Duas palavrinhas sobre um romance de Chico Buarque (e as mulheres)
O romance anuncia um tipo. Uma boemia pseudo-progressista, branca, masculina e heterossexual que pode até não ter votado em Bolsonaro, mas que passa ao largo da história política do país. A particularidade explorada por Chico Buarque é mostrar que esse tipo faz parte também de uma “elite de classe média” profundamente alienada que se pensa civilizada e progressista. Também ela é misógina, racista, classista e busca sobreviver do nome da família e do passado colonial. Seu mundo está em ruínas.
Por Bruna Della Torre
“Mulheres, como as desgraças, vêm sempre uma atrás da outra, pode reparar.”
Essa gente, Chico Buarque
Quem se lembra bem dos estudos de Roberto Schwarz a respeito do romance, não vai negar que o “favor” – nosso mediador quase universal, segundo o crítico – tem na literatura de Machado um forte traço de gênero. É a partir da figura de mulheres dependentes (Guiomar, em A mão e a luva; Helena, em Helena; e Estela, em Iaiá Garcia) que Machado faz um estudo detido do paternalismo em sua obra de juventude. Talvez seja possível afirmar que, mesmo na Europa, as mulheres eram a grande figura de dependência na literatura porque excluídas em grande medida da promessa capitalista de ascensão social pela via do trabalho. Daí a importância que o tema dos casamentos desiguais ganhou para o romance. Quem sabe os pressupostos do realismo no centro do capitalismo tenham tido, sim, gênero. Mas isso é outro assunto. O que importa é que o problema ganha, com Machado de Assis, uma nova camada no Brasil, ligada à combinação estranha, porém funcional, de relações tradicionais paternalistas e ideais liberais. Em sua obra de maturidade, o escritor faz desse desajuste princípio formal ao estilizar uma conduta própria à classe dominante brasileira. Mas, se o nexo entre paternalismo e liberalismo e a sensação de desajuste que ele produz ainda comandam nossa vida ideológica, certamente o fazem de uma forma diversa numa época na qual a autoridade masculina, base da instituição família e do paternalismo, entrou em declínio vertiginoso. Nesse ponto, Chico Buarque toma de empréstimo a pena machadiana para tratar do problema.
Nada mais ressentido que o homem que ficou para trás; que levou uma moça ao samba e foi trocado por outro par; que cultivou em vão rosas e rimas; e cujo violão emudeceu de abandono. Na música, assim como nos romances e agora nos contos, Chico Buarque captou o tipo com maestria. A masculinidade desalojada é um dos grandes eixos de Essa gente, que conta a história de Manuel Duarte, escritor do best-seller O Eunuco do Paço Real. Tendo perdido a fama, suas mulheres e seu dinheiro, o escritor passeia pelo Rio de Janeiro pretensamente em busca de inspiração para um novo livro que há de restaurar o que foi perdido. Ambientada nessa cidade entre 2016 e 2019, a história trata do declínio da sociedade brasileira e da manifestação de seu caráter antissocial (SCHWARZ, 2019). Mas o absurdo do Brasil nos últimos anos, prato cheio para o escritor adepto tanto do romance social quanto do modernismo surrealista, fica em segundo plano diante da relação de Duarte com as mulheres, que constitui um dos eixos centrais do livro e que fornece, talvez, algumas pistas para a sua interpretação. O livro verte misoginia pelos poros, a despeito da simpatia que Duarte possa inspirar em uns mais que outras.
Duarte é um homem ressentido com sua mãe, que não sossegava ao lado do pai “nem com esparadrapo” (BUARQUE, 2019, p.42). Além de ter vários amantes, ela abandonou Duarte e seu pai, que nunca a perdoou. Doente, cometeu o erro de aparecer em casa apenas para morrer, careca e com câncer, diz ele, atraente e repulsiva em sua fraqueza. Mãe que persegue Duarte em sonhos e pesadelos. Na hora da morte, Duarte a vê: “Não quero crer, mas é mesmo a minha mãe que se aproxima, me fitando com a cara muito séria, no claro intento de deitar comigo. Sentada na beira do sofá, ela abre os botões de pérola da sua blusa, me mostra os seios e os acaricia com lágrimas nos olhos. Depois levanta minha cabeça e com lábios gelados me beija a boca. Depois me faz o sinal da cruz” (BUARQUE, 2019, p.187). As mulheres são cruéis, seria essa a primeira lição da vida. A mãe foi a primeira, mas nem de longe seria a última.
