Nelson Werneck Sodré, questão racial e Revolução Brasileira

A despeito dos limites, ausências e insuficiências de análise, Sodré compreendeu que a questão racial é um dos temas centrais da Revolução Brasileira e da libertação do povo trabalhador e do país. E nesse caminho desenvolveu uma boa reflexão teórica sobre o tema, que segue atual e necessária em muitos pontos. A Revolução Brasileira, para merecer tal nome, será negra!

Por Jones Manoel

É impossível pensar concretamente a Revolução Brasileira sem colocar no centro da reflexão a questão racial e a luta antirracista. A questão racial não é um elemento a mais, uma questão identitária ou uma reivindicação de grupo no país. É tema fundante na constituição e reprodução do capitalismo dependente em nosso país – portanto, núcleo da luta de classes em nossa terra.

A relação entre o marxismo e a luta antirracista é tensa, conflitiva e cheia de desencontros. Tornou-se moda afirmar, por exemplo, que o marxismo preocupa-se apenas com a classe e que nunca debateu raça no Brasil. Ou marxistas afirmarem, com certa condescendência branca, que o tema racial é importante, mas o central é a luta de classes – pressupondo, nesse tipo de reflexão, que a luta de classes como realidade objetiva no Brasil existe em paralelo ou em separado da questão racial.

Os problemas e limites da reflexão marxista sobre a questão racial ao longo da história brasileira são variados e iremos, em diversos escritos futuros, debatê-los em detalhe. Neste ensaio, o objetivo é jogar luz em um bom exemplo de uma abordagem marxista sobre o problema do negro no Brasil: a obra do grande Nelson Werneck Sodré.

Provavelmente você ouviu falar de Sodré como um marxista dogmático, esquemático, “stalinista”, superado; o “teórico do feudalismo” e outras descrições e adjetivos pouco elogiosos. Há no mínimo 50 anos, a obra de Sodré, quando não é ignorada, é normalmente tratada como uma peça ruim de museu que deve ser lembrada apenas como exemplo do que não fazer.

É uma realidade curiosa, considerando que estamos falando de um dos marxistas brasileiros mais influentes no debate nacional até o golpe de 1964 e o mais importante da década de 1950.1 É necessário uma séria e profunda reavaliação da obra de Sodré, e é preciso que as novas gerações possam conhecer de verdade a produção desse autor sem os estigmas, preconceitos e barreiras tão comuns nos últimos anos.

Para ajudar nesse trabalho, vamos debater uma dimensão pouco conhecida da obra de Nelson Werneck Sodré: a questão racial. Não vamos percorrer toda a obra do autor, mas focar naquele que é um dos seus livros mais polêmicos, conhecidos, e que, à época, causou profundo impacto nas esquerdas brasileiras: Introdução à Revolução Brasileira, de 1958. Esse livro, como explicita o título, é uma síntese das contribuições de Sodré para o grande tema da época (de 1955 até 1964, não é exagero dizer que o tema da Revolução Brasileira mobilizou todos os intelectuais de esquerda do Brasil e praticamente todos os relevantes no período lançaram sua tese sobre o tema).

A estrutura do livro é composta de capítulos que abarcam vários subtópicos: primeiro capítulo debatendo as classes sociais no país e o segundo a formação da economia nacional com ambos percorrendo desde o período colonial até o Brasil moderno; terceiro capítulo debatendo a cultura nacional; quarto a questão racial; quinto a história política brasileira (no qual a formação e desenvolvimento do nacionalismo são tomados como elemento-síntese da nossa dinâmica política); sexto refletindo sobre quem é o povo brasileiro (uma busca por encontrar o elemento popular na nossa história) e um pós-escrito buscando responder aos críticos e ao desenvolvimento da luta de classes (como o golpe de 1964).

Em síntese, temos um livro que apresenta como temas centrais da Revolução Brasileira: classes sociais e economia, cultura, questão racial, história política (nacionalismo) e um debate sobre o povo brasileiro. Já nesse ponto, Sodré se destaca dos marxistas de sua época: trata a questão racial, em 1958, como um tema essencial da Revolução Brasileira (em escritos posteriores veremos como outros autores contemporâneos, como Caio Prado Jr., não conseguem fazer o mesmo).

