O maior
Luiz Bernardo Pericás escreve sobre o pugilista Teófilo Stevenson: “Assim foi esse ícone do esporte, um verdadeiro herói do povo cubano. O maior lutador de ‘Nossa América’. O maior."
TEÓFILO STEVENSON E FIDEL CASTRO
Por Luiz Bernardo Pericás
O maior lutador de boxe da América Latina. Sei que alguns não concordarão comigo, mas para mim um nome se sobressai em relação a todos os outros: Teófilo Stevenson.
É verdade que o peso-pesado cubano foi sempre um esportista “amador” e nunca enfrentou os grandes pugilistas profissionais de sua época. Ainda assim, provavelmente teriam sido vencidos por Stevenson, se ele tivesse se disposto a participar do circo do boxe representado por organizações como a WBA, WBC e IBF (esta última fundada quando Teófilo já estava no final de sua carreira). O fato é que ele jamais quis seguir por este caminho. Competia por Cuba, defendia a todo custo a revolução socialista e era amigo de Fidel Castro, considerado por ele como “nosso maior inspirador”. Isso bastava. Afinal, não via nenhuma glória em se “vender” por dinheiro e abandonar suas convicções. Em tempos como os atuais, em que atletas de diferentes modalidades são extremamente fúteis, superficiais, despolitizados, hedonistas e egocêntricos (dando a impressão de que só se preocupam com sua imagem na mídia e com contratos milionários, patrocinadores de grandes marcas, fotos em capas de revistas de celebridades, carros importados, mansões, boates, churrascos folheados a ouro e festas), a atitude de Stevenson é um alento.
Ele poderia ter abandonado a ilha e se mudado para os Estados Unidos. Mas isso, Teófilo, em nenhum momento, cogitou. O próprio George Foreman chegou a dizer que Stevenson se tornaria, sem dúvida, o campeão do mundo, se decidisse se profissionalizar (o que significaria, na prática, deixar seu país). Sempre se recusou (para ele, o boxe “profissional” era desumano e parecia mais a um “show”, a um grande espetáculo, do que qualquer outra coisa). Não custa recordar que Bob Arum (um conhecido empresário e promoter norte-americano) ofereceu a ele US$1 milhão para que fosse aos EUA lutar (algumas matérias na imprensa informam que chegaram a propor até US$5 milhões com o mesmo intuito). Mas a resposta de Teófilo era sempre a mesma: “Eu não trocaria o povo cubano nem por todos os dólares do mundo” (Don King foi outro que também tentou convencer o cubano a competir no “Colosso do Norte”, igualmente sem sucesso). Seus princípios eram inflexíveis. Para ele, a fortuna que ia para os bolsos dos boxeadores deveria ser investida em crianças, educação e programas de saúde. Talvez, por tudo isso, em 1974, a revista Sports Illustrated tenha colocado em uma edição icônica a seguinte manchete: “He’d rather be red than rich”.
MUHAMMAD ALI E TEÓFILO STEVENSON
Nascido em 29 de março de 1952, em Puerto Padre, província de Las Tunas, Stevenson seria treinado pelo soviético Andrei Chervonenko e pelo cubano Alcides Sagarra, também conhecido como “El Maestro”. Atuaria nos ringues por vinte anos, entre 1966 e 1986. Combateu oficialmente 332 vezes, com 302 vitórias, 22 derrotas e 8 empates (há quem diga, contudo, que ele teria lutado mais de 500 vezes; já a Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e Caribe, por sua vez, indica em torno de 170 lutas ao todo). Um cartel impressionante. Na categoria peso-pesado ele ganhou medalhas de ouro nas Olimpíadas de Munique (1972), Montreal (1976) e Moscou (1980), nos Jogos Pan-americanos da Cidade do México (1975) e de San Juan (1979), assim como nos Jogos da América Central e do Caribe em Santo Domingo (1974). Foi campeão mundial amador em Havana (1974) e Belgrado (1978). Isso para não falar na categoria “superpesado”. Neste caso, foi campeão dos Jogos da América Central e do Caribe, em Havana, em 1982, dos Jogos da Amizade, na mesma cidade, em 1984, e do campeonato mundial amador em Reno (Nevada), em 1986. Esses, talvez, sejam seus feitos mais conhecidos. Mas ele também participou de diversos certames na “mayor de las Antillas” e em outros eventos internacionais (vários deles, em países socialistas). Seu maior rival foi provavelmente o boxeador soviético Igor Visotsky, que o derrotou em duas oportunidades. Na grande maioria das vezes, contudo, Stevenson saía vitorioso. Na Olimpíada de Munique, competiu o tempo inteiro com a mão direita quebrada (algumas fontes, entretanto, dizem que tinha apenas um dedão rompido). E venceu. No “USA-Cuba Duals” (na categoria acima de 91 kg), no Sparks Convention Center, em Reno (1984), ganhou do norte-americano Tyrell Biggs, que foi à lona no terceiro assalto (na ocasião, Biggs conseguiu se levantar, mas teve três costelas fraturadas; três anos mais tarde, em outra contenda clássica, este último seria muito castigado e nocauteado por Mike Tyson).
Alguns comentaristas nos Estados Unidos chegaram a chamar Stevenson de “o irmão gêmeo comunista de Muhammad Ali”. De fato, houve uma tentativa de realizar um duelo entre Stevenson e Ali (e também contra Leon Spinks), algo que nunca iria ocorrer. Há semelhanças, contudo, no estilo do cubano e de Ali (que, por sinal, o visitou em Havana e se tornou seu amigo e admirador). Ambos eram altos, delgados e elegantes ao se movimentar no quadrilátero, assim como extremamente eficientes e incisivos nos jabs, ganchos e diretos. E também transcenderam o esporte e usaram sua fama para promover e ampliar o debate político de sua época. Dois gigantes. Enquanto muitos atletas da atualidade agem como “mercenários”, o pugilista caribenho sempre permaneceu fiel aos ideais revolucionários. Um exemplo. Seu sucessor e discípulo, Félix Savón, também se tornaria uma lenda da nobre arte, levando adiante a tradição do boxe cubano.
Em relação a Teófilo, Fidel comentou: “nenhum outro boxeador amador brilhou tanto na história desse esporte. Ele poderia ter obtido dois títulos mundiais adicionais se não fosse pelos deveres dos princípios internacionalistas defendidos pela revolução. Nenhum dinheiro do mundo subornou Stevenson”. Assim foi esse ícone do esporte, um verdadeiro herói do povo cubano. O maior lutador de “Nossa América”. O maior.
MUHAMMAD ALI E TEÓFILO STEVENSON
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Luiz Bernardo Pericás é professor de História Contemporânea na USP. Formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México), foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016), lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano e o Prêmio Jabuti de melhor biografia. Pela Boitempo, também publicou Os cangaceiros – ensaio de interpretação histórica (2010), o romance Cansaço, a longa estação (2012), Che Guevara e o debate econômico em Cuba (2018), as coletâneas Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizada em conjunto com Lincoln Secco, e Independência do Brasil: a história que não terminou (2022), com Antonio Carlos Mazzeo, além da antologia Caminhos da revolução brasileira (2019). É coordenador da coleção Caio Prado Júnior.
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