Elena Ferrante e o realismo feminista
Quem sabe o realismo feminista não seja o grande adversário do realismo capitalista hoje em dia. Talvez essa literatura figure uma recusa em considerar a transformação radical da sociedade como uma ilusão. Quem sabe a tetralogia, afinal, consista não numa nostalgia do passado, mas num resgate das esperanças de um passado que, como mostra o sucesso de Ferrante, ainda encontra eco no presente.
ILUSTRAÇÃO: SARAH WILKINS/LOS ANGELES TIMES
Por Bruna Della Torre
“Terminei concluindo que antes de tudo eu devia entender melhor o que eu era. Indagar sobre minha condição de mulher. Tinha me excedido, fizera um enorme esforço para adquirir capacidades masculinas. Acreditava que devia saber tudo, tratar de tudo. O que me importava a política, as lutas? Queria fazer bonito diante dos homens, estar à altura. À altura de quê? Da razão deles, a mais irracional. Tanto esforço para memorizar frases em voga, tanta energia desperdiçada. Tinha sido condicionada pelo estudo, que havia modelado minha cabeça, minha voz. Que pactos secretos assumira intimamente a fim de me destacar? E agora, depois do duro esforço de aprender, o que precisava desaprender?”
Elena Ferrante, História de quem foge e de quem fica
“O que vem depois do pós-estruturalismo?” É com essa pergunta interessante (que retoma o tema do fim da totalidade e da narrativa no pós-modernismo, problema essencial para o romance) que Monika Kaup inicia seu livro New Ecological Realisms, no qual aborda, entre outros, a literatura de ficção científica de Octavia Butler e Margaret Atwood. Na trilha de Fredric Jameson, Kaup argumenta que a literatura distópica seria uma espécie de retorno do realismo na literatura contemporânea em sua intenção de figurar as grandes crises ecológicas e sociais de nosso tempo. Assim como a literatura de horror, a ficção científica tem sido nas últimas décadas um lócus privilegiado da literatura feminista. A vitória no Oscar do filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo confirma, no cinema, a consagração do gênero. Para além dos clichês sobre o multiverso, o filme aborda uma das relações mais tensas do feminismo: aquela entre mãe e filha que, na trama, dá forma a todos os universos de possibilidades tanto de uma, quanto de outra. A utopia do filme (talvez presente na alegoria do donut) é seu negativo: a dissolução dessa tensão entre mãe e filha – uma tensão herdada do poder patriarcal, do qual a mãe passa a ser o mais problemático vetor de transmissão – tem o poder de dissolver também todos os universos conhecidos por nós – abrindo espaço para um novo mundo surgir. Esse realismo seria, nesse sentido, um realismo que figura tensões importantes ao mesmo tempo que inclui nessa figuração um elemento utópico subjacente à nossa era.
No lado oposto, um novo realismo feminista se anuncia também na chamada “literatura de testemunho” em suas várias manifestações. O Nobel atribuído à Svetlana Alexiévitch e à Annie Ernaux é evidência disso. Essa literatura é igualmente marcada pelo esforço de narrar as experiências da generificação das mulheres. Alexiévitch, em A Guerra não tem rosto de mulher, dá voz a mulheres cuja atuação na URSS foi central na derrota do fascismo e que tiveram que apagar sua história de luta (com toda a barbárie e coragem que a envolveu) para se acomodar a uma sociedade comunista que não quis renunciar às mulheres como meios de produção (e reprodução). Essas mulheres não voltaram mudas do campo de batalha, como afirmou Walter Benjamin sobre os soldados da Primeira Grande Guerra, mas foram forçadas a se calar. A principal condição de reintegração pela via do casamento no pós-guerra foi a negação de sua participação na luta contra o fascismo: os homens não queriam lidar com mulheres que possuíam a vivência do campo de batalha e que conheceram a guerra. A literatura polifônica de Alexiévitch quebra um silêncio de décadas. Ernaux, assim como Carolina Maria de Jesus, reclama o direito de narrar e interpretar a própria vida e, portanto, de narrar aquilo que ainda não havia sido narrado. A primeira traz o aborto e a vergonha para o centro da literatura contemporânea, a segunda, a fome e as humilhações cotidianas produzidas pelo racismo. A forma do romance – se é que ainda podemos falar nisso – também sai transformada desses experimentos – seu “realismo” é o da vivência em primeira pessoa, uma espécie de retorno ao “foi exatamente assim que aconteceu” do romance antes de sua dissolução histórica.
