Arrigo e a história das lutas progressistas e democráticas no Brasil

É importante que o livro seja lido, em especial pelos jovens, para que conheçam nossa história e valorizem as lutas progressistas travadas no país por tantos democratas de diversas perspectivas e que isso os ajude a nunca mais apoiar adeptos da ditadura e da tortura.

Baionetas e libélulas, Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, 1967. Evandro Teixeira/Acervo IMS

Por Marly Vianna

Marcelo Ridenti é um brilhante sociólogo cujas obras já são clássicas, como, por exemplo, O fantasma da revolução brasileira, entre tantas outras. Seu atual livro, Arrigo, não acadêmico pelas normas da Academia, é, na verdade, um livro de História do Brasil, história romanceada, mas que demandou ampla pesquisa em arquivos, livros e entrevistas.

Arrigo é uma incursão pela História do Brasil de 1917 ao final do século, ou melhor, é uma história das lutas progressistas e democráticas do Brasil, de seus atores anarquistas, democratas e principalmente comunistas, suas lutas, seus ideais, suas esperanças e a brutal repressão a que foram submetidos, da Clevelândia de Artur Bernardes aos porões da ditadura militar de 1964. Nem por isso desistiram. E tais lutas não ficaram limitadas ao Brasil. As personagens do livro, assim como na vida real, lutaram contra a reação da extrema direita e do nazifascismo não só contra o integralismo no Brasil, mas em defesa da República Espanhola, nas guerrilhas contra os nazistas que ocuparam a França, durante a Segunda Guerra Mundial, tendo papel fundamental na sua libertação; lutaram também em defesa da então União Soviética, do país que acabou com o capitalismo em seu território.

Para romancear estas lutas, Marcelo Ridenti criou uma personagem, Arrigo, que, mantendo alguma autonomia que o gênero romance permite, incorpora inúmeros heróis das lutas progressistas travadas pelos comunistas brasileiros. Arrigo é Apolônio de Carvalho – em sua luta democrática na Aliança Nacional Libertadora, em 1935; na defesa da República, na Guerra Civil Espanhola; na luta guerrilheira pela libertação do Sul da França da dominação nazista, na prisão e tortura sofridas depois do golpe de 1964, na libertação dos cárceres da ditadura em troca do embaixador alemão em 1970 e em seu exílio na Argélia. Arrigo é Jacob Gorender que, clandestino, escrevia brilhantes capítulos para coleções importantes – sob pseudônimo, claro… Arrigo talvez seja Armênio Guedes, trabalhando como jornalista, depois da volta do exílio. Arrigo é personagem da Var-Palmares, no roubo do cofre milionário; é participante da ALN, treinando guerrilha em Cuba; Arrigo provavelmente será Carlos Marighella, que em meio à luta revolucionária está sempre em busca de novos amores. Arrigo mantém contato com anarquistas – de quem, como os futuros comunistas, recebeu as primeiras lições revolucionárias; conheceu Astrojildo Pereira, Everardo Dias e o brilhante grupo que deixou o partido por aderir ao trotskismo e foi militante do PCB. Muito importante a meu ver, Ridenti não toma partido dessa ou daquela organização revolucionária: respeita os ideais e as lutas de todos que batalharam por um mundo melhor em nosso país – Arrigo incorpora todos eles.

Não só de grandes lutas trata o romance. Além da humanidade conferida às personagens principais, Ridenti fala de vidas e lutas de pessoas comuns, quero dizer, que participaram da vida dos revolucionários não diretamente ligadas às lutas, quase todas mulheres, como a mãe de Arrigo, suas várias namoradas e amigos e, em especial, as “andorinhas”, nome poético para as várias prostitutas que ajudaram Arrigo. Eu não considero que tais mulheres tenham tido um papel secundário na história. É evidente que o mundo de atuação de Arrigo é masculino. É masculino porque o mundo era (ainda é) masculino, e no meio revolucionário também, da mesma forma que a sociedade. Mas a mãe de Arrigo não abdicou de sua personalidade, ao contrário, deixou um marido rico e poderoso para viver com um anarquista, o tio Mário. Isso não é subalternidade, ainda mais considerando-se a época. A namorada permanente de Arrigo, Aurora, não deixou sua vida para ser um complemento de seu companheiro. E as andorinhas arriscaram suas vidas – algumas a perderam – por uma escolha de ajuda ao revolucionário. Isso também não é subalternidade.