Sodré começa o capítulo sobre a questão racial – nomeado pelo autor como “Evolução Racial. A miscigenação e a sociedade” – debatendo a questão da miscigenação e do cruzamento de raças. Desenvolve um raciocínio mostrando que a ideia de uma raça pura, sem cruzamentos (desde uma perspectiva genética) é uma ideologia sem fundamento, um mito e, inserindo o problema racial numa dimensão sócio-histórica e não biológica, mostra como a questão racial é temática mundial, com os exemplos de “populações indígenas americanas”, “populações ditas amarelas no Oriente”, “populações negras, na África e fora da África” e afins (SODRÉ, 1967 [1958], p. 144). Depois de chamar a atenção para o caráter mundial do debate (e da luta), indica a particularidade brasileira e passa a debatê-la: “mas é também um fato indesmentível que tal problema, no Brasil, apresenta traços específicos, traços que não aparecem em outros exemplos” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 145).

Para o autor, a questão racial, no Brasil, começa com o colonialismo português e o estabelecimento da empresa colonial, com sua consequente tentativa de escravizar/domesticar/exterminar os povos indígenas e o tráfico de pessoas negras escravizadas. É interessante observar que em 1958, para Sodré, não era nem tema de debate se existia questão racial no Brasil pré-colonial. A raça tem seu nascimento, em nossa terra, com o colonialismo.

A partir do debate sobre o colonialismo português, o autor mostra como a hierarquia entre brancos e negros foi estabelecida como consequência da estrutura econômico-política do Brasil colonial e sublinha algo fundamental: desde seu nascimento, no Brasil, raça e classe não são separáveis:

“A circunstância, entretanto, é muito importante pelas suas consequências: tudo o que está por baixo, socialmente, é negro; tudo o que está por cima é branco. O rótulo de cor começa a funcionar, com os seus poderosos e generalizados efeitos. Nesse sentido, devemos considerar bem como, muito depois de ficar libertado da escravidão, o negro permaneceu submetido à violência dos preconceitos, rotulado que estava. E ainda é indispensável considerar, nessa apreciação, um aspecto que tem sido propositalmente omitido: o negro continua a fornecer, puro ou mestiçado, o grosso da massa de trabalho, em nosso país. Se isolarmos uma consideração da outra, correremos o risco de cuidar erradamente o problema: relações de raça jamais podem isolar-se de relações de classe.” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 147)

Cabe pensar sobre esse trecho de Sodré. Ele aponta que “tudo que está por baixo, socialmente, é negro”. Ou seja, no Brasil, o signo de subalternidade é negro, o que tem amplas consequências, como na dimensão da cultura e representação simbólica do país. Aliado a isso, o autor, ao afirmar que é impossível separar o mundo do trabalho da questão racial, não fala só do período da escravidão, mas estende essa compreensão para o Brasil capitalista, pós-escravidão. Por fim, diz que as relações de raça, no plano analítico, não podem isolar-se das relações de classe, e o inverso, portanto, também é verdadeiro.

O lugar teórico, metodológico e político da questão racial é apontado como estrutura totalizadora da vida brasileira. Não é uma “pauta identitária”, como se o problema racial falasse apenas sobre cultura, identidade e representações simbólicas. Situa-se no núcleo das relações de produção do país, fundamento de toda morfologia das classes sociais. A partir disso, fica fácil entender por que o autor colocou um capítulo sobre a questão racial no seu livro sobre a Relação Brasileira: se o problema do negro é o núcleo das relações de produção no Brasil, a luta antirracista figura (ou deve figurar) como parte essencial do programa de transformação que o movimento nacionalista deveria levar a cabo.

Na sequência da reflexão, novamente, Sodré volta ao tema da miscigenação. É importante destacar que o autor de Introdução à Revolução Brasileira escreveu sua obra antes das grandiosas reflexões críticas de Florestan Fernandes sobre o mito da democracia racial ou da contundente denúncia de Abdias do Nascimento em O genocídio do negro brasileiro. De tal sorte que desmascarar o mito da democracia racial e a ideia, extremamente popular na época, de que a miscigenação iria acabar com o racismo no país era uma questão quente da conjuntura (a ideia básica era que a miscigenação iria resolver a questão negra branqueando o país ou que o cruzamento de raças, formando um país cada vez mais “mestiço”, acabaria com qualquer antagonismo entre negros e brancos).