Comparados a essas duas tendências, os livros de Elena Ferrante são mais convencionais e apresentam um realismo que parece ser menos original que os dois movimentos anteriores em termos literários. A estrutura de seus romances é folhetinesca e melodramática; visa instigar a leitura por meio de ganchos, reviravoltas e intrigas. De fato, os livros de Ferrante estão quase que letalmente próximos da literatura de entretenimento. Não é à toa que seu nome se tornou best-seller, logo passou às telas e atualmente é quase uma marca.
Devido à “febre Ferrante” e aos meus próprios preconceitos com esse tipo de literatura, demorei para ler esses livros. Quando li, me arrependi amargamente de não o ter feito antes. Ferrante ficou comigo desde então e foi assunto de boas conversas sobre literatura e feminismo nos últimos anos, com amigas e amigos queridos. Aliás, esse não é um dos menores méritos de Ferrante: tornar a literatura objeto de conversas cotidianas para além do círculo dos especialistas acadêmicos numa era pós-literária na qual a ansiedade – como correspondente subjetiva da precarização – torna insustentável para a estrutura da atenção contemporânea o tempo da forma romance.
Por isso, gostaria de apresentar nessa coluna do mês de luta das mulheres algumas reflexões (de leitora, não de especialista) sobre essa autora e sobre a chamada tetralogia napolitana, buscando levantar questões para uma possível interpretação marxista do romance. Nesse sentido, gostaria de propor aqui uma espécie de exercício rápido e – mesmo considerando o caráter comercial de Ferrante – repensar a tetralogia napolitana (composta pelos romances A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica, História da menina perdida) à luz das tipologias lukácsianas do romance e de algumas reflexões de Fredric Jameson e Mark Fisher.
A tetralogia começa pelo fim. Em espírito proustiano, narra o devir do próprio romance enquanto tal (inserindo em seu realismo um elemento de autorreferencialidade típico do modernismo, já esgotado pelos clichês em torno de Proust). Ele começa com o desaparecimento de Raffaella Cerullo (Lila), que impele Elena Grecco (Lenu) a contar a história da amizade de ambas. A tensão entre as duas é o eixo da narrativa. O romance ocupa-se das passagens de ambas da infância à maturidade, mas conta uma só história ao contar duas: trata-se da rememoração da vida de Lenu por meio de sua obsessão com Lila. Como o livro é suficientemente conhecido, vou poupar a leitora do resumo (que às vezes mais atrapalha que ajuda). Mas vale ressaltar que essa relação entre as duas, apresentada de maneira unilateral por Lenu, estrutura uma busca e o romance trata do caminho percorrido pela última para se tornar escritora e autora do livro Uma amizade, que é e não é o que estamos lendo (outro lugar-comum proustiano). Em sua busca, ela se depara com uma série de obstáculos: a família (que não deseja que ela estude), a máfia (que coordena as relações de dependência em sua cidade e que constitui o único meio de ascensão social ali), a universidade (na qual redescobre a estrutura masculinista e de certa maneira mafiosa do favor), o amor (ou os homens não vão tolerar suas aspirações intelectuais ou vão mobilizá-las como meio de subordinação), entre outros. Elena sai da periferia para a cidade grande (Pisa, depois Florença e Turim – com um retorno a Nápoles no meio) e lá perde suas ilusões com o casamento, a profissão, a universidade, o esclarecimento – ela redescobre fora de Nápoles outras versões da violência da qual buscou escapar. Nápoles, nesse sentido, é o espaço no qual se passa o romance (um espaço ampliado a ponto de encobrir o mundo) e uma espécie de fantasma de um passado presente, que acompanha Lenu aonde quer que vá (ou seja, uma cidade que se desdobra simultaneamente no tempo e no espaço). A cada nova etapa, novas desilusões: com a escola, a universidade, o marido, o amante, as filhas, a amiga. Essa é a estrutura típica do que Lukács chamou de “romantismo da desilusão” em A Teoria do Romance. Um caso em que a alma é mais extensa que a vida e que trata do choque de um indivíduo com as promessas de felicidade do capitalismo que nunca vêm a termo – a forma, nesse caso, erige-se justamente a partir dessa busca fracassada numa espécie de “astúcia do romance”. O grande exemplo de Lukács é a Educação Sentimental de Flaubert (influência explícita de Ferrante) e, se tomarmos o Romance Histórico, Ilusões Perdidas, de Balzac. Nessa chave, o romance de Ferrante poderia ser considerado uma releitura feminista dessa forma. Seria interessante saber se Ferrante leu Memórias de duas jovens esposas, romance epistolar de Balzac que se constrói a partir da relação de contraposição entre duas amigas. De qualquer modo, vale salientar – seguindo Lukács – que é a ausência da satisfação do sentido que dá forma ao romance de Ferrante enquanto romance da desilusão.
