Autocracia como gestão da democracia: o que virá do 8 de janeiro?

Diante de todo esse frenesi, ficamos nos perguntando por que os demais crimes hediondos e irreversíveis cometidos por Bolsonaro, como a destruição ambiental dos 5 biomas do nosso território, a degradação social geradora de uma nova grande fome, o genocídio sanitário que levou, no mínimo 700 mil pessoas e o extermínio de populações indígenas, de negros e pobres das periferias não conseguiram despertar tanto repúdio como o vilipêndio das insígnias de uma democracia capenga?

FOTO: RICARDO STUCKERT

Por Maria Orlanda Pinassi e Gisele Sifroni

“Por enquanto foi adiado o estouro da guerra. Políticos míopes, que conhecem apenas o recurso dos paliativos, estão tranquilizados e esperam dias de serena paz.”
Heine, Capitalismo, 1841.

Dos fatos ocorridos no último 8 de janeiro em Brasília, é cedo para fazer ilações contundentes. Não porque faltem evidências, mas porque elas são muito fartas. E o dito popular diz que “quando a esmola é demais, o santo desconfia”.1

Não precisa ser Maigret para especular de onde veio o comando já que atos de tal talhe, com o lema “intervenção militar já”, são insuflados desde o impeachment de Dilma quando um certo deputado, na “Casa do Povo” e sem censura, dedicou seu voto ao coronel Brilhante Ustra. A longa greve de caminhoneiros em 2018 foi um oportuno gatilho para a coisa crescer. Durante 4 anos de mandato, Bolsonaro ameaçou diuturnamente o Supremo Tribunal Federal incentivando presencialmente as manifestações nada amistosas, por exemplo, dos “300 pelo Brasil”, em 2020. Mais recentemente, bloqueios de rodovias por inconformados com o resultado das urnas aconteceram principalmente em regiões reconhecidas pelo agronegócio e mineração pujantes. Simultaneamente, acampamentos se formaram em frente a quarteis de todo o país dando fortes sinais de que ali se conspirava algo grave. A prisão e confissão – rápida e sem tortura – do empresário do setor de gás, George Washington, que portava bombas e a intenção de explodir o aeroporto de Brasília, mais do que uma demonstração de efetividade policial, foi um alerta para o potencial extremista do bolsonarismo. E, em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação de Lula, teve muita bagunça desses grupos no centro da capital federal.

Também não precisa ser genial para constatar que os atos de 8 de janeiro tiveram a anuência e a participação de facções militares. Que Bolsonaro, alçado por eles ao Planalto, não só focou na militarização das instituições brasileiras como empoderou seus parças da banda podre do poder de repressão do país, a mesma que brotou dos subterrâneos da ditadura e que vem se consolidando na democracia. O caldo consuma uma simbiose perfeita com milícias e negócios ilegais que encontram esterco fértil por aqui.  

Não é difícil ainda supor que essa ação possui caráter civil-militar-empresarial e que foi planejada e coordenada a partir de um consórcio de interesses e informações privilegiadas que reúne uma lúmpen burguesia nacional, poderes políticos regionais e bases militares em todo o país. Assistimos ao vivo e a cores a movimentação de uma bem articulada divisão de tarefas que dispôs os grupos de modo a que a arraia miúda, mais numerosa e com ares de família, fizesse a coreografia externa. A vandalização interna de mobiliário, símbolos nacionais e obras de arte foi entregue aos mais bombados e, mesmo aí, só alguns conheciam o caminho dos documentos, das armas e equipamentos a subtrair.

O episódio demonstrou que a Inteligência Nacional em transição foi pouco esperta e muito lenta. E, se não foi isso, pode-se pensar inclusive que todos, do velho e do novo governo, designados à tarefa de salvaguardar o núcleo duro da democracia liberal brasileira – por sinal, em flagrante degenerescência política – ficaram na moita espiando a bandalheira. Neste ponto da nossa mirada dos fatos, fica a pergunta: a quem interessou aquilo tudo? Que consequências podemos observar do ocorrido?

Pois, então, na medida em que se constatava a invasão da Esplanada foi imediata a comparação com o Capitólio de 6 de janeiro de 2021. Trump, Bolsonaro, Bannon, Olavo de Carvalho (in memorian), negacionismos, belicismo, culto ao ódio e ao Novo Testamento, extremismos retóricos e factuais, esgoto da América desde o Norte até o Sul, seguindo um roteiro semelhante, apesar das circunstâncias distintas.