No início da narrativa, descobrimos que Duarte mudou de endereço após ter sido abandonado por Rosane, arquiteta e designer que o substituiu por um grande empresário da soja e que, apesar de manter com Duarte encontros sexuais esporádicos, não tem interesse em ir além disso. Rosane, diz Duarte, “começou a achar que me faltava ambição, que eu deveria assinar colunas num grande jornal, que meus livros encalhavam porque não tinham punch, e por fim me acusou de ter ciúmes do seu sucesso profissional. Acho que foi quando se meteu a decorar a casa do atual affair, um velho que fez fortuna com soja na Amazônia, então casado com uma mulher da sociedade” (BUARQUE, 2019, p.21). Duarte solicita a solidariedade de seu leitor; as mulheres gostam mesmo é de dinheiro, o ditado confirma. Ao ser acusado de machismo, rebate: “Não sou de bater em mulher, nem me dá prazer algum magoar o coração delas. Prefiro as que já vem magoadas por outro homem” (BUARQUE, 2019, p.17). As mulheres machucadas por outros homens lhe atraem. Duarte afirma fantasiar sexualmente com viúvas jovens e fiéis, debatendo-se com a culpa de estar na cama com outro.
Duarte é um escritor medíocre, incapaz de reaver a sua fama sem a ajuda de sua primeira ex-mulher, Maria Clara, tradutora renomada com quem foi casado durante 12 anos e com quem teve um filho, pelo qual tem pouco interesse. Maria Clara não sofre com o divórcio, não exige pensão alimentícia e tampouco a presença do pai na vida do filho. A certa altura da narrativa, encontramos uma carta de Petrus, editor de Duarte, na qual avalia o primeiro rascunho enviado pelo autor à editora: “A mera leitura das primeiras páginas já comprova o quanto você foi importante para a carreira do seu marido, para muito além da prévia revisão gramatical que fazia por amor ou companheirismo, poupando-o de maiores constrangimentos. Por pouco não me rendo às maledicências correntes aqui na casa, segundo as quais você reescrevia os livros dele de cabo a rabo. Não se assuste, Maria Clara, não irei lhe sugerir que reate um casamento em nome da ‘literatura pátria’. Mas espero que cogite a possibilidade de uma reaproximação intelectual, indispensável para o futuro do nosso Duarte, quando nada porque ele é o pai do seu filho” (BUARQUE, 2019, p.23). O próprio Duarte nos revela que ela era obrigada a revisar as passagens eróticas de seus livros, resultantes das traições frequentes do marido. Não surpreende que ela tenha passado bem com o divórcio. Após um episódio no qual é atacada por seu passeador de cachorro (não ficando claro se ela sofreu algum tipo de violência sexual), Maria Clara tem uma crise nervosa, compra um revólver, passa a ser cuidada por uma enfermeira – que se torna sua namorada – e termina o livro mudando-se para Portugal, como parte das classes altas após a eleição de Bolsonaro.1
Além de Rosane e Maria Clara, Duarte é filho da boemia carioca e mantém relações frequentes com prostitutas: “Em noites de abandono […] vou às putas, que pago em dobro para transar sem camisinha, quando não pago o triplo para não transar e fazê-las ouvir literatura” (BUARQUE, 2019, p.158). O trecho não deixa de ressaltar a qualidade da conversa do cidadão: é preferível pegar uma doença venérea do que escutá-lo discutir literatura.