Sodré chama a atenção para um ponto fundamental: “é impossível esquecer que os cruzamentos entre brancos e negros […] processam-se entre brancos de uma classe, a classe dominante, e negros de outra classe, a classe dominada”, e destaca que esses “cruzamentos” não alteram a divisão racial-classista do país, pois “o negro permaneceu, em conjunto, na classe que fornece o trabalho” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 149). Sodré também lembra que a miscigenação não provocou, frente ao branco, nenhum processo de humanização do negro, pois “jamais acudiria ao espírito de um branco colocar os seus descendentes brancos no mesmo nível dos seus descendentes mulatos”; e conclui com firmeza: “afirmar, pois, que a miscigenação suavizou as relações de raça e classe no Brasil é falsidade transparente, sem nenhuma significação objetiva” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 150).

Como é perceptível, até esse momento da reflexão, o autor preocupa-se em mostrar que a miscigenação não contribuiu em absolutamente nada para reduzir as barreiras de classe-raça no país. Falta, contudo, o debate sobre o outro aspecto do mito da democracia racial; a saber: a ideia de que com a miscigenação o Brasil teria “menos racismo” que outros países, como os Estados Unidos; ou um racismo mais leve, não explosivo, sem maior significação; ou, na visão dos racistas mais exaltados, um país sem racismo (sim, todos que negam o racismo no Brasil são, por definição, racistas).

O caminho seguido por Sodré para debater esse ponto é muito interessante. O autor destaca que o Brasil, como formação colonial, precisava de uma ideologia do colonialismo que cimentasse o interesse das classes dominantes locais – senhores de engenho, traficantes de pessoas escravizadas, grandes comerciantes etc. – e da elite dominante da metrópole; essa ideologia colonial, dado o papel central do tráfico de pessoas escravizadas, o negócio mais lucrativo da época do Brasil colônia (bem mais que a produção de açúcar nos engenhos do nordeste, de látex para borracha no norte do país ou as pedras preciosas e ouro de Minas Gerais e parte de Goiás), precisava ser necessariamente antinegro. Não importa o nível de miscigenação durante o processo de formação do Brasil. A ideologia antinegra se impõe como necessidade objetiva do colonialismo. Segue uma longa citação das palavras do próprio autor:

“A ideologia formulada e mantida pelas entidades que impulsionam o colonialismo político encontra naturalmente extraordinária receptividade entre os componentes da classe dominante nas colônias. No caso brasileiro, que é o que nos interessa, tal classe esposa ardentemente aquela ideologia, que lhe convém de forma integral, que lhe cabe como uma túnica devidamente recortada. E nem poderia acontecer de maneira diversa, uma vez que a classe dominante na colônia, e que depois no império, representa, como que por procuração, aquela que, no continente europeu, criara e desenvolvera o colonialismo. Aceita todas as suas formulações e defende, quando é necessário, ponto por ponto, todo um corpo de conceitos que, no fim de contas, define irremissível condenação ao próprio país […] E é esta razão, e não outra, que faz dos representantes daquela classe, aqui como em outras regiões coloniais, uns transplantados, uns exilados, de olhos postos na Europa, cegos a tudo o que os rodeia. Incapazes de sentir e de interpretar a sua própria terra. E é por isso também que os únicos elementos capazes de interpretá-la e senti-la são os que vem de baixo, sobre os quais recai, implacável, o peso de uma ideologia fundamente elaborada e vigorosamente mantida” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 151-52).

Os que vêm de baixo, como Sodré lembra várias vezes, são os negros (fundamentalmente). A população negra, classe por excelência do trabalho durante todo Brasil colonial, sofria com a negação do país operada pela ideologia do colonialismo. Novamente, frisamos, uma cultura geral antinegra era uma imposição das relações econômicas e políticas estabelecidas. O autor cita como exemplo disso José de Alencar, criador do romance brasileiro, vivente no Brasil Império independente e um dos formuladores da ideia de Brasil como nação autônoma.

O indigenismo de José de Alencar, para Sodré, era um escapismo da questão negra. A busca de um signo indígena, depois de tantos séculos de massacre, como representativo de uma brasilidade original, para fugir da realidade objetiva: O Brasil era (é) um país negro. Diz Sodré: “ser brasileiro era ser negro, mulato, aparentado com negro, descendente de negro. Jamais lhes poderia acudir tal sacrilégio, porém” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 153).