Uma tentativa de golpe de Estado numa Brasília preguiçosa, vazia e vulnerável ao vandalismo de 5000 pessoas mal intencionadas, devidamente escoltadas ao seu destino e que certamente receberam o soldo merecido pelos serviços prestados. Não houve mortos, nem feridos ou reféns, o ataque ao patrimônio nacional decorreu na mais absoluta paz. Esse número não chega a formar multidão e nem mesmo se sabe se todos ali estavam motivados por convicções extremistas. O que se sabe é que quiseram demonstrar força e assim fizeram porque encontraram o caminho livre para isso. Não convenceu como ato heroico, popular, enraivecido, espontâneo. Foi um plano meticulosamente arranjado do qual Bolsonaro sai chamuscado, sobretudo pela ação da mídia que, assim como deifica, demoniza. Mas, é bom lembrar que, pela sua representação na expressiva economia neoliberal mafiosa do país, ele ainda é uma referência político-ideológica importante. Não é cachorro morto.

Por outro lado, Lula III, apesar da instabilidade de uma transição atípica e da legitimidade questionada pelos negacionistas tendo em vista a pequena margem de votos que lhe garantiu a vitória, sai fortalecido de uma série de eventos que poderiam ter abalado de modo irremediável a sua credibilidade. Já na posse, fez do limão uma limonada ao pegar carona na impostura do ex-chefe da nação substituindo-o pelo simbolismo das identidades na passagem da faixa presidencial. E, na Era da Internet das Coisas, pautada na acumulação de riquezas da Indústria 4.0, os simbolismos ganham dimensão de verdade incontestável. Dessa maneira, os dois domingos tergiversaram a realidade e mergulharam no universo dos bens simbólicos, no primeiro, transitando pela ressurreição dos pobres e oprimidos, no segundo, profanando objetos de valor republicano em cenas apocalípticas.

A rejeição ao quebra-quebra de domingo acabou por ampliar enormemente a base de apoio ao novo governo em todas as esferas da vida nacional. Na defesa do carcomido Estado Democrático de Direito, os 27 governadores recém empossados da nação apostaram na unificação e centralização do poder em torno de Lula, que ainda recebeu reforço de um alinhado peso pesado de primeira linha, o Poder Judiciário, incumbido de punir os golpistas e enfraquecer a oposição de extrema-direita, a única com base social capaz de algum enfrentamento, pelo menos neste momento. Isso significa que também poderá coibir possíveis movimentações de uma esquerda gestada não em enfadonhos apelos por políticas públicas ou representatividade política, mas contra os nada simbólicos ataques que o atual governo Lula-Alckmin certamente irá desferir contra as classes trabalhadoras. Dessa maneira, o 8 de janeiro produziu dois grandes vencedores: as frações mais importantes do capital transnacionalizado no Brasil e os poderes político e institucional que as encarnam, nesse caso o Poder Executivo e o Judiciário.

O golpe frustrado do bolsonarismo em Brasília arrasta consigo o setor mais bronco, violento e com cheiro de estrume do agronegócio brasileiro. Pois, até agora o que se sabe por fontes oficiais é que parte significativa do financiamento do transporte, bem como dos acampamentos de extremistas veio do Sul, do Centro-Oeste, do interior de São Paulo e da Amazônia. Quiçá, também por essa razão, a CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e a Aprosoja (Associação dos Produtores de Soja) mantenham silêncio sobre o fato, exibindo, essa última entidade, em sua página eletrônica o Manifesto dos Produtores de Soja onde exige segurança jurídica do novo governo e indenização às famílias ruralistas ligadas ao setor em caso de novas demarcações de terras indígenas. A ver.

Do outro lado, frações “humanitárias, democráticas e socialmente responsáveis do capital de bem” de pronto condenaram os ataques na Praça dos Três Poderes. Esse foi o caso da FEBRABAN (Federação Brasileira dos Bancos), maior representante do capital financeiro do país, da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio), entidade que representa majoritariamente o setor do agronegócio que exporta para o mercado europeu, da CNI (Confederação Nacional das Indústrias), cujo principal interesse é o mercado de carbono anunciado pelo governo de Lula-Alckmin, e principalmente do IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração), instituição que representa as mineradoras estrangeiras que têm interesse na exploração do subsolo amazônico.

O compromisso dessas frações burguesas com a “democracia” vai dos gestos filantrópicos, como os do IBRAM que se dispôs a contribuir com a reconstituição do patrimônio danificado pela invasão bolsonarista, ao recado real dado às instituições do Estado: é preciso restituir a ordem, instaurar uma nova pax lulista e garanti-la, custe o que custar, como condição para acumulação de capital.