Finalmente, ao longo da narrativa, Duarte se interessa por Rebekka, holandesa de vinte e poucos anos, companheira de Agenor, salva-vidas que lhe socorreu de um afogamento. Duarte lhe pergunta “se ficaria comigo se eu fosse vinte anos mais moço. Sorrindo, ela me responde que sim, se eu fosse vinte anos mais preto” (BUARQUE, 2019, p.120-121). Duarte, no entanto, consegue se aproximar da moça, inserindo-a no romance que escreve (e que ela traduz para o inglês). Às tardes, visita-o para ler o que escreveu sobre ela. Em troca da leitura, ela se despe, mas não consuma o ato sexual desejado por Duarte. A tensão entre as classes e raças é também um dos eixos importantes do livro, mas o elemento de gênero as atravessa – Duarte é rejeitado por mulheres de todas as classes sociais.
Dependente da ex-mulher intelectualmente superior a ele, trocado pela ex por um homem mais rico do agronegócio, rebaixado intelectualmente pelas prostitutas e preterido por Rebekka, a europeia branquela, cujo interesse único é ser retratada num livro, Duarte representa a ferida da masculinidade branca, rica e heterossexual atual. As mulheres do romance não são santas, personagens açucaradas que lhe servem de contraponto, mas também não se encaixam mais numa figura de dependência.
Um dos acertos de Chico Buarque consiste em mostrar a falta de qualidade literária de Duarte, um escritor ruim: erra o título de Shakespeare, trocando “Sonho de uma noite de verão, por sonhos de uma noite de verão”, conforme destacou Arthur Nestrovski (2019), parodia Proust de maneira kitsch,2 suspeita-se que não é ele quem escreve seus próprios romances. É progressista, pero no mucho, evoca a figura do carioca simpático de classe alta que convive bem com as outras classes sociais na praia e vai até em festa na favela, mas frequenta o Country Club e as festas do agronegócio organizadas pelo marido de sua ex-mulher. Sua apresentação no livro forma quase um tipo, o do pseudo-progressismo de parte educada da elite do país. Conforme lembrou Ivone Daré Rabello – retomando Roberto Schwarz – trata-se de uma sociedade “sob o signo da delinquência” (RABELLO, 2022) e o acento de Chico Buarque recai nesse livro sobre a delinquência das classes médias e altas.
A fórmula é machadiana. A maior parte do livro é narrada pelo próprio Duarte, por meio de registros no que parece ser um diário – “forma perversa da auto-exposição involuntária, ou seja, da primeira pessoa do singular usada com intenção distanciada e inimiga (comumente reservada à terceira)” (SCHWARZ, 2000, p.82). Ao colocar Duarte para escrever, faz o personagem-narrador enforcar-se com a própria corda. Este é o tipo de sujeito que não pode falar sozinho durante dez minutos sem dar uma bola fora. Duarte é cínico, sugere que a ex-esposa o deixou por dinheiro, desqualificando a acusação de misoginia e da sua falta de ambição. Porém, por trás dessa narrativa, há um outro material (como a carta do editor de Duarte a Maria Clara, por exemplo) que sugere um narrador/organizador onisciente, ou ao menos, um narrador que busca nos revelar que Duarte não conta toda a verdade. Aos registros no diário, somam-se outros documentos que compõem a narrativa como cartas de Maria Clara, cartas de Petrus, seu editor, o diário de Rosane, uma notificação extrajudicial de uma companhia de seguros, um telefonema de Rosane, entre outros. A exposição é entrecortada e experimenta com o cruzamento dos pontos de vista que se chocam a partir desse material.
Desse modo, combinados ao discurso indireto, esses elementos permitem criar uma espécie de anatomia desse tipo que tem sido chamado pela sociologia de “homem médio” (Cf. BRUM, 2019; CHAGURI, CAVALCANTE, NICOLAU NETTO, 2019). Um homem que perde a cada dia mais seus privilégios, que teve todas as condições materiais de lutar e vencer o jogo da concorrência, mas que permanece medíocre, ferido na sua masculinidade, usado e desprezado pelas mulheres que deseja, cujo ressentimento é um dos principais traços, mas que na narrativa aparece disfarçado – projetado nas mulheres. Seu sucesso (do qual já duvidamos a esta altura) advém do trabalho reprodutivo não reconhecido da ex-mulher – conforme mostra a carta de Petrus. O romance anuncia um tipo. Uma boemia pseudo-progressista, branca, masculina e heterossexual que pode até não ter votado em Bolsonaro, mas que passa ao largo da história política do país. A particularidade explorada por Chico Buarque é mostrar que esse tipo faz parte também de uma “elite de classe média” profundamente alienada que se pensa civilizada e progressista. Também ela é misógina, racista, classista e busca sobreviver do nome da família e do passado colonial. Seu mundo está em ruínas.