Mais de 300 anos de ideologia colonial deixaram marcas profundas na sociedade brasileira. A formação do país como nação autônoma de Portugal se faz de costas, em negação, ao negro brasileiro. Essa negação, por óbvio, expressa-se no dado básico: o Brasil, após independência de Portugal, mantém a escravidão. A partir de uma série de processos históricos, sabemos que na segunda metade do século XIX, operam-se mudanças na economia mundial e na sociedade brasileira que colocam o abolicionismo na ordem do dia. Contudo, como sublinha Sodré, passamos de uma fase em que a escravidão no Brasil era considerada justa e humana; uma segunda fase, particularmente na primeira parte do séc. XIX, onde era considerada justa (economicamente necessária), mas desumana e a média do pensamento abolicionista, no crepúsculo do Império, achava injusta e desumana. Porém, o abolicionismo médio da intelectualidade branca e das elites brasileiras, que entendiam a impossibilidade de continuar a escravidão, não “defendeu a ideia de que o negro e o branco fossem iguais e que a distinção entre eles representava apenas um problema social” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 158).

Acaba a dependência colonial com Portugal e posteriormente a escravidão, mas sem igualdade entre negros e brancos – e a população negra, nunca é demais lembrar, fica retida “à classe que fornece o trabalho” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 157). Nessa situação, Sodré mostra como o mito da democracia racial (ainda que o autor, negrito, não use esse termo, é disso que estamos falando) busca manter a dominação racista ocultando o problema racial na economia, poder político e afins: “na medida em que passou a encarar o negro, em seus motivos, em suas manifestações, em suas crenças, como aspecto pitoresco do cenário brasileiro, um dos seus ornamentos, uma das suas singularidades, um dos seus coloridos” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 158). O autor não tem dúvidas que esse recalque da questão negra é uma forma de manter as barreiras raciais-classistas, na medida em que “corresponde a desejo de distanciamento, em relação ao negro, a uma afirmação de brancura, a um autoatestado de arianização” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 158).

Ocultar a questão racial e fazer do negro um fetiche, um quê pitoresco, bizarro, um exemplo incivilizado na marcha da civilização brasileira, constitui o cerne de uma abordagem sociológica/antropológica do Brasil que fez (faz?) muito sucesso na sua versão mais vulgar ou mais refinada. Sodré não cita diretamente Gilberto Freyre no trecho a seguir, mas acreditamos firmemente que ele era um dos autores que nosso pensador tinha em mente quando afirma:

“E existe uma sociologia das exterioridades, profundamente preocupada com os detalhes, com a cor das gravatas, com a forma dos bigodes, com os beirais das casas, e que, em relação ao negro, numa atitude falsamente renovadora, proclamando-se liberal e avançada, cuida seriamente dos doces, da roupa das vendedoras de rua, dos seus toucados, das pequenas peças de cerâmica, rigorosa e psicanaliticamente analisadas, das pesquisas estatísticas a respeito de negros escravos e de negros doutores. Revistas ilustradas e até revistas especializadas, monografias, filmes de cinema, congressos ditos afro-brasileiros, ensaios, e até longos estudos aparecem, focalizando o pitoresco, o anormal, o excepcional do negro. Não é por mera coincidência que a Bahia se torna o centro de gravidade das pesquisas que aparentam rigores metodológicos. À Bahia são levados, então, não apenas turistas, viajantes ilustres, ficcionistas e artistas de todo gênero, mas pesquisadores, sociólogos, antropólogos, que percorrem, atentos e curiosos, desde os terreiros mais conhecidos até os bairros típicos. Para concluir, no fim de contas, aquilo que todos sabemos, que há médicos negros, advogados negros, poetas negros, como se isso representasse emancipação ou escândalo […] Mas persiste a proclamação ostensiva de que não existe problema de raças no Brasil, de que resolvemos tudo e vivemos, de há muito, sem atritos, nesse terreno. Estudiosos de estatística verificam, aparentando surpresa, que entre os negros está um alto coeficiente de criminalidade. Esquecem-se de que, entre os negros, há, realmente, um alto coeficiente de pobreza, e isso não é espantoso porque eles constituem a massa de trabalho, que não tem condições de saúde, de subsistência, de aprendizagem, de morada” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 159-60, grifos nossos).

O que temos acima é uma duríssima crítica à ideia de valorizar o negro como um elemento da formação brasileira – ao lado do branco e do indígena – focando de maneira pitoresca e grotesca a sua “contribuição cultural”, escondendo o racismo, as estruturas de poder e as relações econômicas que condicionam a dinâmica de raça-classe no país. A conclusão de Sodré é inequívoca: não se tratam de meras sobrevivências do período colonial, destinadas a desaparecer com a modernização capitalista (tese também bastante defendida à época). O autor frisa que a transição da sociedade aristocrática para a burguesa, embora tenha “alterado aspectos a cuja importância devemos atenção”, não “contribuiu de forma alguma para criar o ambiente em que os preconceitos gerados e mantidos por tão longo tempo atendessem ao desaparecimento”. Em contraste, esses preconceitos persistem, “apenas disfarçados”, para se alimentarem em “novas fontes” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 160).

