Trabalho intelectual e trabalho material: a propósito de Alfred Sohn-Rethel

A inversão de relação entre coisas que se humanizam e humanos que se coisificam caracteriza a própria realidade social organizada a partir da necessidade de realização do valor. O trabalho intelectual, que se dissocia do trabalho braçal, é apenas uma das contradições que dirige o processo no qual as sutilezas metafísicas da mercadoria governam o inconsciente geral.

Por Douglas Rodrigues Barros

Tenho para mim que dois fatos foram cruciais para uma mudança radical no destino do Institut für Sozialforschung [Instituto de Pesquisa Social] em Frankfurt. O primeiro episódio foi a prematura morte de Hans-Jürgen Krahl que, além de aluno predileto de Adorno, era o único rival teórico à altura de Habermas. Aliás, a agitada vida de Krahl, a ruptura com Adorno, pouco antes do falecimento deste, seu engajamento no maio de 1968 e sua morte seis meses depois, com apenas 27 anos, requer um texto à parte. O outro episódio; a intransigente recusa por parte de Horkheimer, a despeito dos apelos de Adorno, em aceitar Alfred Sohn-Rethel como integrante do Institut. A história é conhecida; só no velório de Adorno é que ele conheceu Unseld, editor das obras adornianas, e foi convidado a lançar o seu livro que marcaria uma inflexão sobretudo no que concebemos como epistemologia (Cf. SOHN-RETHEL, 2021). Talvez, se esses dois tivessem participado dos rumos da velha Escola de Frankfurt, o destino dela teria sido bem mais fiel à crítica. Nunca vamos saber, mas sigo acreditando pascalianamente nisso.

Sohn-Rethel, versado em economia e filosofia, como todo bom alemão antinazista teve uma vida nômade. Comunista – a despeito das decepções com o engessado marxismo-leninismo – só se desfiliou do partido em 1972 quando percebeu que a desestalinização dos PCs jamais ocorreria. Seus longínquos 90 anos de existência lhe deram oportunidade, entretanto, de ver aquilo que sua intuição previa há décadas: a dissolução do bloco soviético. Suas contribuições seguem, no entanto, como uma sombra que, ao ser percebida, nos leva a encarar o quão a estrutura da mercadoria compactua com o universo transcendental do conhecimento. Ao se apropriar de categorias fundamentais da crítica da economia política de Marx – tais como valor, abstração real e fetiche da mercadoria – ele alarga o campo da crítica e nos faz apreender a umbilical relação das formas de conhecimento com a reprodução da vida social.

A surpresa presente nas análises críticas de Sohn-Rethel reside na conexão entre a epistemologia burguesa e a troca das mercadorias. Para se ter um vislumbre do alcance de suas teses, no entanto, precisamos retornar à base da crítica da economia política: a mercadoria está além do produto porque ela não se define pelo uso, mas pela troca. Aliás, ela só se realiza enquanto mercadoria quando seu valor-de-troca é alcançado. Ao partilharmos desse pressuposto também precisamos levar em consideração que o valor-de-troca permanece em potência como valor: o trabalho incorporado na mercadoria que acaba por determinar sua grandeza. Essa característica fundamental da mercadoria, desvendada por Marx, é a condição de possibilidade para que um produto qualquer se torne uma mercadoria. Quer dizer, o valor, subjacente a ela é a substância, a alma do processo, que impulsiona as relações de troca com o advento do mercado. Essa substância é criada com o dispêndio do trabalho; o trabalhador devotando seu corpo à produção, através do tempo de dispêndio de sua mão de obra, acaba encarnando no produto o valor.

A produção, quando atinge o processo que possibilita a passagem à mercadoria, é tal como um vampiro que para sobreviver precisa do sangue e do suor dispensado por suas vítimas. Por isso, nas modernas sociedades, onde reinam as mercadorias, o trabalho que cria o valor é o trabalho humano abstrato, trabalho morto, executado por uma massa passada. O passado é uma substância organizada pelo presente para preparar a reposição do excedente no futuro através da troca. Por isso, o tempo se torna também abstrato e serial. No entanto, Sohn-Rethel aguça sua visão para o fato de que o lugar da abstração está na forma social da relação de troca e não só no trabalho em si. Isso executa uma operação crítica que nos permite perceber que o fetichismo da mercadoria não é só uma abstração específica da realidade, mas é a transformação da realidade numa abstração cuja virtualidade define a ação dos indivíduos. E claro que isso terá forte impacto nas formas de se estruturar um conhecimento acerca dessa realidade.

