A reforma do ensino médio e a “nova geração de negócios”

A nossa organização pela revogação da Reforma do Ensino Médio é uma luta em defesa do trabalho docente e da formação da juventude, mas é também uma chance de tomarmos a política como nossa matéria e nossa arma, pelo combate à política empresarial e financeirizada da educação que nos subordina como objetos de sua gestão.

Por Carolina Catini

1.

Finalmente, o debate acerca dos efeitos deletérios da reforma do ensino médio saiu dos círculos mais estritos de quem está em constante contato com a educação da juventude e com o trabalho da imensa categoria de docentes da rede básica. As manifestações pela revogação da reforma que ocorreram em todo Brasil neste mês de março tiveram efeito no alcance do debate, que ganhou espaço nas redes sociais, na mídia tradicional, assim como chamou a atenção de intelectuais e militantes de outros setores e movimentos. A denúncia acerca dos conteúdos do Novo Ensino Médio é imprescindível para a luta, uma vez que a formação massiva da juventude é elemento extremamente relevante na composição das relações de uma dada conjuntura. Mas é preciso também que se atente para a forma social da educação. A análise de que o tempo de escolarização está sendo gasto para se aprender a fazer brigadeiros caseiros, jogar RPG, saber “o que rola por aí” e ajustar os “projetos de vida” à precariedade do empreendedorismo dos pobres, é tão importante quanto trazer à tona o desprezo pela formação especializada de professores e professoras de sociologia, história, geografia, física, química, artes etc. e, consequentemente, de tais conhecimentos. Não obstante, a crítica precisa ainda considerar que a reforma do ensino médio, assim como grande parte das transformações organizacionais e pedagógicas que estão em curso na educação, fazem parte das estratégias de uma ampla dominação empresarial e financeira. A privação da formação intelectual da juventude e a degradação das condições de trabalho docente, em meio ao descalabro da educação estatal, são antes de tudo frutos de anos de trabalhos e projetos de empresários, acionistas e investidores em “negócios sociais”, embora não se possa subestimar o papel de quem governa no aprofundamento da “parceria” entre empresa e Estado.

2.

Em setembro de 2022, pouco antes das eleições, a “ONG que foi o MEC da Sociedade Civil” venceu o “Prêmio Empreendedor Social”, segundo a Folha de São Paulo. O mesmo jornal que financia, seleciona e faz propaganda de empresas que prestam serviços sociais, assim como – é claro – faz marketing de seu próprio investimento neste setor, noticiou que o critério decisivo para escolha do Todos Pela Educação (TPE) foi o êxito da atuação da organização para a retomada das escolas durante a pandemia

Não espanta que outra organização tenha feito as vezes do MEC durante o governo Bolsonaro, sobretudo no período crítico da pandemia e de gestão pela negação e máxima brutalidade que conhecemos bem. Mas isso não se deve ao fato de que a organização governamental tenha sido completamente inoperante no período. Além dos efeitos do amplo corte de gastos e da implementação do programa cívico-militar de escolas básicas, houve uma inédita experimentação do “efeito propaganda” de programas não implantados, mas colocados em pauta pelo governo e seus ativistas. Isso não foi nada desprezível em termos de gestão, pois alterou e deixou marcas em nossas práticas e embates em nossos ambientes de trabalho. A disputa entre esses projetos conservadores não implementados formalmente (como o Escola Sem Partido em conjunto com toda pauta ligada à “guerra cultural”), os projetos neoliberais (como o Future-se)1 e a militarização, refletiu-se também na dança das cadeiras de ministros.2 A concorrência pelo controle da educação diferenciava os programas, ao mesmo tempo em que explicitava o que é comum a todos: uma noção de política social contra o povo, que expandiu a rapinagem de recursos públicos para além do mercado já cativo do empresariado, e chegou aos pregadores do evangelho e do agronegócio, renovando, assim, as formas de inscrição do Ministério em seu histórico de escândalos.3 O pior dos temporais aduba o jardim,4 e ainda colheremos frutos apodrecidos do bolsonarismo nessa reedição de “redemocratização”.