Então, em síntese, a miscigenação não reduziu as barreiras de raça-classe no país, não provocou qualquer emancipação social-econômica do negro e muito menos “suavizou” ou reduziu o racismo brasileiro. E o autor negrita que isso não é um mero resquício da sociedade passada (atualmente tornou-se moda reduzir o racismo a apenas uma herança não superada do período da escravidão). Diz que “não se trata apenas, da persistência de velhos mitos”, trata-se, isso sim, de que a sociedade brasileira tem necessidade ainda, “na estrutura em que vivemos, de manter aqueles mitos, embora disfarçados” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 161).

Sodré caminha para conclusão debatendo os objetivos de emancipação da Revolução Brasileira para o negro. Sem estender demais a explicação, já que o objetivo deste escrito é mais debater o lugar da questão racial na Revolução Brasileira proposta por Sodré e não a tese sodreliana do que seria essa revolução, o autor indica que as transformações da revolução brasileira “afetarão, necessariamente, o plano das relações de raça, alterando a posição do negro em face do branco”. As mudanças “tão profundas” colocadas pela Revolução Brasileira devem retirar do signo negro qualquer lugar de subalternidade, exploração e opressão, fazendo da quantidade de melanina na pele uma mera “circunstância, como a de ser mineiro, baiano, catarinense, inteiramente despida de significação classificadora” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 161).

Para o autor, a igualdade entre brancos e negros significa acabar com o signo da raça como elemento de superioridade branca e subalternidade negra, produzindo uma desracialização da estrutura social brasileira. Alcançado esse objetivo, teremos uma “autenticidade brasileira” e que não será encontrada “senão pela valorização do negro” na sua contribuição no secular esforço “na formação, no desenvolvimento e na libertação do Brasil” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 161). Não é demais insistir que, nas palavras do autor, o Brasil só ira se reconciliar consigo mesmo, encontrar sua autenticidade e se libertar, com a emancipação do negro. É com essa reflexão que Nelson Werneck Sodré encerra o capítulo.

Terminada a análise das considerações do autor, cabe uma avaliação da produção de Sodré sobre a questão racial no Introdução à Revolução Brasileira. Antes de tudo, considerando o padrão atual de debate, algumas pessoas podem sentir-se incomodadas com termos como “mulato”, “cruzamento” e afins. É necessário pontuar o óbvio: é um escrito de mais de 50 anos atrás onde os termos do debate eram outros e o uso deles não compromete a qualidade teórica da reflexão. Vale lembrar que Carlos Marighella, por exemplo, se auto definia como um “mulato baiano”. Termos como o usado por Sodré no livro eram correntes na época e com uma compreensão diferente do que a que temos hoje.

Dito isso, passamos para as questões realmente importantes. Primeiro de tudo, chama a atenção como Sodré não debate a organização do povo negro para luta antirracista. O movimento negro enquanto sujeito político partícipe da Revolução Brasileira simplesmente não aparece no capítulo do autor. Alguém pode argumentar, e com razão, que nesse livro, em todas as temáticas, o autor não debate a dimensão organizativa dos sujeitos da Revolução Brasileira (no máximo, alguns poucos comentários) e que seu foco é apresentar as análises dos dilemas do Brasil e os horizontes de emancipação para cada problema. A despeito disso, fica patente que sem essa análise da organização e militância negra, o livro pode passar a ideia do negro como vítima passiva do racismo.

Olhando o conjunto da obra de Sodré, sabemos que não era essa sua perspectiva – Sodré foi um dos primeiros autores brasileiros a destacar que os escravizados, no Brasil colônia e império, tinham agência política e protagonismo na sua luta por emancipação. A despeito disso, essa ausência precisa ser sublinhada.

Em segundo lugar, fica faltando um ponto fundamental na análise sodreliana do mito da democracia racial. Um dos pilares do mito da democracia racial é que a miscigenação foi um processo natural, pacífico, resultado da maior disposição do português para integração, em contraste, por exemplo, com os anglo-saxões. Não poucos autores, inclusive, falam da miscigenação como consequência da formação do povo português, ele mesmo miscigenado, dado os anos de ocupação dos mulçumanos na Península Ibérica. Sodré poderia ter destacado o caráter violento e a opressão dessa miscigenação e como ela não tem nada de pacífica – seja no seu desenvolvimento, seja no seu resultado.

