A constante e conflitiva expansão da democracia para Jacques Rancière

A democracia não é um Estado acabado, nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e conflitiva expansão; não se reduz ao desenho das instituições, ou à governabilidade, ou ao jogo dos partidos, mas é algo que vem de baixo, desdenhado desde os gregos como o empenho insolente dos pobres em invadir o espaço que era de seus melhores, de seus superiores.

FOTO: FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

Publicado após as manifestações de junho de 2013 no Brasil e pouco antes da eleição do segundo mandato de Dilma Rousseff, O ódio à democracia, de Jacques Rancière, ganha nova reimpressão neste momento em que nossa democracia se vê diante de mais uma ameaça, mesmo com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Leia abaixo o texto de orelha do livro, assinado pelo professor Renato Janine Ribeiro, e confira também o vídeo exclusivo para a TV Boitempo em que o ex-ministro da Educação destaca a atualidade do livro de Rancière quase uma década depois de sua publicação no Brasil.

Por Renato Janine Ribeiro

Nos últimos anos, o Brasil se tornou um exemplo de inclusão social, com dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza e da miséria para terem uma vida melhor. Em que pese a inclusão ter ocorrido sobretudo pelo consumo – mais que pela educação –, ela mudou o país. Hoje, ninguém disputa o Poder Executivo atacando os programas de inclusão social. Eles se tornaram um consenso junto à grande maioria dos eleitores. Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto.

O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no amor. Mas essa expansão da democracia incomoda. Daí, um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas do golpe de 1964, condenando medidas que favorecem os mais pobres como populistas e demagógicas.

Por isso são relevantes ensaios sustentando que a democracia não é um Estado acabado, nem um estado acabado das coisas; que ela vive constante e conflitiva expansão; que não se reduz ao desenho das instituições, ou à governabilidade, ou ao jogo dos partidos, mas é algo que vem de baixo, desdenhado desde os gregos como o empenho insolente dos pobres em invadir o espaço que era de seus melhores, de seus superiores. Porque a ideia de separação social continua presente e forte. Se as ditaduras deixaram, desde os anos 1980, de tutelar a maior parte da humanidade, se governos eleitos proliferam, se a orientação sexual dissidente é mais bem aceita hoje, isso não significa que se tenha completado a democratização das formas de convivência social. E é justamente essa recusa da hierarquia que tem a ganhar com a leitura de O ódio à democracia, de Jacques Rancière que, à luz dos clássicos como da experiência francesa e mundial, continua um trabalho sempre renovado, jamais concluso, de afiar o gume da democracia.

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Neste breve e contundente ensaio, publicado em 2005 na França, Jacques Rancière, um dos mais importantes filósofos da atualidade, conduz o leitor por um passeio pela história da crítica à democracia para situá-la no cerne político do momento atual, procurando esclarecer o que há de novo e revelador no sentimento antidemocrático, uma manifestação tão antiga quanto a própria noção de democracia. Dessa forma, Rancière repensa o poder subversivo do ideal democrático e o que se entende por política, para assim encontrar o caráter incisivo de sua ideia. O livro ganhou edição em português pela Boitempo em um momento único da política brasileira, no contexto de um cenário eleitoral surpreendente, que sintetizou a efervescência social dos últimos anos, revelada com mais intensidade nas manifestações sociais de junho de 2013. A obra mostra-se atual também em relação ao debate que vem crescendo sobre participação e representação popular, democracia direta e o desejo de que a política signifique mais do que uma escolha entre oligarcas substituíveis. Com uma narrativa que prima pela erudição e absoluta ausência de afetação, Rancière faz uma análise oportuna sobre as contradições dos Estados democráticos e lança uma crítica ao sistema representativo vigente a partir de uma afirmação polêmica: “Não vivemos em democracias. Vivemos em Estados de direito oligárquicos, em um admirável sistema que dá à minoria mais forte o poder de governar sem distúrbios”. Nesse contexto, o ódio à democracia se apresenta como o ódio ao povo e seus costumes à sociedade que busca a igualdade, o respeito às diferenças e o direito das minorias , e não às instituições que dizem encarnar o poder do povo. Os porta-vozes desse ódio, defensores da ordem legítima e do direito ao poder àqueles destinados por nascimento ou eleitos por suas competências, habitam todos os países que se declaram Estados democráticos. A disputa pelo consenso está, no entanto, em aberto. Para Rancière, começa pela compreensão de que a democracia não se fundamenta em nenhuma natureza das coisas e não é garantida por nenhuma forma institucional.

“Este delicioso ensaio sardônico é, em parte, um giro erudito pela história da filosofia política e, em parte, um agradabilíssimo jorro de insultos dirigidos a pensadores rivais.”
The Guardian

“Nos atuais tempos de desorientação da esquerda, o texto de Rancière oferece uma das raras conceitualizações consistentes de como continuar a resistir.”
Slavoj Žižek
 

O ódio à democracia, de Jacques Rancière, tem tradução de Mariana Echalar, texto de orelha de Renato Janine Ribeiro e capa de Ronaldo Alves.

Disponível em nossa loja virtual e e-book à venda nas principais lojas do ramo:


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Renato Janine Ribeiro é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ex-Ministro da Educação e professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP).

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