Brasil ontem e hoje: os militares e a política
O comando da Coluna Prestes. Miguel Costa (1), Luiz Carlos Prestes (2), Juarez Távora (3), João Alberto Lins de Barros (4), Antônio de Siqueira Campos (5), Djalma Soares Dutra (6), Osvaldo Cordeiro de Farias (7), José Pinheiro Machado (8), Atanagildo França (9), Emygdio da Costa Miranda (10), João Pedro Gonçalves (11), Paulo Kruger da Cunha Cruz (12), Ary Salgado Freire (13), Nélson Machado de Souza (14), Manuel Alves Lira (15), Sady Valle Machado (16), André Trifi no Correia (17) e Ítalo Lauducci (18). Porto Nacional, Goiás, outubro de 1925.
Por Anita Leocadia Prestes
Nos últimos anos, os acontecimentos políticos no Brasil têm revelado um inequívoco intervencionismo militar em todos os setores da vida nacional, dentre os quais destaca-se o ultimato dado pelo então Comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, ao STF (Supremo Tribunal Federal) para que rejeitasse o pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, garantindo dessa maneira sua prisão e impedindo a apresentação de sua candidatura à Presidência da República nas eleições de outubro de 2018 (CASTRO, 2021, p.187-190).
Entre muitos outros casos de intervencionismo militar de caráter antipopular, antidemocrático e inclusive “fascistoide”, lembremos os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, durante os quais ficaram explícitas as atitudes golpistas dos comandos militares, comprometidos com a tentativa de setores de extrema-direita, em grande parte articulados por Jair Bolsonaro e seus adeptos,1 de impedir a posse de Lula, o presidente reconhecidamente eleito em outubro de 2022.
São numerosos os casos de intervencionismo militar de direita no Brasil verificados em particular a partir do estabelecimento da ditadura militar (1964-1985) e da transição pactuada e tutelada pelos militares a um regime de democracia restrita, consagrado na Constituição de 1988. Nesse texto foi inserido o artigo nº 142, que atribui aos militares a defesa da “lei e da ordem”, imposição do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que viria mais tarde a reconhecer que “o Exército conseguiu tudo o que queria na Constituição”.2
Diante dessa realidade existente hoje no país, numerosos analistas políticos mostram-se inclinados a atribuir aos militares um papel histórico permanentemente negativo e de direita, fruto de um intervencionismo supostamente sempre antipopular, antidemocrático e autoritário.
A História do Brasil e de outras nações contemporâneas é reveladora, contudo, do caráter parcial e limitado de semelhantes análises. Os militares, em particular a oficialidade do Exército – a mais numerosa e influente entre as Forças Armadas –, constituem um grupo social com características específicas, devido à sua formação nas Escolas militares e na caserna, mas, ao mesmo tempo, estão inseridos na estrutura social em que vivem e atuam e sofrem múltiplas influências presentes na vida nacional e no contexto mundial do seu tempo (PRESTES, 1990 e 1994).
Os militares refletem em seu comportamento – ainda que de forma peculiar e modificada, pelo fato de pertencerem à corporação armada – os conflitos e os problemas que se desenvolvem na vida social e política da Nação. Constituem parte integrante do todo social. Podem ser classificados como uma camada social3 inserida no processo geral da luta de classes que se trava no País, em diferentes momentos de seu desenvolvimento histórico. (PRESTES, 1994, p. 15)
Ao pesquisar o comportamento dos militares em diferentes momentos históricos e em determinados contextos sociais, é necessário ter em vista que as instituições militares fazem parte do Estado nacional e têm como função precípua a garantia dos interesses das classes dominantes. Mas os clássicos do marxismo nunca deixaram de considerar a autonomia relativa das instâncias superestruturais, incluindo o Estado e suas instituições, da mesma maneira que a atividade política em cada conjuntura específica.
Os acontecimentos relacionados com a História da República no Brasil são reveladores dessa autonomia relativa de determinados setores militares em vários momentos da sua trajetória. A derrubada da Monarquia em 1889 foi fruto de um golpe de Estado – que contou com a simpatia e o apoio de amplos setores da opinião pública nacional – promovido em especial pela juventude militar influenciada por aspectos da filosofia positivista difundida por Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o famoso mestre da Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro. Um golpe de Estado que teve caráter progressista ao estabelecer no Brasil o regime republicano, não obstante as grandes limitações impostas à participação popular pelo poderio das oligarquias agrárias então dominantes. Certamente, o regime republicano representou um avanço importante se comparado ao monarquista, considerado, inclusive, entre outros fatores, o impulso dado ao processo de industrialização do país.
Na década de 1920, o movimento liderado pelos jovens tenentes e capitães do Exército e setores da Força Pública do Estado de São Paulo – mais tarde denominado tenentismo – e, em particular, a Coluna Prestes, seu episódio culminante, contribuíram decisivamente para abalar os alicerces do pacto oligárquico então dominante no Brasil e a vitória da chamada “Revolução de 1930”. O movimento tenentista foi um fator de grande importância para a formação de um clima político favorável ao desencadeamento e ao sucesso do golpe de Estado de 1930, embora aos “tenentes” tivesse sido atribuído pelos chefes do movimento um papel secundário na conquista do poder e no estabelecimento do novo sistema de dominação que passaria então a existir (PRESTES, 1990 e 2014).
Articulado por grupos oligárquicos dissidentes, com Getúlio Vargas à frente, o movimento de 1930, afinal vitorioso com o golpe militar de outubro daquele ano, contou com a participação decisiva de setores legalistas do Exército até então fiéis ao Governo. Este foi o caso do tenente-coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro, designado chefe militar da “Revolução de 1930”, embora participara ativamente do combate governista aos “tenentes” (PRESTES, 2014).
