Os diagnósticos precisos de Charles Dickens

As deteriorações causadas pela industrialização, os antagonismos entre as classes, o aviltamento das condições de trabalho: tudo isso estabelece uma rede de conexões que, ao longo do romance, envolve a vida familiar degradada, a diluição de sonhos afetivos e as marcas individuais que os personagens carregam. O notável é que "Tempos difíceis" elabora essa matéria mediante uma sofisticada fusão de arte narrativa, mapeamento social e investigação da vida subjetiva – uma poderosa combinação presente nas obras-primas.

Réunion de 35 têtes d’expression, de Louis Léopold Boilly

No dia 7 de fevereiro de 1812, há exatamente 211 anos atrás, nascia o romancista social inglês Charles Dickens, o mais popular dos romancistas da era vitoriana, que contribuiu para a introdução da crítica social na literatura de ficção inglesa. Dele, publicamos o inesquecível Tempos difíceis pela coleção Clássicos Boitempo. Leia abaixo o texto de orelha da obra:

Por Daniel Puglia

Tempos difíceis, de Charles Dickens, talvez seja uma das melhores portas de entrada para o universo do escritor britânico. Muitas das preocupações que nortearam sua escrita ao longo de inúmeros romances, ensaios e artigos estão condensadas neste romance. Tanto para leitores que iniciam seu caminho quanto para os mais familiarizados com temas e discussões presentes em sua obra, este é um livro que pode servir como guia de leitura e releitura permanente.

As consequências mais nefastas trazidas pelo rápido avanço do capitalismo no século XIX formam um dos pilares em que se estrutura a estética de Dickens. O outro pilar é a crença numa energia vital e veemente, capaz de reformar quaisquer sentimentos humanos: a imaginação e sua capacidade para despertar o que de melhor trazemos em nosso coração. A relação entre esses dois pilares origina dificuldades para o escritor, uma vez que sua prosa frequentemente realiza diagnósticos precisos, com achados de vasto alcance artístico que, no entanto, arriscam soluções nem sempre satisfatórias no plano formal – umas das características, aliás, da estranha genialidade de Dickens.

Em Tempos difíceis, como em grande parte da obra do autor, a racionalidade movida pelo lucro e pela exploração é contraposta pela celebração da fantasia e da bondade: um apelo que, em tempos tão difíceis como os atuais, pode parecer excessivamente ingênuo. Mas a fantasia e a bondade aqui devem ser vistas como um gesto, um pedido, um desejo: o sol para terminar uma noite.  

As deteriorações causadas pela industrialização, os antagonismos entre as classes, o aviltamento das condições de trabalho: tudo isso estabelece uma rede de conexões que, ao longo do romance, envolve a vida familiar degradada, a diluição de sonhos afetivos e as marcas individuais que os personagens carregam. O notável é que Tempos difíceis elabora essa matéria mediante uma sofisticada fusão de arte narrativa, mapeamento social e investigação da vida subjetiva – uma poderosa combinação presente nas obras-primas.

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Neste clássico da literatura, Charles Dickens trata da sociedade inglesa durante a Revolução Industrial usando como pano de fundo a fictícia e cinzenta cidade de Coketown e a história de seus habitantes. Em seu décimo romance, o autor faz uma crítica profunda às condições de vida dos trabalhadores ingleses em fins do século XIX, destacando a discrepância entre a pobreza extrema em que viviam e o conforto proporcionado aos mais ricos da Inglaterra vitoriana. Simultaneamente, lança seu olhar sagaz e bem humorado sobre como a dominação social é assegurada por meio da educação das crianças, com uma compreensão aguda de como se moldam espíritos desacostumados à contestação e prontos a obedecer à inescapável massificação de seu corpo e seu espírito. Acompanhando a trajetória de Thomas Gradgrind, “um homem de fatos e cálculos”, e sua família, o livro satiriza os movimentos iluminista e positivista e triunfa ao descrever quase que de forma caricatural a sociedade industrial, transformando a própria estrutura do romance numa argumentação antiliberal. Por meio de diversas alegorias, como a escola da cidade, a fábrica e suas chaminés, a trupe circense do Sr. Sleary e a oposição entre a casa do burguês Josiah Bounderby e a de seu funcionário Stephen Blackpool, o resultado é uma crítica à mentalidade capitalista e à exploração da força de trabalho, imposições que Dickens alertava estarem destruindo a criatividade humana e a alegria. Escrito em 1854, o clássico Tempos difíceis mantém sua atualidade. Em meio à crise capitalista que assola parte do mundo com números crescentes de desempregados e cortes de gastos dos Estados – e, consequentemente, de empobrecimento da população –, a obra de Dickens mostra um panorama histórico do sistema capitalista e faz uma crítica social contundente a ele. Mais do que nunca, torna-se leitura necessária para a reflexão sobre como o capitalismo se arraigou em nossa existência cotidiana. Completam a edição brasileira ilustrações de Harry French, publicadas com a segunda edição inglesa na década de 1870.

“Dickens vê sua sociedade apodrecendo, desvelando-se, tão sobrecarregada de substância desprovida de sentido que afunda gradualmente em uma espécie de lodo primitivo.” 
– Terry Eagleton

“Dickens estava lá para lembrar o povo que a Inglaterra havia apagado duas palavras do lema revolucionário – deixara apenas “Liberdade” e destruíra “Igualdade” e “Fraternidade”. Em todos os seus livros ele advoga a Fraternidade. Neste Tempos difíceis, defende especialmente a Igualdade.”
– G. K. Chesterton

“Uma análise aprofundada e criativa da filosofia dominante do industrialismo.”
– Raymond Williams
 

Tempos difíceis, de Charles Dickens, tem tradução de José Baltazar Pereira Júnior, texto de orelha de Daniel Puglia, ilustração de Harry French, quarta-capa de Raymond Williams, Terry Eagleton e Gilbert Keith Chesterton e capa de Rafael Nobre.

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Disponível em nossa loja virtual e e-book à venda nas principais lojas do ramo:


Mell Ferraz, do canal Literature-se, fez uma leitura completa da obra:

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Daniel Puglia é graduado em Administração de Empresas (FEA-USP) e em Letras (FFLCH-USP), com mestrado em Psicologia Social (IP-USP) e doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (FFLCH-USP). É professor do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo, onde tem por tema de pesquisa as relações entre literatura, cultura, história e filosofia. É autor de Franz Kafka: uma imagem do artista (2005), Duas Margens (2007) e Charles Dickens: um escritor no centro do capitalismo (2008).

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