O que espanta é que a apropriação privada dos mecanismos de gestão e controle da educação estatal por organizações empresariais esteja tão naturalizada ao ponto de tais entidades serem premiadas e apresentadas como se fossem apenas ONGs benevolentes e filantrópicas, que salvaram a educação do bolsonarismo. É verdade que os programas emergenciais da pandemia, a criação de estruturas de ensino à distância e de retorno presencial, aconteceram e foram coordenadas pelo TPE e outras organizações empresariais, do mesmo modo que nenhum encaminhamento deixou de ser dado em políticas polêmicas, como a expansão da rede de escolas de tempo integral e de implementação da Reforma do Ensino Médio. Isso porque tais políticas têm sido construídas e encaminhadas por fundações e institutos empresariais que atuam na mudança das políticas, mas também em laboratórios de experimentação de formas pedagógicas e de organização do trabalho educativo que se instalaram na educação formal e não formal desde os anos 2000.

O fato de que o TPE possa exercer tarefas que substituam parte das funções do MEC apenas reflete o grau de aparelhamento e apropriação privada dos mecanismos de gestão e controle da educação estatal por organizações empresariais. O problema é que o “nexo entre o MEC e o TPE não é apenas conjuntural”, como nos avisavam Olinda Evangelista e Roberto Leher, já em 2012.5 Já faz tempo que “a base programática da educação pública, historicamente ponto central de programas partidários, tornava-se uma base programática empresarial” como já estudou Virgínia Fontes (2017). Mesmo a assinatura da medida provisória que instituiu a Reforma é muito mais fruto da advocacy6 empresarial do que do trabalho de qualquer governo ou partido. Que a canetada tenha sido dada no período de Temer, deixa mais fácil para os governos não transitórios lavarem às mãos por sua responsabilidade de deixar livre o caminho para que as estruturas carcomidas e sucateadas da educação estatal sejam preenchidas pelo trabalho de organizações privadas. Essa ocupação tem expandido os tentáculos empresariais por anos a fio de modo que ela passou a compor de modo orgânico a gestão da educação, sem, no entanto, apresentar-se como plano de reorganização da educação, suprimindo a possibilidade de decisão política, e, em grande medida, eliminando as possibilidades de confrontos e embates entre projetos de educação.

O Todos Pela Educação foi criado em 2006 por meio de uma convocatória da Holding Itaú-Unibanco. Em seu documento de fundação constam nomes de presidentes das empresas e instituições financeiras das mais lucrativas do país, além políticos e ativistas dos direitos sociais. Na lista dos sócios fundadores aparece o nome do então ministro da educação e ex-analista de investimentos do Unibanco, Fernando Haddad – que inclusive batizou seu plano de educação de “Compromisso Todos Pela Educação”. O TPE é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, mas só onde “a sociedade civil é Estado e este é sociedade civil” (EVANGELISTA; LEHER, 2012), ou quando passamos a crer numa realidade paralela na qual existam empresas que abnegam a razão de sua existência, que é lucro, para atuar contra as desigualdades sociais que – como é obvio – as sustentam.

3.

Todos quem?

Na imagem acima, o tamanho dos logos diz respeito aos diferentes níveis de investimento de cada empresa no Todos Pela Educação, o que corresponde ao poder de voto dos processos de decisão dos rumos da educação nacional. A composição se altera de tempos em tempos e o ingresso e participação exigem doações de recursos financeiros que compõe um fundo da organização privada. Em seu site, enfatiza-se que o TPE não recebe investimentos estatais, – “somos financiados por recursos privados, não recebendo nenhum tipo de verba pública” –, o que lhes garante, em suas palavras, “a independência necessária”. Não obstante, omite-se o fato de que cada uma das empresas que o compõe capta recursos estatais por meio de isenções fiscais, de parcerias, convênios com escolas, redes de ensino, secretarias e diretorias de educação para prestações de serviço, projetos e programas. Sua atuação combina alteração das grandes linhas da política educacional com atuação prática numa imensa rede de projetos e programas capilarizados na educação formal e não formal. É ascendente a curva da transferência de renda estatal para o desenvolvimento de programas privados com efeitos questionáveis para produção da qualidade educacional, que envolve a privatização de diversas dimensões da relação educativa.

