A manhã seguinte

Não são atos terroristas, são atos fascistas de extrema direita. Esperemos que o Estado burguês puna de forma exemplar os golpistas. Não adianta tentar cercar a multidão de galinhas verde e amarelas, mas sim ir direito a quem abriu a porta do galinheiro fascista. Nada será feito além da retórica se o núcleo fascista, a começar pela familícia de Bolsonaro, não for para a cadeia junto com os militares, policiais e empresários que constituem o comando fascista do golpe.

Por Mauro Luis Iasi

“Nas nações pobres que o povo está à sua
vontade; é nas nações ricas que
de um modo geral ele é pobre”.
Destutt de Tracy

Todos nós temos o direito de ficarmos felizes e aliviados com a derrota eleitoral do bolsonarismo. Afinal, seria previsível o tamanho da catástrofe caso o desgoverno de extrema direita seguisse seu rumo de destruição e morte. Agora temos novamente um governo com pessoas que andam eretas, comem de garfo e faca e usam da linguagem articulada no lugar de grunhidos de ódio.

No entanto, como dizia Brecht, “na manhã do novo dia, ainda na aurora, os abutres se levantarão […] em nome da ordem”. Há um país a ser reconstruído, mas ainda não é o nosso. A frase propagandística proferida por nosso novo presidente – “só existe um Brasil” – tem seu efeito e sentido político para amenizar as tensões, mas não é verdade.

Ainda somos um país profundamente dividido pela miséria, a exploração e diversas opressões. A fratura aprofundada pela emergência de uma extrema direita de perfil fascista está longe de ser superada. São estes dois pilares de um mesmo processo, de um lado a profunda desigualdade econômica e social e de outro a expressão política de uma ordem em crise que assume a forma fascista. A resultante que define a forma política que prevalece não é uma equação simples, é cruzada pela correlação de forças na luta de classes e dos diversos interesses de segmentos que constituem os blocos políticos em disputa.

O bloco dominante, diante de uma crise persistente do capital, dividiu-se. Um segmento apostou na extrema direita enquanto outro, diante dos problemas que tal alternativa criou para o próprio processo de acumulação capitalista, deslocou-se para um retorno à conciliação de classes. Isto só foi possível pela sobrevivência do PT mesmo diante de uma brutal ofensiva desencadeada a partir de 2015 e que levou ao golpe de 2016. Como temos afirmado há bastante tempo, parece que a direita pensava em se utilizar da extrema direita para quebrar o PT e se apresentar como alternativa àquilo que chamava de “extremismos”, mesmo com a visível distorção ideológica de caracterizar a centro esquerda como um tipo de extremismo.

Como vimos, isso deu errado e a extrema direita ocupou o espaço deixado pelos governos petistas depostos. Muito em função das características carismáticas de seu principal líder e certamente pela disposição de sua militância, o PT sobreviveu aos brutais ataques combinados por uma ofensiva parlamentar, midiática e jurídica que visava retirá-lo do jogo político. A falta de uma alternativa à direita e a polarização entre o bolsonarismo e o lulismo, levou a uma eleição muito disputada na qual Lula ganhou com uma margem pequena de votos.

Na manhã do novo dia, as hordas fascistas tentaram um golpe no dia 8 de janeiro. Previsível e anunciado. Tendo a concordar com as várias leituras que nos alertam do risco de denominarmos tais atos golpistas como terrorismo. São, de fato, atos de extrema direita de perfil fascista, organizados diretamente pelas forças derrotadas no pleito de outubro, executados profissionalmente por financiadores, militares e milícias bolsonaristas e levados à frente por segmentos mobilizados nas bases bolsonaristas.

Devemos lembrar que o caminho jurídico que leva à lei antiterrorismo encaminhada pela então presidente Dilma ao Congresso em 18 de junho de 2015, começa com as Disposições Transitórias de 19 de dezembro de 2013, nas diretrizes das chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como resposta às manifestações de junho de 2013. Nestas disposições transitórias de dezembro de 2013, caracterizava-se como atos de natureza terrorista as manifestações, greves, fechamento de ruas e estradas e tipificava manifestantes como organizações criminosas, como o tráfico de drogas e armas. Na lei de 2015, afirma-se que seriam tipificados como terroristas os seguintes atos:

Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento.

O que nos preocupa é que a generalidade abstrata, própria do direito burguês, ao tratar como ato terrorista no geral como uma ameaça ao suposto Estado Democrático de Direito, acaba por subtrair a substância de ambos. Desta maneira, não existe diferença entre manifestações populares como forma de pressão na defesa de seus direitos e atos de extrema direita que miram objetivamente intenções golpistas. De outro lado o alvo das manifestações é o Estado, igualmente subtraído de seu caráter de classe.

Todos que já viveram o terror de uma reintegração de posse, normalmente à noite, sabem o que significa sofrer uma violência legitimada juridicamente pelo Estado burguês. Lembremos Pinheirinho, em janeiro de 2012, no governo de Geraldo Alckmin, só para dar um exemplo.

O terrorismo como forma de luta sempre teve a função de tornar pública uma guerra secreta, em uma correlação de forças desigual na luta contra um poderoso Estado. Foi assim com o terrorismo russo no final do século XIX, na luta pelo Estado de Israel contra o império inglês ou na Argélia ocupada pela França. Aqui tivemos uma ação golpista financiada por setores do grande capital, organizada por militares de extrema direita contra o resultado de uma eleição fundada em um sistema eleitoral que levou esta mesma extrema direita ao governo em 2018.

O fetiche de edifícios sagrados, instituições inatacáveis, de defesa de um Estado Democrático de Direito contra ações diretas de massa cumpre outra função que não o combate ao golpismo fascista. Este poderia ter sido enfrentado com o trabalho de investigação sério e medidas preventivas realizáveis. Os acampamentos golpistas foram tolerados por mais de dois meses, na frente das instituições que deveriam combatê-los. Soma-se a isso a nítida prevaricação dos poderes constituídos (Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Procuradoria Geral da República, etc.) diante das recorrentes iniciativas golpistas durante os quatro anos de mandato do miliciano fascista. Neste sentido, as incólumes instituições da República não são inocentes vítimas, mas cúmplices por omissão e ação.

Não são atos terroristas, são atos fascistas de extrema direita. Esperemos que o Estado burguês puna de forma exemplar os golpistas. Não adianta tentar cercar a multidão de galinhas verde e amarelas, mas sim ir direito a quem abriu a porta do galinheiro fascista. Nada será feito além da retórica se o núcleo fascista, a começar pela familícia de Bolsonaro, não for para a cadeia junto com os militares, policiais e empresários que constituem o comando fascista do golpe.

A manhã se apresenta com nuvens carregadas e elas não alertam apenas para a sobrevivência do bolsonarismo depois da derrota eleitoral, coisa aliás mais do que esperada e prevista. As nuvens anunciam velhos anátemas muito mais antigos como o desemprego, a fome, a chacina contra os povos originários, a falta de moradia, a violência urbana, o preconceito, a violência e a exploração do trabalho.

Nasceu uma nova manhã depois de uma noite de pesadelos. Respiramos o ar novo que traz todas as manhãs junto com os cheiros putrefatos do resto da noite. Nos permitimos uma alegria fugaz e alimentamos nossa esperança. No horizonte do dia que se anuncia, Brecht nos diz:

É o fim da miséria? Há alguma melhora?
Tudo dará certo? Chegou então nossa hora?
O mundo segue seu plano? Não:
É só uma gota no oceano […]
O mundo nos olha com um resto de esperança.
É tempo de não mais nos contentarmos
Com essas gotas no oceano.


***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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