Não por acaso, três dias após a espalhafatosa profanação dos poderes republicanos, o Poder Judiciário não hesitou em determinar a proibição, por tempo indeterminado, de qualquer manifestação em via pública, sob pena de 20 mil reais de multa em caso de descumprimento. Isso é um regalo e tanto ao Governo Lula-Alckmin que terá que pavimentar os caminhos para uma acumulação que não tardará em demolir os simbolismos e frustrar as intencionalidades das identidades abrigados em Ministérios decorativos, tais como o Ministério dos Povos Originários e da Igualdade Racial. Ou seja, o mesmo governo que esbanja símbolos, pavimentará os caminhos do vilipêndio permanente de territórios tradicionais, como indígenas e quilombolas, para garantir o novo motor da economia brasileira: a exportação de minérios para as cadeias produtivas da Indústria 4.0.  

Eis a razão pela qual o mimo que o Poder Judiciário entrega agora para o Poder Executivo é nada menos que um salvo conduto para aplicar medidas autoritárias a fim de garantir a frustrante democracia brasileira e, sobretudo, o tipo de relação social de produção que ela protege.

Com isso, vamos concluindo. Se o Capitólio foi a memória imediata para Brasília desse início esquizofrênico de 2023, o Reichstag de Berlim (1933) e as Torres Gêmeas de Nova Iorque (2001) remetem aos ardis que a história prepara para legitimar ações de governanças não absolutamente seguras no poder. Hitler na Alemanha e Bush nos Estados Unidos se beneficiaram bastante daqueles episódios aparentemente fortuitos. Desafortunadamente, Lula pode estar entrando nessa galeria já que, o passo em falso do inimigo de extrema-direita poderá agora servir de álibi contra os pés descalços que ousarem marchar contra o desemprego e os subempregos nas cidades, contra a espoliação territorial no campo, contra a superexploração do trabalho em forma de retirada de direitos relativamente protegidos pela legislação, contra a contrarreforma administrativa que reduzirá ainda mais o tímido princípio republicano existente no Estado brasileiro etc.

No entanto, isso não é exatamente uma novidade já que foi nos estertores do segundo governo Dilma que se promulgou a Lei Antiterrorismo não contra a extrema-direita, mas contra as manifestações de junho de 2013, quando uma juventude liberta das amarras da burocracia sindical e partidária defendia pautas populares – como a catraca livre – e questionava, entre outras coisas, “Onde Está o Amarildo?”, operário negro da construção civil, assassinado pelas forças milicianas do estado do Rio de Janeiro, a mesma que se instalou em Brasília em 2018.  

A novidade e, portanto, a diferença entre o que foi a repressão de 2013 e o endurecimento do regime político que se avizinha em 2023, é que nesse último caso a democracia, conceito que precisa ser adjetivado em perspectiva de classe, ganha na boca dos ventríloquos da imprensa liberal, mas também entre os sábios da esquerda, um ar sacrossanto, universal e etéreo. Beatificada, a democracia lança mão de formas cada vez mais autoritárias não só de comando político, mas de espoliação social.

Diante de todo esse frenesi, ficamos nos perguntando por que os demais crimes hediondos e irreversíveis cometidos por Bolsonaro, como a destruição ambiental dos 5 biomas do nosso território, a degradação social geradora de uma nova grande fome, o genocídio sanitário que levou, no mínimo 700 mil pessoas e o extermínio de populações indígenas, de negros e pobres das periferias não conseguiram despertar tanto repúdio como o vilipêndio das insígnias de uma democracia capenga? Enfim, supomos que agora entramos no plano do vale tudo para defendê-la, inclusive aproximá-la de um Estado Autocrático conduzido pela simbologia do ex-operário, sob o comando oculto de uma burguesia transnacionalizada interessada em assegurar da melhor forma possível liberdade plena para seguir explorando nossos recursos humanos e ambientais, sem os incômodos de um presidente tóxico.


Nota
1 Que interesse teriam os envolvidos de plantar provas de imagens, digitais, mensagens de WhatsApp contra si próprios?


No último número da Margem Esquerda, a revista da Boitempo, Maria Orlanda Pinassi e Isabella di Guastalla fazem um raio-x dos vasos comunicantes entre o mercado financeiro global e o extrativismo sanguinário que tirou as vidas do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips. 

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Maria Orlanda Pinassi é professora aposentada de sociologia da Unesp. Autora, entre outros, de Da miséria ideológica à crise do capital (Boitempo, 2009), atualmente pesquisa neoliberalismo no Brasil, mineração, Amazônia e lutas sociais.

Gisele Sifroni é professora na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mestre e doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Também pesquisa neoliberalismo no Brasil, mineração, Amazônia e lutas sociais.

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