Oswald de Andrade costumava dizer que, no Brasil, o contrário do burguês nunca foi o proletário, mas o boêmio. O livro de Chico Buarque participa dessa autocrítica modernista. Ao colar na subjetividade desse tipo, ao transformá-lo em narrador, ao expor os seus elementos mais ridículos, Chico Buarque conta a história de um tipo que não é só importante no Brasil, mas que tem sido objeto de estudos no âmbito da ascensão da extrema direita no mundo todo (Cf. BROWN, 2019). A relação com cada uma dessas mulheres dá corpo à narrativa e Duarte parece querer continuar a viver uma vida que não é mais possível.
A combinação entre atraso e modernidade, paternalismo e liberalismo, cede lugar a um processo no qual a base social do favor se intensifica e desintegra ao mesmo tempo. Com a brutalidade neoliberal, a família deixa de ser sinônimo de proteção social e, com isso, o que restava da autoridade branca masculina heterossexual é aniquilada. O fim do favor – anunciado na relação de Duarte com as mulheres, mas igualmente na recusa dos subalternos em acatar esse tipo de relação – pode não ter resultado emancipatório, aliás, longe disso, mas também anuncia mudança. O título do livro, que brinca com a expressão “essa gente” – utilizada pela classe média e pelas elites para designar os pobres (essa gente que não gosta de trabalhar) passa a designar outra coisa. Quem é essa gente? Todos nós? Ou gente com classe, raça e gênero bem definidos? Diferente de Estorvo, no qual a delinquência generalizada ganha tom sombrio, Essa gente é cheia de humor e ironia. O fim do governo Bolsonaro confirma que o desejo de mudança foi maior – ainda que por pouquíssimo – do que o desejo de preservar um mundo em ruínas.
O livro termina com a morte de Duarte, não há nenhuma notícia sobre o seu velório. Talvez ninguém lamente sua morte.
Notas
1 Conforme chamou a atenção BRITO, 2019.
2 Duarte diz: “Ainda assim, a Rosane que eu então possuísse não se igualaria àquela que, ao mesmo tempo, eu imaginaria possuir” (BUARQUE, 2019, p. 108). A frase de Proust diz: “Sabia que eu não possuiria aquela jovem ciclista se não possuísse também o que havia em seus olhos. E era por conseguinte toda a sua vida que me inspirava desejo; desejo doloroso, porque o sentia irrealizável, mas embriagador […]” (PROUST, 2012, p. 442).
Referências bibliográficas
BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de. Essa gente, de Chico Buarque. Boletim Lua Nova, 2019.
BRUM, Eliane. O homem mediano assume o poder. El Pais, 4 de janeiro de 2019.
BROWN, Wendy. Nenhum futuro para homens brancos: niilismo, fatalismo e ressentimento. In: BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.
CHAGURI, Mariana; CAVALCANTE, Sávio; NICOLAU NETTO, Michel. O conservadorismo liberal do homem médio. Época, 9 de janeiro de 2019.
NESTROVSKI, Arthur. Pequeno grande romance escrito por Chico Buarque resume o estado do país. Folha de São Paulo, 8 de novembro de 2019.
PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Globo, 2012.
RABELLO, Ivone Daré. Comentário sobre o livro de contos de Chico Buarque. A Terra é redonda, 1 de janeiro de 2022.
SCHWARZ, Roberto. Neoatraso bolsonarista repete clima de 1964, diz Roberto Schwarz. Folha de São Paulo, 15 de novembro de 2019.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2000.
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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
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