilo que deveria nos incomodar.
Não há resposta pronta, mas surgem esperanças nas burlas produzidas por aqueles que questionam o modus operandi da criação de conhecimentos e da acumulação de riquezas no mundo. Há esperança na luta daqueles que questionam seu próprio legado.
Nesse sentido, a história do hackerismo contemporâneo é transpassada por práticas questionadoras de legados hegemônicos. A desconstrução do hacker como criminoso do mundo digital é tratada nesta obra a partir do resgate de diferentes episódios históricos nos quais a atitude hacker tem forte inclinação à ação subversiva, inovadora e contra-hegemônica. Portanto, o hackerismo se identifica com lutas libertárias e com orientações políticas anticapitalistas. Sem romantismo, reconhece-se a existência de hackers capitalistas, mesmo que os termos “capitalismo” e “hacker” tenham, no passado, surgido com semânticas opostas. Porém, ao descortinar a necessidade premente de nos apropriarmos da obra de Fanon no contexto tecnológico contemporâneo, a junção hacker-fanoniana ganha sentido e projeção porque traz à consciência as sequelas perversas da racialização e do colonialismo digital e nos mostra que precisamos nos apropriar criticamente de nossos legados e das tecnologias se quisermos criar fissuras e brechas no legado presente, a fim de potencialmente alterar – ou quem sabe, revolucionar – o legado futuro.
Quais são os impactos das tecnologias em nossa sociedade? Que consequências enfrentamos com a concentração das principais ferramentas tecnológicas que regem a vida de milhões de pessoas no domínio de um punhado de empresas estadunidenses? De que maneira é possível relacionar algoritmos a racismo, misoginia e outras formas de violência e opressão?
Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, Deivison Faustino e Walter Lippold entrelaçam tecnologia e ciências humanas, apresentando um debate provocador sobre diferentes assuntos de nossa era. Inteligência artificial, internet das coisas, soberania digital, racismo algorítmico, big data, indústrias 4.0 e 5.0, segurança digital, software livre e valor da informação são alguns dos temas abordados.
A obra se inicia com um debate histórico e conceitual sobre o dilema das redes e a atualidade do colonialismo para, em seguida, discutir as expressões “colonialismo digital” e “racismo algorítmico”. Ao fim, apresenta uma reflexão sobre os possíveis caminhos a seguir, partindo das encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical. Para discutir a relação dialética entre tecnologia, dominação e desigualdade e propor pautas fundamentais a movimentos sociais, os autores dispõem, ao longo da obra, da contribuição de intelectuais como Frantz Fanon, Karl Marx, Julian Assange, Shoshana Zuboff, Byung-Chul Han, Marcos Dantas, entre outros.
A edição conta, ainda, com a colaboração de referências no debate nacional: a apresentação é de Sergio Amadeu, especialista em software livre e inclusão digital no Brasil; e o texto de orelha é de Tarcízio Silva, pesquisador e um dos maiores nomes do hacktivismo brasileiro.
15 de maio é o último dia para assinar o Armas da crítica a tempo de receber a caixa do mês do nosso clube com:
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Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana é para quem gostou de:
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Karina Moreira Menezes é professora da UFBA, integrante do Raul Hacker Club.
Republicou isso em Experiências da Leiturae comentado:
Um livro muito recomendável!
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