Uma rápida olhada para a ciência do século XX nos faz perceber as grandes disputas que se fizeram em torno do fazer científico. Diante das grandes catástrofes das guerras, os cientistas são convidados a pensar sobre o real significado de uma suposta neutralidade epistêmica. Sohn-Rethel, porém, já em 1938, colocava em questão a noção de neutralidade, só que fazia isso por um caminho diverso: levava em consideração os impactos que a forma de reprodução social, dominada pela mercadoria, tinha na elaboração da ciência. Ele percebia que o processo de abstração se realiza não do interior para o exterior, ou melhor, da consciência para a realidade, e sim da realidade para a consciência. O abstrato advém das formas de sociabilidade que foram organizadas a partir da realização do mercado e é nelas que se efetiva a individualização da consciência privada.

A consciência, nascida desse processo, torna-se na verdade a realização empírica da abstração do trabalho. Ora, o ponto curioso, desnudado por Sohn-Rethel, se refere ao fato de que as condições de possibilidade do advento do mercado cada vez mais se relacionam com a abstração da teoria do conhecimento. Se a ação da troca é ligada à empiria, com seus limites práticos no âmbito próprio à representação, ela precisará ser legitimada. O desdobramento histórico se marca, portanto, pela separação entre a atividade subjetiva e as condições objetivas.

A própria condição de ser social, desse modo, é tomada pela abstração. As formas de conceber a realidade são atravessadas pelas categorias que se apresentam à consciência no nível simbólico. Por isso, para Sohn-Rethel, o pensamento puro não é um olhar turvado, mas apresenta a socialização do pensamento que é mediado pelo influxo da abstração real operada na ação de troca. O alcance dessa conclusão não me parece ter sido levado em consideração uma vez que as respostas surgidas aos impasses sociais serão determinadas pela tentativa de manutenção das relações de troca. O que isso significa? Basicamente, que todas as formas de constituir as representações categoriais partem da forma organizativa da sociedade e tem como fundamento o modo de reprodução da vida social. E qual o desdobramento possível? Entender como as formas de organização social estão determinadas pelas relações de troca e agem no sentido de viabilizá-las, organizando seus aspectos ideológicos que precisam ser legitimados pela crença de seus participantes. Como Mefisto dizia: no principio realmente era a ação… a ação da troca!

Mas, o interessante é a demonstração de como a consciência e a ação dos indivíduos percorrem caminhos distintos; a ação da troca se abstrai do uso enquanto a consciência dela não. A própria condição de possibilidade da troca significa um processo no qual a ação humana é condicionada e se realiza por trás das suas costas (quem, como eu, dá atenção à psicanálise, logo conclui que, tal como é estruturado como uma linguagem, o inconsciente é também estruturado pela troca). Essa abstração, que é real, arrasta consigo toda a forma de sociabilidade, coisifica as relações humanas e humaniza as relações entre coisas. O pensar e o agir restam, portanto, dissociados e a abstração se torna a portadora da sociabilidade. Podemos, inclusive, pensar o quanto esse processo resulta na consolidação da noção de sujeito e no processo de individuação do ser. Quer dizer, se o sujeito da psicanálise é o sujeito da falta, por que não pensá-lo como um sujeito da privação econômica – uma vez que a economia é vista como o reino da necessidade?

Nesse sentido preciso, a troca passa a subsumir as relações sociais independentemente das necessidades concretas. Melhor dito, independente das condições de produção e do uso das mercadorias. O curioso aqui é o papel que será desenvolvido pela filosofia e pela economia política pois aqueles que tornam evidente esse processo de abstração, engendrado pela troca, como bem observa Sohn-Rethel, são Kant e Adam Smith. Se a troca realiza o processo de abstração social, a consequência é também a separação entre o trabalho espiritual e o trabalho braçal organizados nos seguintes termos: o primeiro, ajuda a dinamizar o processo de troca; ao passo que, o segundo, surge como uma necessidade da sua realização. A própria separação entre trabalho intelectual e material é indiferente à teoria do conhecimento. Isso evidencia uma relação contraditória que se desenvolve no interior das relações concernentes ao mundo da mercadoria. Assim, a separação entre trabalho braçal e trabalho intelectual assume o significado da dominação.