Mas essa forma de captura de recursos estatais é complementada por outra forma de financiamento, na qual os conglomerados empresariais sustentam seus “trabalhos sociais”, por meio da criação de fundos patrimoniais e de investimento em programas sociais. A entrada da B3 Social – o braço social da Bolsa de Valores – no TPE, neste ano de 2023, escancara o processo de financeirização da educação estatal, não apenas porque ela se torna uma das financiadoras dos “negócios sociais” educativos, mas também porque ela é uma das instituições financeiras que tipifica as empresas sociais e regula as negociações do mercado de capitais. Trata-se de uma rede entre empresas que financiam, executam ou fazem ambos os processos em organizações privadas híbridas que tanto trabalham na execução de programas próprios, quanto investem em projetos de outras empresas sociais.

A nova onda na qual surfa o empresariado que se dedica aos trabalhos sociais que até então identificávamos como direitos, é a sustentabilidade – leia-se, o rentismo. O discurso de desonerar o Estado com investimentos sem retornos lucrativos para promoção de direitos sociais é orientado pelo lema #EntreGanharDinheiroeMudaroMundo #FiqueComOsDois, expresso no logo da Artemísia, empresa que apoia e acelera a geração de “negócios de impacto social” nos setores populares de moradia, alimentação, saúde, energia, mobilidade, meio ambiente etc. Interessante notar que a educação só aparece dentro do investimento em empregabilidade, o que tem tudo a ver com a função da educação atual, cindida da formação cultural e intelectual. Mas o que importa aqui é que, de fato, como diz o site dessa empresa, está sendo criada “uma nova geração de negócios”, pautada em mudanças no mercado financeiro ligadas à implementação das estratégias ESG, sigla em inglês para ambiental, social e governança, três critérios de “sustentabilidade” empresarial para atrair investimentos.

A consolidação dessa nova regulação do mercado financeiro fortalece o amplo ramo de serviços oferecidos por fundações e institutos empresariais e induz empresas ainda não voltadas ao “social” a criarem serviços, na medida em que se torna regra do mercado financeiro. O longo processo de privatização caminha no sentido da financeirização dos serviços sociais e indica uma mudança mais radical na organização da educação.

A saída do Instituto Ayrton Senna (IAS) do TPE corresponde ao momento de criação de seu fundo patrimonial próprio. Esse patrimônio em dinheiro é investido em títulos empresariais e seus rendimentos financiam projetos sociais. Ao mesmo tempo, o IAS convida outras empresas a fazerem seus investimentos nos programas que coordena – “Faça parte dessa rede e priorize a educação em sua agenda ESG”. Tais quadros de “parceiros” devem ser vistos exatamente como o que são: plataformas de investimento nos ativos financeiros da educação.

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É recente também a mudança de apresentação do Instituto Unibanco, que passou a declarar-se “mantido por um fundo patrimonial (endowment)”, que lhe “garante o alinhamento estratégico e a oferta gratuita de serviços e produtos para secretarias de educação, escolas, profissionais de educação e estudantes que participam de seus projetos”. Apesar da lei que regula tais fundos patrimoniais para investimentos sociais ser bastante nova (a Lei 13.800, de 2019), desde 2006, já constava no estatuto do TPE que dentre suas fontes de recursos estão as contribuições associativas, bem como doações e subvenções que compõe uma receita patrimonial, “inclusive oriundas da aplicação dos recursos do Fundo Patrimonial no mercado financeiro e de capitais”.

Em nome da defesa do direito à educação para todos, o empresariado transforma os serviços sociais em ativos financeiros, deixando a educação à deriva de investimentos que podem ser rentáveis, numa nova desigualdade entre públicos-alvo com condições de vida e inserção produtiva ou empreendedora absolutamente distintas.

4.

Por que o Itaú, o Unibanco, o grupo Lemann, a Vivo-Telefônica, o Ifood e tantas outras empresas têm se dedicado a defender o ensino integral, a BNCC, a flexibilização curricular, os itinerários formativos, as disciplinas eletivas, o ensino de empreendedorismo, o protagonismo juvenil, a ênfase na formação profissional e técnica, as habilidades práticas e as competências socioemocionais em detrimento de conhecimentos disciplinares?

Cada uma das empresas que compõe o TPE defende a Reforma e os programas de ensino integral não só porque comandam a política educacional, mas também porque cada um dos elementos que compõe o Novo Ensino Médio (NEM) corresponde a um nicho de atuação em negócios de impacto social e das estratégias ESG empresariais.