Mas a tetralogia também apresenta elementos do romance histórico, que, segundo Lukács, conta a história de como nosso presente veio a ser o que é, das forças que o movem e de seu devir, por meio de um destino individual. Conforme afirmou Ferrante (como pseudônimo, sempre) numa entrevista concedida a Paris Review, ela “sentia que Elena e Lila eram alienadas da história em todos os seus aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais – e, ainda assim, eram parte da história em tudo que diziam ou faziam”. Há muita política nesses romances. Nesse sentido, a máfia, as suas relações com o fascismo (a ascensão do Movimento Social Italiano), os movimentos estudantis da década de 1960, as revoltas operárias na fábrica de salsichas e a formação das milícias de extrema-direita, as utopias do eurocomunismo e as tensões do movimento de liberação das mulheres com a esquerda tradicional são mais que um pano de fundo para o romance, elas são forças que tensionam a trajetória da própria personagem narradora. É com o dinheiro que conseguem de Dom Achille que Lenu (e Lila) compram o livro Mulherzinhas, que desperta nelas o desejo de escrever (ou seja, é com dinheiro da máfia napolitana que as duas meninas corajosas abandonam as bonecas e iniciam sua briga contra um mundo que recusa a intelectualidade nas mulheres – como lembrou Hélène Cixous em O riso da medusa, para as mulheres, escrever é uma transgressão); é o domínio da violência que faz Lenu deixar Napóles, as revoltas na fábrica redefinem seu destino como escritora, a tensão entre a libertação feminista e a esquerda se apresentam na relação complexa que tem com seus amantes e com a sua própria “vocação” e a luta armada contra o fascismo redesenha suas amizades. Lenu não é nenhuma socialista. É possível dizer até mesmo que ela padece de uma espécie de liberalismo ingênuo que ao fim e ao cabo é necessário a qualquer herói do romantismo da desilusão: é preciso acreditar nas ilusões de igualdade (e aqui a igualdade de gênero é elemento importante), nas promessas do capitalismo, para poder perdê-las. Ela é uma personagem mediana, que de alguma forma conecta todas essas tendências históricas, costura, por meio de sua trajetória, o alto e baixo da sociedade (os pobres de Nápoles e a elite intelectual italiana, os trabalhadores e os patrões, a máfia fascista e os comunistas, o movimento de libertação das mulheres e as relações tradicionais de Nápoles, centro e periferia). Lenu nunca está no centro desses conflitos, mas é por eles atravessada em todas as suas relações e aspirações.
Esse caráter de romance histórico, que o remete ao século XIX sem muitas inovações formais não deixa de ser problemático em nossa época. Se seguirmos Fredric Jameson e Mark Fisher, seria possível dizer que essa literatura apresenta um estilo retrô pós-moderno que é uma espécie de pastiche do realismo social (não à toa, Ferrante foi comparada inúmeras vezes a Dickens), um sintoma do esgotamento das formas em nosso tempo e de seu decorrente apego a técnicas e fórmulas do passado. O romance soa histórico e ao mesmo tempo atemporal. É um pastiche tanto do realismo, quanto do modernismo proustiano já rotinizado, sem que esses dois elementos entrem em conflito. Trata-se de uma situação, conforme descreveu Fredric Jameson em Pós-modernismo, “na qual somos condenados a buscar a História, por meio de nossas imagens pop e nos simulacros dessa história”. Algo soa estranho quando lemos esses romances, uma vez que a ingenuidade épica desse realismo, para usar a expressão de Theodor W. Adorno, bem como a repetição de um procedimento modernista que não está tensionando o período literário anterior e a própria ingenuidade da personagem narradora, em termos de conteúdo, parecem deslocadas em nosso mundo. Vale relembrar a pergunta: a nossa era ainda tem ilusões a perder? A forma parece não se relacionar com o tempo presente e se encaixar numa espécie de “modo nostalgia”. Ferrante recorre a uma fórmula conhecida, cuja repetição conforta num mundo marcado pela insegurança neoliberal (seu sucesso de público não é descolado desse elemento). De qualquer modo, talvez isso não esgote a questão.