O autor, contudo, foca na crítica das visões idealizadas do resultado e não debate o processo em si. A leitura do capítulo passa uma impressão de que a qualquer hora essa crítica vai chegar, mas ela nunca vem. Novamente, tomando o conjunto da obra do autor, fica patente que ele nunca considerou a escravidão como um processo romanceado e paternalista, como muitas vezes o fez Gilberto Freyre e outros. Ao mesmo tempo, no Introdução à Revolução Brasileira, essa ausência o impede de completar uma crítica total a todos os aspectos do mito da democracia racial.

Caminhando para conclusão, destaco dois pontos. É chamativa uma ausência de reflexão sobre as consequências do racismo na superestrutura jurídico-política brasileira. Sodré, como marxista, entende que não se explica a forma política e jurídica de um Estado sem a crítica da economia política, isto é, a compreensão das relações de produção e propriedade de uma formação econômico-social. Se, como diz o autor, a questão racial estrutura as relações de produção do país, é necessário pensar nas consequências políticas disso.

Não é possível debater o regime de dominação e o exercício do poder político no país sem pensar a questão negra. A dimensão antinegra da formação e reprodução do Estado burguês no Brasil simplesmente não comparece na análise.

Por fim, e o ponto mais importante, a análise de Sodré da questão racial tem como ponto de partida e chegada o ser negro a partir do gênero masculino. Não passa pela pena do autor debater a especificidade da mulher negra enquanto sujeito sociológico particular da questão negra e da classe trabalhadora brasileira. A questão da mulher, no livro em debate, não recebe um capítulo à parte e é esquecida nas considerações sobre o racismo em nossas terras.

Esse ponto é curioso, pois na época da escrita do livro de Sodré, a relação das escravizadas da Casa Grande (Mucamas) com os senhores de engenho era um dos fetiches preferidos dos autores que tentavam analisar uma escravidão mais branda ou um país sem racismo. Aliado a isso, o mundo do trabalho protagonizado pelo povo negro no Brasil tem nas mulheres negras o ponto alto de exploração, subalternização e garantia de reprodução dos privilégios de classe para as camadas médias – pense, por exemplo, no papel das empregadas domésticas negras nas famílias ricas e de classe média no país.

Se Sodré consegue debater muito bem a particularidade negra do povo trabalhador, ele acaba sendo incapaz – neste livro – de oferecer uma reflexão sobre as particularidades da questão negra. É uma análise em altíssimo grau de abstração do ser negro na formação social brasileira. E o problema de uma investigação que caminha apenas no elevado nível de abstração é a ausência de concretude socio-histórica do sujeito/problema em análise.

Nesse ponto, faz-se necessário adiantar uma tese que não será demonstrada neste escrito: um dos grandes problemas das análises marxistas de melhor qualidade sobre a questão racial no Brasil durante o século XX foi sua incapacidade de perceber a particularidade de gênero na questão negra e tender a pensar o tema (e as respostas de emancipação) desde uma perspectiva masculina. O fato de boa parte dos autores marxistas que escreveram sobre o tema no século passado serem homens é parte da explicação (a parte mais imediata, empírica), mas não responde tudo. Essa problemática será debatida e demonstrada em escritos posteriores.

Por fim, o que podemos dizer é que a despeito dos limites, ausências e insuficiências de análise, Sodré compreendeu que a questão racial é um dos temas centrais da Revolução Brasileira e da libertação do povo trabalhador e do país. E nesse caminho desenvolveu uma boa reflexão teórica sobre o tema, que segue atual e necessária em muitos pontos. A Revolução Brasileira, para merecer tal nome, será negra!


Nota
1 Para um balanço qualificado do lugar de Nelson Werneck Sodré na história do marxismo brasileiro, recomendamos a introdução de Luiz Bernardo Pericás ao livro Caminhos da Revolução Brasileira (Boitempo, 2019, p. 9-92).

Referência bibliográfica
SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.


Amanhã (10/03), às 17h30, não perca o lançamento antecipado de Imperialismo e questão europeia, com debate entre Jones Manoel e Rita Coitinho, mediação de Gustavo Gaiofato, na TV Boitempo:

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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo.

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