Outro aspecto importante do romance, e bastante histórico, embora muito negligenciado, é a humanidade das personagens. Não vivem só de grandes ideais e grandes lutas e enfrentamentos da repressão. Têm muitas falhas humanas comuns, e, inclusive, não se esconde a falta de caráter de um dirigente revolucionário. Principalmente, e bem destacados, são os conflitos que os revolucionários vivem dentro de sua militância: o enfrentamento do stalinismo, a luta fratricida entre stalinistas e não stalinistas na Guerra Civil Espanhola, luta que assassinou Alberto Besouchet, os erros crassos do partido. O que fazer? A crítica era censurada e, embora reconhecendo os erros, sair do partido seria abandonar o significado de suas vidas.

Sobre a luta entre stalinistas e não stalinistas, na Espanha, um dos melhores momentos do livro – vou deixar que os leitores o busquem – é a atitude de Diana em relação a “Pepe”, o enviado de Moscou. O livro, de história romanceada, tem algumas passagens misteriosas, fantásticas, mas seu relato é um relato fiel do período da História do Brasil de que trata. É importante que o livro seja lido, em especial pelos jovens. No dizer do autor em recente palestra, que os jovens conheçam nossa história e valorizem as lutas progressistas travadas no país por tantos democratas de diversas perspectivas e que isso os ajude a nunca mais apoiar adeptos da ditadura e da tortura. Arrigo, que vem interessado na política desde 1917 e lutando desde sempre, chega a 1964 e toma conhecimento das bárbaras torturas nos porões da ditadura e sofre pela perda de amigos assassinados e desaparecidos. Também tem que exilar-se e refletir sobre tantas lutas e tantas derrotas. Ao voltar ao Brasil, depois da anistia, alguém lhe pergunta se tanto sacrifício, tanto sofrimento e ser derrotado, valeu a pena. Valeu. A luta continua.

Resenha originalmente publicada no site marxismo21.

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Arrigo apresenta ao leitor aventuras e desventuras do personagem que dá nome ao livro. Em uma visita corriqueira, o narrador, participante da narrativa, encontra Arrigo inerte em uma cadeira de balanço. Quando decide procurar ajuda, a porta emperra e o impede de sair do apartamento. A partir daí, decide terminar um antigo projeto de contar a história de Arrigo e companheiros enquanto aguarda socorro para tirá-los do esvaziado edifício Esplendor, no centro de São Paulo. Autor de diversas obras de não ficção, Ridenti traz em seu romance de estreia uma mescla de realismo e fantasia e revisita pela ficção cem anos de história da esquerda brasileira. O livro de Marcelo Ridenti tem texto de orelha de Michael Löwy, quarta capa de Regina Dalcastagnè, Maria Arminda Nascimento Arruda e João Quartim de Moraes e pintura da capa de Rodrigo Branco.

Disponível em nossa loja virtual e e-book à venda nas principais lojas do ramo:


Veja o lançamento de Arrigo com debate entre Marcelo Ridenti, Michael Löwy e Fabio Mascaro Querido, mediação de Sheyla Diniz, na TV Boitempo:


Marcelo Ridenti fez uma seleção de músicas que marcaram a vida do personagem principal de seu livro, mas que também atravessaram a história da esquerda brasileira nos últimos 100 anos.

Confira aqui no Blog da Boitempo todas as playlists de Arrigo.

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Marly Vianna é doutora em história pela USP, professora aposentada da Universidade Federal de São Carlos. Integra o conselho editorial da coleção Arsenal Lênin da Boitempo.

1 comentário em Arrigo e a história das lutas progressistas e democráticas no Brasil

  1. joaoaurigarcez // 11/04/2023 às 6:14 pm // Responder

    Obrigado pelo tempo que ganho com esta leitura. Obrigado por existirem em meu tempo e me darem o direito de manter-me vivo ao respirar a atmosfera que seus textos tem. Obrigado, obrigado e obrigado. Sim, a luta continua.

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