Inserir no centro do romance da desilusão uma mulher com altas aspirações intelectuais já é transformar um tanto essa forma (ainda que essas aspirações estejam mediadas pela competição com Lila – uma espécie de “eu Ideal” projetado da narradora e pelo desejo de ascensão social). Vale lembrar que alguém como Emma Bovary, referência importante do romance, queria viver uma vida como aquela dos romances e não escrever um romance. Esse tipo de “busca”, para utilizar a expressão de Lukács, de sentido para a vida e para o romance a partir da realização intelectual de uma mulher é destaque importante do livro. Além disso, o lado proustiano de Ferrante também é “produtivo”. Não foram poucas as pessoas que, lendo o romance, tiveram a impressão de estar lendo sobre a própria vida. Essa passagem do mais particular ao mais geral – traço importante de Proust, que captava a encruzilhada do tempo entre o século XIX e o XX – reaparece aqui para apreender outro impasse. Ferrante não escreve sobre a década de 1960, mas sobre a relação entre esse período e o nosso e sobre como as tensões que emergiram nesse momento ainda orientam a nossa realidade ou permanecem nela tensionadas (talvez elas tenham se tornado ainda mais evidentes agora, com a chamada primavera feminista). As possibilidades de libertação feminina postas nessa década – sexuais, intelectuais, artísticas – continuam a se chocar com o tradicionalismo provinciano, com a extrema-direita mafializada e com a “esquerda” que ainda não assimilou o feminismo como seu elemento interno. O confronto das forças de liberação feminista e essas instâncias tradicionalistas aparece nas aspirações intelectuais de Lenu e de Lila e o confronto dessas aspirações com a realidade da Camorra, da família, da província, mas também com a universidade, resulta em desilusão, uma desilusão que é trazida até nós como nossa própria experiência.
Trata-se de uma narradora personagem que é formada na tradição do feminismo. A história que estamos lendo (que conta a história de Uma Amizade e ao mesmo tempo a história da escrita do romance) é explicitamente orientada por essas questões. Daí o elemento sociológico do livro (que em Ernaux ganha destaque a partir do testemunho) que é também um traço de pós-modernidade: a mistura entre teoria e ficção. Ferrante constrói uma espécie de estudo sobre a produção social da sensação de desterro e inadequação social a partir da articulação entre classe, gênero e região; articulação que destina uma parcela enorme da população a se ver como inferior. Conforme destacou Mark Fisher em Realismo Capitalista, “alguém que sai da esfera social a qual estaria designado a ocupar estará sempre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de vertigem, pânico, horror […] você se vê ameaçado por uma completa perda de identidade, um sentimento de completa fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando esse corpo, se vestindo dessa maneira; você é um nada”.
É nessa chave que o retrato que Ferrante faz dos círculos intelectuais deve ser lido. Esse elemento é muito bem figurado pela série de televisão baseada na tetralogia. Numa cena na qual Lenu conversa com um de seus professores universitários (que por sua vez também é um contraponto às professoras que a ajudaram a chegar até ali) sobre suas ambições intelectuais e cogita um posto na universidade, este professor lhe desaconselha, dizendo que “a natureza não dá saltos”. A sugestão é uma alusão direta à condição de classe e gênero de Lenu. Isto é, classe e gênero aqui aparecem como entraves naturais, uma segunda natureza, a ser superada apenas, talvez, numa próxima geração. Ferrante aborda esse problema igualmente por meio da construção de tipos. O primeiro deles e o maior exemplo é Nino Sarratore. Um arrivista do mesmo bairro que Elena, com a mesma trajetória de classe, que vai alcançar não só um posto na universidade como um lugar de destaque no partido socialista – sua trajetória evidencia uma espécie de racket masculinista nesses meios, que protege os piores tipos. Essa distância entre eles é problematizada por Elena, que em determinado momento se pergunta: “Tínhamos nascido no mesmo ambiente, e ambos saímos brilhantemente de lá. Por que então eu estava patinando na mediocridade? Por culpa do casamento? Por culpa da maternidade e de Dede? Por que eu era mulher, por que precisava cuidar da casa e da família e limpar merda e trocar fraldas?”. Vale lembrar que as teorias feministas da reprodução social, tão necessariamente em voga hoje em dia, nascem naquele momento na Itália e podem ser consideradas uma espécie de resposta ao confrontos da década de 1960. Os movimentos de protesto dessa década abriram uma série de possibilidades de transformação social que em parte não vingaram. Conforme mostrou Silvia Federici, a inserção das mulheres no mercado de trabalho não livrou as mulheres da reprodução social – que continuava a ser um entrave à sua participação política, social, intelectual e profissional. O romance de Ferrante conta, nesse sentido, a história das ilusões feministas perdidas desse período. A dificuldade de Lenu de encontrar um lugar nesse mundo aponta para o fato de que seus desejos estavam acima de sua época, ao mesmo tempo em que foram por ela engendrados. Vale lembrar que Lenu é sobretudo uma ensaísta (a própria forma de expressão do desterro que até hoje a universidade não conseguiu assimilar) e uma romancista de testemunho. Sua trajetória é exemplar e remete não só às feministas que ficaram à margem do cânone universitário, como das teorias feministas que, na década de 1970, foram desenvolvidas a partir de ensaios, testemunhos, manifestos e panfletos; formas performativas, de intervenção política. A tetralogia aborda, portanto, também a própria história da gênese das formas de escrita feministas por meio dessa procura de Lenu pelas próprias formas adequadas para contar a sua história.