Acontece que o alcance da análise de Sohn-Rethel se estende também às formas de organização da gestão do capitalismo, inclusive àquelas categorias que se desenvolvem para a realização de sua política econômica. Com isso identidades raciais, nacionais, étnicas e de gênero forjam-se sobretudo pela necessidade de manutenção da relação de troca e são organizadas a partir da forma-valor da mercadoria que precisa ser realizada no mercado. Alguém, dentre os hipotéticos-leitores, pode torcer o nariz e dizer que a partir dessa conclusão se suprime o campo da liberdade, mas acerca desse ponto uma torcida no parafuso hegeliano pode soar cínica sem deixar de iluminar uma questão fundamental: se a liberdade é ter plena consciência da necessidade e se a necessidade é delimitada pela reprodução da vida social, a própria liberdade restará presa ao sistema que reproduz a vida social. Isso nos guia novamente ao tema geral: a humanidade só se impõe problemas que ela pode resolver. Ou seja, os limites da liberdade só são efetivamente desafiados quando se desafia radicalmente a forma de reprodução social, fora disso o que temos é disputa ideológica no interior do mesmo.

Para entender essa posição é preciso levar em consideração que as oposições capital/trabalho e trabalho espiritual/braçal dão as coordenadas de uma fundamentação social na qual a estrutura de uma abstração, realizada para a reprodução do metabolismo do capital, opera a redução das relações sociais. A realização da abstração, em nome da realização da mercadoria como tal, efetiva-se a despeito da consciência dos indivíduos. Esse registro, de um inconsciente condicionado pelas trocas, acaba estabelecendo a virtualidade do próprio fetichismo da mercadoria. Nós precisamos acreditar nessa realização que, encarnada no valor produzido pelo trabalho abstrato, torna-se efetiva na forma dinheiro como equivalente geral das trocas.

Segundo Sohn-Rethel, é, com efeito, Kant o expoente máximo e representante das cisões necessárias à manutenção da forma-mercadoria. Ele traduz a operação da abstração realizada pela troca nos chamados juízos sintéticos a priori. É preciso demarcar a concordância que Sohn-Rethel tem com os princípios básicos do conhecimento das ciências naturais defendidos por Kant porque “as ciências exatas naturais pertencem aos recursos de uma produção que abandonou os limites individuais da produção isolada da observância pré-capitalista” (SOHN-RETHEL, 2021). Ou seja, as ciências, na modernidade, comprometem-se com as formas de reprodução social ainda que a consciência desse processo seja a ela indiferente.

Ao assinalar isso, Sohn-Rethel mantém o olhar suspenso nas relações de troca e isso nos permite entrever uma fundamental contradição que se expressa nos limites da quebra monadológica para a realização das trocas. Quer dizer, ele está se importando com a capacidade que o valor tem, não de influenciar a ciência, mas de se tornar o princípio inconsciente que anima o pensamento científico. O curioso é que realmente a ciência tem autonomia frente à economia, mas essa autonomia é imanente aos termos próprios à ordem econômica. Por isso, o valor não é uma simples universalidade abstrata, mas aquilo que impulsiona as relações sociais e a atividade no processo de sociabilidade como um todo. E é assim que o capital é o sujeito efetivo, pois a realidade humana se torna possível pôr e para sua realização. O movimento é o movimento do capital, isso se reflete na teoria do conhecimento. O alcance dessa conclusão também nos leva a conjeturar sobre a forma como a alteridade do capitalismo é autorreferente, quer dizer ele a absorve guiando-a aos seus próprios pressupostos de realização via valor-de-troca. Num sentido menos abstrato, o capital é capaz de englobar em si quaisquer diferenças desde que elas se tornem capazes de realizar a troca necessária ao valor. O trabalho intelectual ganha nisso centralidade porque se torna um facilitador das relações impostas pelo capital, ele precisa não só pensar a matemática da reprodução social como legitimar esse processo pelo discurso ideológico.