Não é possível compreender a propalada “educação para todos” no contexto da implementação dos programas de ensino integral, que empurra milhares de jovens que precisam trabalhar para a evasão, se não observarmos os programas que estão sendo implementados pelo empresariado no sistema educacional. Já faz tempo que quem está na linha de frente das reformas propõe que as escolas se tornem “atrativas” para a juventude trabalhadora. Ao torná-las unidades produtivas nas quais a juventude passe a trabalhar no período escolar, associa-se a tomada de controle da educação com o controle da exploração do trabalho de quem busca formação. O Itaú Educação e Trabalho, criado durante a pandemia, por exemplo, criou modelos de projetos empreendedores para se implementar dentro das escolas, o que inclui a proposta de criação de “empresas pedagógicas” para que estudantes aprendam a trabalhar trabalhando, durante o período letivo em escolas de tempo integral. As publicações dessa instituição descrevem inúmeros projetos pelo Brasil, nos quais ela tem papel central, em conjunto com outras organizações privadas, no agenciamento de trabalho de jovens em empresas num dos turnos escolares, jovens esses que recebem uma bolsa ou auxílio financeiro em troca de trabalho precarizado.

A evasão provocada pela implementação das escolas de tempo integral também está fazendo com que escolas regulares fiquem superlotadas e que muito mais jovens abandonem o ensino médio. Destes, uma parte retorna ao sistema estatal de ensino, a partir dos 18 anos, buscando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) que, não obstante, está sucateada e gravemente subfinanciada. Enquanto isso, empresas que exploram o trabalho de entregadores por aplicativos até o limite, como o Ifood – que recentemente ingressou no Todos Pela Educação –, são alçadas à condição de empresas que prestam serviços sociais. Além de vários programas de educação não formal, o Ifood, em parceria com a Descomplica, empresa de educação à distância, está oferecendo a seus funcionários, ou – como a empresa insiste em colocar – os entregadores que se cadastram em suas plataformas para oferecer serviços de entrega, um curso de EJA de 3 meses e apenas 2,5 horas por dia, para que estudantes façam o exame (Enceja), por meio do qual tem acesso ao certificado do ensino médio. Os direitos trabalhistas estão na berlinda, mas os investimentos de impacto social estão na crista da onda e as empresas estão liberadas para cumprir “seu papel social” atraindo investimentos e oferecendo serviços gratuitos.

A diversificação dos negócios sociais educativos se reflete na distinção entre modalidades de educação da juventude com maior ou menor rentabilidade. A fundação Lemann, por exemplo, não investe apenas na privatização das escolas, de secretarias municipais de educação e na formação de quadros, mas também na criação de uma rede de educação não formal de projetos socioeducativos ofertada por ONGs nas favelas brasileiras, como é o caso do projeto de Eduardo Lyra, da Gerando Falcões. Não é por acaso que o Todos Pela Educação se dedique a colocar em pauta e a encaminhar a lei por um Sistema Nacional de Educação, que amplia a noção de sistemas de ensino para uma rede de educação formal e não formal interligada. Educação escolar de tempo integral para a parcela dos mais “rentáveis”, seguida pelas escolas de meio período, mas também pela oferta de educação pelas empresas e por uma ampla rede de educação não formal e socioeducativa para os “não rentáveis”. Parte da solução para os “inimpregáveis” da sociedade do descarte é manter a juventude “desalentada” ocupada em programas de pacificação social. Mozart Neves Ramos – que já foi considerado um dos homens mais influentes do Brasil e quase foi ministro da educação no início do governo Bolsonaro,7 que também foi presidente do Todos Pela Educação e do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), dirigente do IAS, além de secretário de educação de Pernambuco, membro do Conselhos Nacional de Educação e que hoje se dedica a colocar as fundações dentro da universidade pública para controlar a formação de professores – considera que, para enfrentar a crise do trabalho e a violência social ligada à desigualdade, é necessária uma oferta educacional que “passa  tanto  por  uma  Educação formal de qualidade – para aqueles que estão na escola – como pela oferta de uma Educação não formal  para  aqueles que  deixaram  de  sonhar  com  uma  vida próspera”  (RAMOS,  2019)