Mas, de volta a Nino. A construção desses tipos no romance consiste igualmente em uma crítica ao engessamento da masculinidade – forma de reificação com a qual já trabalhava o realismo do XIX, mas à qual Ferrante assimila a questão de gênero. No jargão, Nino é o tipo do “esquerdo-macho”. Como outros homens, ressente-se profundamente da inteligência de Elena. Na escola, encomenda um texto a ela, mas não publica porque (como confessa anos depois) achou o texto bom demais. Aparentemente “feministo”, Nino faz de tudo para abalar qualquer tipo de confiança intelectual de Elena e só reconhece o talento da escritora quando essa carrega a promessa de uma contrapartida sexual. Ele é um tipo tão forte que as leitoras de Ferrante escolheram um dia para “malhar” o personagem. O mesmo se passa com Pietro Airota, um intelectual medíocre, cuja posição foi alcançada puramente por meio do privilégio. Ambos são contrapontos de Lila e Elena e servem para mostrar os obstáculos de gênero e classe que elas enfrentam. Aparentemente mais civilizado que os homens de Nápoles, Pietro é a figura do paternalismo esclarecido, que nem por isso deixa de ser violento. O desejo da personagem narradora por esses homens é no fundo um desejo de reconhecimento intelectual. A relação com eles é parte fundamental dessa busca de realização por meio da escrita e de ascensão social. Por isso, a falência dessas relações expressa, por sua vez, mais uma face da perda das ilusões. A passagem referente à moça do movimento estudantil, mãe de um filho de Nino e por ele abandonada, também mostra que a educação e a política não protegiam mulheres mais privilegiadas de um destino semelhante àquele das mulheres do bairro de Lenu. O sucesso de Ferrante, especialmente entre mulheres hoje, não deve pouco à construção desses tipos. Nossas aspirações intelectuais e políticas continuam, em geral, a ser tratadas como algo fora do lugar e muitos círculos intelectuais continuam a funcionar como uma mistura de exército e racket: baseados numa hierarquia masculinista que estruturalmente exclui as mulheres e que visam manter (muitas vezes de maneira violenta) o monopólio da produção de conhecimento e de crítica à sociedade.
Em Ferrante, o retrato desse mundo faz a fórmula balzaquiana ser tensionada. O caminho de ascensão social pela via do trabalho e do mérito (problemas elementares do realismo, do romance histórico e do romance de formação) é figurado por meio de sua interdição tripla. Com isso, Ferrante alimenta a tradição do realismo inserindo, para além do tema da classe que lhe é imanente, o aspecto de generificado (e regionalizado) do processo social capitalista e dos sonhos dele derivados. Por isso, no romance de aprendizado feminista desaprender é tão importante.
Talvez o romance de Ferrante não se sustente o suficiente diante das pesadas exigências da crítica imanente (de resto, uma prática cada vez mais difícil nos tempos atuais) – o que faz com que este exercício lukácsiano aqui ensaiado se torne, ele próprio, um pastiche desse tipo de análise. Mas é certo que o desejo de realismo da literatura feminista aponta para alguma coisa, quiçá uma busca por um campo social marcado pela ação ou projeto coletivo de classe pressuposto nessa forma ou uma procura por reconfigurar os universais ao trazer, para o centro da literatura, as periferias dela excluídas. Quem sabe o realismo feminista não seja o grande adversário do realismo capitalista hoje em dia. Talvez essa literatura figure uma recusa em considerar a transformação radical da sociedade como uma ilusão. Quem sabe a tetralogia, afinal, consista não numa nostalgia do passado, mas num resgate das esperanças de um passado que, como mostra o sucesso de Ferrante, ainda encontra eco no presente.
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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
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