Acredito que, nas linhas acima, já esteja exposto um motivo fundamental para se aprofundar no pensamento de Marx permanecendo autônomo frente ao carisma das diversas igrejas que rezam um credo estranho ao próprio Marx. Mas quero salientar ainda um último ponto; ele reside nas contribuições que Sohn-Rethel traça para pensar o caráter formal do direito enquanto tal. A condição de possibilidade da relação de troca se dá pela possibilidade de existir uma relação de igualdade formal através da abstração de qualidades específicas que viabilizem a realização do valor. Pode parecer tautologia, mas isso presume a construção de condições da própria permuta conduzindo à forma dos contratos como algo determinante à estrutura do mercado que se processa através do desdobramento histórico e do amadurecimento da forma-valor. Como dizia o velho Marx lá atrás: a igualdade é a igualdade da troca e a liberdade é a liberdade do comércio. Isso, entretanto, nos coloca uma contradição fundamental: a troca de mercadoria se realiza socialmente mantendo os campos da propriedade separados. O princípio dúplice da propriedade, organizado pelo “meu” e “teu”, é aquilo que realiza a unidade da mercadoria que se estabelece como condição sine qua non da sociabilidade. É uma unidade excludente, balizada por um duplo movimento de proprietários que será legitimada pela virtualidade do direito e do Estado.

A mercadoria é aquela que encontra a identidade de si consigo mesma na realização da troca, essa unidade realizada é própria ao ser-mercadoria. Isso significa que cada mercadoria assume um ser indivisível e único só passível de se realizar no processo de troca. As sutilezas metafísicas, capturadas por Marx, são desnudadas por Sohn-Rethel quando ele leva em consideração que a forma da troca é a unidade de existência de cada ser da mercadoria. Assim, sua possibilidade de realização é efetivada pela abstração de características específicas. Por que isso tem algo em comum com o direito? Porque a abstração aritmética guiada pela quantificação da mercadoria (balizada pelo tempo de dispêndio do trabalho para sua produção) será correspondente à formalização dos contratos e à abstração formal do direto do homem. O direito é um direito aritmético – reduz qualidades históricas – e, por isso, trata-se de um universalismo abstrato que corresponde à manutenção das relações de reprodução do capital. É desse universalismo que emana todo tipo de lamentações de Jeremias hoje. A tristeza é que os lamentáveis lamentadores não têm disso consciência.

O mundo se torna um mundo para a realização do mercado e o sujeito se torna o próprio capital; um sujeito automático, tautológico, que regula toda alteridade com base na sua autorreferência. A inversão de relação entre coisas que se humanizam e humanos que se coisificam caracteriza a própria realidade social organizada a partir da necessidade de realização do valor. Claro que isso opera uma organização imaginária dirigida pelo processo social que tem na realização do capital sua finalidade. O trabalho intelectual, que se dissocia do trabalho braçal, é apenas uma das contradições que dirige o processo no qual as sutilezas metafísicas da mercadoria governam o inconsciente geral.

Talvez, a curiosidade, e aquilo que nos causa um verdadeiro estranhamento ao pensar nas conclusões de Sohn-Rethel, resida no caráter insubstancial e radicalmente virtual que o capitalismo assume. O capitalismo realmente tem uma estrutura jeovista. Na forma mercadoria, na unidade de si que ela realiza, encontram-se a subjetividade e a objetividade. Ela se torna o ponto de referência que organiza o significado da ação social. A abstração é real na medida em que acreditamos sem pestanejar nos seus resultados. Na medida que ela condiciona nosso próprio imaginário e organiza nossa estrutura simbólica, nos tornamos seus devotos. Enfim, foi Sohn-Rethel que me ajudou a concluir, por exemplo, que a ideia de raça é uma abstração real que assume um caráter virtual dando sentido à ação dos racializados.

Os desdobramentos disso seriam excessivos nesse texto, por isso me despeço, já falei demais!

Referência bibliográfica
SOHN-RETHEL, A. Intellectual and Manual Labour: A Critique of Epistemology. Chicago: Haymarket Books, 2021.

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Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor e conselheiro editorial do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Racismo (Fibra/Brasil, 2020). Militante do movimento negro, foi coordenador político da Uneafro.

1 comentário em Trabalho intelectual e trabalho material: a propósito de Alfred Sohn-Rethel

  1. Excelente análise de Douglas Barros! Obrigado, Josef

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