A chamada “Revolução de 1930” pode ser considerada um golpe de Estado, pois a participação popular naqueles acontecimentos ficou restrita a manifestações de regozijo pela chegada ao poder de Vargas e dos autodenominados “revolucionários de 30”. Também o novo governo não pretendia realizar profundas transformações econômicas, sociais e políticas. Mas a dinâmica dos acontecimentos nacionais e internacionais, num momento de grave crise do sistema capitalista mundial, contribuiu para que fossem adotadas medidas de caráter autoritário e centralizador – o projeto elaborado por Góis Monteiro –, cujo resultado foi um impulso significativo ao estabelecimento no país de uma indústria de base, até então inexistente, e um importante desenvolvimento capitalista nacional (PRESTES, 2014).
Afirmamos que o tenentismo e, em particular, a Coluna Prestes, assim como o protagonismo militar na efetivação do golpe de outubro de 1930, foram movimentos objetivamente progressistas, pois contribuíram para a desarticulação do sistema de dominação oligárquico vigente na Primeira República e para a industrialização e o desenvolvimento capitalista do país. Com isso, não estamos ignorando o caráter opressor do sistema capitalista para maioria da população, mas reconhecendo o inegável avanço econômico, social e político então promovido, dadas as condições específicas daquele momento histórico.
Em outros momentos da História republicana brasileira, setores militares também tiveram protagonismo progressista importante como na campanha do “petróleo é nosso” e pela criação da Petrobras, o que viria acontecer em 1953, durante o Segundo Governo Vargas.
Após as eleições presidenciais de 1955, o então Ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, desencadeou, em 11 de novembro daquele ano, o movimento militar de “retorno ao quadro constitucional vigente”, garantindo assim a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e do seu vice João Goulart, ameaçada pela conspiração das forças de direita, defensoras dos interesses do grande capital internacionalizado, em particular do imperialismo estadunidense.
Com a vitória do golpe civil-militar de abril de 1964, promovido pelos setores mais conservadores e reacionários então presentes na vida nacional, e com o apoio explícito da CIA e do Governo dos EUA, foi desencadeada uma violenta repressão contra os militares progressistas nas Forças Armadas brasileiras, confirmando a importância desses setores na História republicana nacional. Segundo informações existentes, alguns milhares de membros das Forças Armadas foram presos e torturados ou expulsos de suas corporações por oposição ao que se denominava nos quartéis de “revolução de 1964”.
Ao mesmo tempo, no cenário mundial, também podemos encontrar numerosos exemplos do papel progressista desempenhado por setores das Forças Armadas em determinadas circunstâncias históricas. Lembremos o golpe militar do general Juan Velasco Alvarado, em 1968 no Peru, e as medidas então adotadas de nacionalização do setor petroleiro, com a expropriação das companhias petroleiras estadunidenses que operavam no país, assim como uma reforma agrária voltada contra a grande propriedade territorial e a nacionalização de setores chave da economia. Avanços que foram revertidos, entretanto, num período de poucos anos.
A chamada “Revolução dos Cravos” em Portugal, no 25 de abril de 1974, constitui outro exemplo de protagonismo progressista de setores militares. Os jovens capitães do Exército português, sensibilizados e mobilizados pela insatisfação existente no país com o regime salazarista e, em particular, com a resistência dos povos das colônias portuguesas no continente africano, derrubaram o governo. Contaram para isso com a participação no movimento de amplos setores populares, abrindo assim caminho para importantes transformações realizadas na sociedade portuguesa, como a volta dos direitos civis e políticos para a população do país e o início dos processos de descolonização na África.
Hugo Chavez, um tenente-coronel do Exército da Venezuela que, em 1992, liderou um golpe de Estado contra o então presidente Carlos Andrés Pérez, foi preso e libertado dois anos depois, transformando-se numa destacada liderança progressista e revolucionária desse país. Conquistou o apoio popular para em 1998 eleger-se presidente da República e, ao mesmo tempo, atuou decisivamente para que os militares venezuelanos se constituíssem em garantidores das medidas importantes e avançadas a favor das grandes massas populares do país adotadas pelos seus sucessivos governos. Estamos diante de mais um exemplo do papel progressista que pode ser desempenhado pelos militares em determinadas circunstâncias históricas.
Com os exemplos apresentados neste texto procurou-se contribuir para a melhor compreensão da autonomia relativa de setores militares nas sociedades contemporâneas, o que lhes permite, em determinadas condições históricas, desempenhar um papel progressista na vida política dessas nações.
Notas
1 As invasões dos palácios-sedes dos Três Poderes da República.
2 FERNANDES, Maria Cristina, “O Exército conseguiu tudo o que queria”, disse o general Leônidas Pires Gonçalves, Valor, 24/02/2023.
3 Adotamos o conceito de camada social proposto por Oskar Lange: “Entendemos por camada social, diferentemente de classe social, um grupo de membros da sociedade, cuja posição econômica e social não é derivada das relações de propriedade, senão da forma que tem a superestrutura correspondente” (apud CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. El concepto de clases sociales; bases para una discusión. Madrid, Ed. Ayuso, 1976.)
Referências bibliográficas
CASTRO, Celso (org.). General Villas Bôas: conversa com o comandante. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2021.
PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. 3ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1997.
PRESTES, Anita Leocadia. Os militares e a Reação Republicana: as origens do tenentismo. Petrópolis: Vozes, 1994.
PRESTES, Anita Leocadia. Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Consequência, 2014.
Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.
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Anita Leocadia Benario Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres da rua Barminstrasse, em Berlim, na Alemanha Nazista, é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benario Prestes e Luiz Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
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