Essa segmentação de públicos-alvo entre estudantes aparece também na fragmentação do corpo docente da escola básica dividido em inúmeras categorias de contrato, uma mais precarizada que outra. A subordinação à política empresarial está desqualificando o trabalho docente em todos os níveis – da formação e conhecimento que detém, da autonomia pedagógica, das condições de trabalho, dos processos de decisão política e coletiva dos quais são alijados. A evasão estudantil é acompanhada pela desistência e pela exoneração de trabalhadores e trabalhadoras da educação formados pelas licenciaturas, submetidos a uma intensificação excessiva do trabalho. A situação de desprofissionalização docente deve ser compreendida à luz de uma reorganização na divisão do trabalho educativo promovido por outros negócios de impacto social empresariais. Com o empenho de empresas-filhas da Fundação Lemann, por exemplo, estão sendo criadas plataformas de seleção e contratação intermitente de docentes por notório saber, isto é, profissionais com ensino superior, mas leigos em educação. A “Ensina Brasil” está se especializando na seleção de pessoas que “querem mudar o Brasil pela educação”, e que cheias de boa vontade e engajamento, inscrevem-se em programas de contratação temporária para dar aulas das disciplinas eletivas e projetos de vida e passarem por uma formação de “lideranças” empresariais na educação, mas recebendo salários pelos estados e municípios, formando novas redes de profissionais para um mercado de trabalho reconfigurado. Do mesmo modo, outra empresa nascida das entranhas da Fundação Lemann, a Vetor Brasil, que carrega o lema “seja a mudança que você quer no governo”, faz o mesmo processo de seleção, contratação e formação de quadros de gestores e gestoras da educação, além de diversos outros cargos “públicos”.

A desorganização com a qual foram implementados os itinerários formativos no estado de São Paulo induziu à rápida criação de um grande mercado de materiais pedagógicos nos grupos de redes sociais de professoras e professoras, que buscavam apoio e ajuda para dar conta do recado. Professores de química, matemática, sociologia, etc., com 5 aulas da disciplina para a qual se formaram e mais de 20 aulas dos itinerários formativos, com temas distintos e completamente disparatados, viraram a regra. Junto com novos modelos de controle do trabalho, que envolve postar planejamentos, alguns docentes ou pequenas empresas passaram a vender planos de aula. É só uma questão de tempo para que esse mercado informal de materiais pedagógicos seja engolido pelas grandes corporações. Basta ver o site da Fundação Telefônica-Vivo, por exemplo, que por meio de seu programa PenseTech oferece a venda de itinerários formativos de técnico e profissional em ciência de dados, Linguagem Matemática e suas Tecnologias, Língua Portuguesa e suas Tecnologias, além de programas para eletivas e projeto de vida. As empresas conduziram a implementação da flexibilização curricular de maneira caótica para apresentar a solução que já está pronta e sendo comercializada em alguns estados.

É um sistema que induz à mercantilização de tudo. Uma cadeia de produção de conteúdos e prestação de serviços privados de educação. Na verdade, uma cadeia de produção de negócios de impacto social que está subordinando a formação da juventude e o trabalho docente.

5.

Apesar da política educacional empresarial ter sido aclamada midiaticamente como “alternativa democrática” ao bolsonarismo, ela submete a formação da juventude a uma naturalização do empreendedorismo concorrencial de “capitais humanos” que se lançam numa luta encarniçada em busca de recursos para tornar sua força de trabalho rentável, além de deixar crescer entre a juventude o negacionismo e o anti-intelectualismo. Que tais elementos característicos da extrema direita estejam sendo fomentados pelo “empresariado progressista” nada tem de paradoxal. Despida dos disfarces da ideologia de sua propaganda, apenas evidencia que para tais empresas o que importa é a realização de sua própria função de dominação de classe e reorganização dos serviços dos quais depende a classe oposta, projeto este que coloca o controle da educação como caminho estratégico. A “empresa soberana” dá passos no desenvolvimento de sua “democracia totalitária” (BERNARDO, 2004), transformando toda relação – até mesmo o processo de formação – em trabalho ou simulacro de trabalho, de modo a impor que toda relação educativa seja objeto de sua gestão, seja para exploração ou para a contenção dos conflitos sociais.

Para tanto, é preciso subordinar o trabalho educativo ao massacre da submissão da gestão empresarial pelo descarte e pela precarização absurda das condições de trabalho, impondo ao professorado o exercício do papel de coachs que orientam para “projetos de vida” ou “oficineiros” que desenvolvem projetos de inclusão de seus estudantes na barbárie do trabalho. Isso tudo em meio a uma reengenharia completa do sistema educacional, cada vez mais pautada na voracidade por mais rendimentos lucrativos no processo de financeirização da educação, transformada em negócio de impacto social.

A nossa organização pela revogação da Reforma do Ensino Médio é uma luta em defesa do trabalho docente e da formação da juventude, mas é também uma chance de tomarmos a política como nossa matéria e nossa arma, pelo combate à política empresarial e financeirizada da educação que nos subordina como objetos de sua gestão. Uma luta que não se dá apenas nas ruas, mas no cotidiano das escolas, pela auto-organização de coletivos estudantis e docentes, pelo estudo e pela retomada da política como confronto entre projetos antagônicos, que deite por terra esse falso consenso empresarial e nos tire de uma posição meramente defensiva e reativa. É preciso estancar urgentemente o processo de degradação da educação, e isso só ocorrerá por meio da organização e da luta coletiva.


Notas
1 O Future-se foi proposta rechaçada pelas universidades federais durante o governo Bolsonaro. Não obstante, a implementação de fundos patrimoniais – eixo estruturar do programa – foi realizada nas universidades estaduais paulistas (USP, UNESP e UNICAMP). Para ver uma análise de tal processo, ver aqui.
2 Ricardo Musse sugeriu esse esquema crítico para refletir a situação de um “equilíbrio instável permanente” no comando da educação no Brasil de Bolsonaro.
3 Fernando Bonadía (2022) apresenta essa crítica.
4 Verso da música “Ninguém vive por mim”, de Sérgio Sampaio.
5 Na ocasião, os dois autores registravam a tentativa do governo petista de nomear como secretária de educação básica do ministério uma representante “dos intelectuais orgânicos” da privatização, Claudia Costin. Basta ver em seu currículo os motivos do rechaço e mobilização do povo da educação, diante dos quais o governo teve que recuar da nomeação.
6 Advocacy é nome bonito que dão para o velho lobby, atividade de influenciar e alterar legislações.
7 Viviane Senna foi convidada por Bolsonaro, mas enviou Mozart Neves Ramos quando ele trabalhava para o IAS. Ele participou de um programa Roda Viva, manifestando seu desejo de empregar-se no Ministério de Educação bolsonarista.

Referências bibliográficas
BERNARDO, João. Democracia Totalitária. Teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.  
EVANGELISTA, Olinda; LEHER, Roberto. Todos Pela Educação e o episódio Costin no MEC: a pedagogia do capital em ação na política educacional brasileira. Revista Trabalho Necessário, ano 10, nº 15, 2012.
FONTES, V. Hegemonismos e política: que democracia?. In: MATTOS, Marcelo Badaró (org.). Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017, p. 207-36.
PINHEIRO, M. “Brasil encara a batalha para prosperar no ensino médio”. El País. São Paulo, 23/2/2018.
RAMOS, M. N. Sem educação não haverá futuro: uma radiografia das lições, experiências e demandas deste início de século 21. São Paulo: Moderna, 2019.

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Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, de Fernando Cássio (org.)

Fernando Cássio, organizador da obra e especialista em políticas públicas de educação, convidou mais de vinte autores para propor um debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educação pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico do ambiente escolar.

Dicas de leitura da Boitempo, para aprofundar a reflexão:
A escola não é uma empresa, de Christian Laval
A educação para além do capital, de István Mészários

Neste vídeo para o especial Brasil em disputa, Fernando Cássio comenta os desafios da educação pública brasileira: retomar e cumprir o Plano Nacional de Educação; garantir a constitucionalização do Fundeb e dos investimentos na educação; revogar a reforma do Ensino Médio urgentemente.


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Carolina Catini é professora da Faculdade de Educação da Unicamp, autora de Privatização da educação e gestão da barbárie (Lado Esquerdo, 2017) e uma das autoras do livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, organizado por Fernando Cássio (Boitempo, 2019).

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