Douglas Barros: identitarismo e marketing
Mário Maestri responde artigo de Douglas Rodrigues Barros: "Em tentativa de síntese haikai, diria apenas que Barros propõe que o marxismo, o trabalho e as classes abandonaram a cena ao surgir o primeiro Iphone."
Por Mário Maestri
Inês é morta e a seriedade escorreu pelo ralo. Escrevi comentário sobre o livro A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970), de 2019, de Wanderson Chaves (WANDERSON, 2019). Um trabalho imprescindível à compreensão de questões candentes da luta social no Brasil contemporâneo, que passou literalmente batido. Na resenha, ressaltei a importância daquela investigação e avancei por que acredito que os dados que apresenta corroborem leituras minhas sobre o “racialismo-identitarismo”, apresentadas nas quatro últimas décadas. A resenha tocou nervo exposto de identitários nacionais, motivando em um piscar de olhos comentários ácidos. O que é parte do ofício.
É simples a impugnação de Douglas Rodrigues Barros, em “O identitarismo marxista de Mario Maestri”, publicada no prestigioso Blog da Boitempo, em 4 de janeiro, sem citar e referenciar o meu trabalho, como manda não apenas a praxe. Ainda mais em um texto de doutor em Ética (BARROS, 2023). Após rápido ensaio de caricaturização de minha leitura, parte para longuíssima apresentação do que dirá em livro em preparação, que não se esquece de referenciar nas notas. Nesse caso, “noblesse oblige”! Em vez de motivar réplica, ensejei operação de marketing! E Barros cala sobre A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970), de Wanderson Chaves. Silêncio de tão absoluto que ensurdece. Tempos estranhos, os atuais.
Prometo uma tréplica breve, pois, ao contrário do padre Vieira, não me falta tempo para ser breve. Barros me acusa de análise superestrutural descolada dos fenômenos imanentes: “Maestri […] recai” no “mais banal politicismo ao fazer uma análise da superestrutura sem dar qualquer relevância à base”. Eu veria o identitarismo, que domina no Brasil o movimento negro de classe média, como produto de fantasmagórico imperialismo, em rasteira visão conspirativa da história.
Para Barros, o identitarismo surge fundamentalmente de, resumindo, dois grandes fenômenos. O primeiro, a tentativa do capital de promover uma “absorção equânime da diferença racial” e de “gênero no capitalismo”. O que o teria levado a propor políticas visando a “inclusão” dessas contradições no seio da ordem vigente, superando assim hiatos, diria, incômodos. Registro apenas a visão de Barros sobre a boa vontade de uma ordem capitalista liberal e civilizada, que procura autorregular suas contradições essenciais. Mas, sobretudo, Barros explica o surgimento do identitarismo negro a partir de fenômenos extra-sociais, tecnológico-comunicacionais revolucionários, pós-modernos: “[…] o identitarismo é fruto […] de diversos fatores que transformaram radicalmente a sociedade global contemporânea”. Não é, portanto, “uma questão de falsa consciência”. Ou seja, de alienação da realidade e das necessidades sociais.
Meu crítico também se enfada fortemente por eu propor que as vagas de intelectuais conservadores que choveram sobre nós nas últimas décadas sejam ninhadas paridas pelo avanço mundial do tsunami liberal. Nega e não acredita que sobretudo os mais performativos críticos do marxismo, do socialismo, da revolução, da luta de classes receberam e recebem o apoio diuturno de instituições do grande capital, sobretudo mas não apenas ianques, é claro.
Há quatro décadas
Já nos 1980, eu afirmava, e essa visão não era só minha, que intelectuais conservadores de destaque recebiam – e recebem – fortes impulsos do grande capital (MAESTRI, 2021). Para além de escassas provas materiais, essa proposta devia-se à convergência daquelas leituras conservadoras na desconstrução da centralidade do mundo do trabalho, imprescindível à superação de ordem capitalista em estágio senil (MANDEL, 1976). Porém, é Wanderson Chaves, no trabalho citado, quem dá informação documentada e detalhada sobre esse processo, com destaque para a questão negra, após dez anos de investigação.
Barros silencia sobre tal fato, emudece totalmente sobre o livro paradigmático. Prefere matar o mensageiro. E, sobretudo, desqualifica qualquer ação efetiva do imperialismo, com destaque para a produção de profetas e a definição das políticas identitárias brasileiras, importadas dos EUA, sem tradução mais acabada ao português. Perfila-se, assim, ao lado daqueles que colaboram, conscientes ou não, na maior obra do Demônio, que é a de fazer acreditar que ele não existe.
Em A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970), Wanderson Chaves registrou o impulso dado pelos financiadores do grande capital estadunidense à produção de “críticas sofisticadas” e pseudo-complexas do marxismo. Essas sementes, lançadas em solo bem adubado, produziram farta ceara de trabalhos ainda menos objetivos, não poucos produzidos por papagaios repetindo mecanicamente vozes que já não sabem de onde chegam. Barros, integrando essas fileiras, defende, sem explicar e ruborizar: “[…] a reestruturação produtiva” “coloca em xeque as categorias marxistas usadas até a exaustão durante o regime fordista”. E, propõe, a seguir, que não é mais o trabalho social o produtor do valor no capitalismo. Coisa de um passado já distante.
Maravilhoso mundo novo
No trote-galope da desconstrução de minha proposta visão idealista e conspirativa da história, Barros empreende tortuosa colagem sociológica de autores pós-modernos não citados, para defender a obsolescência do marxismo, do mundo do trabalho, da luta de classes, do socialismo – categoria ausente no texto. Para ele, os marxistas são seres semi-lunáticos e o marxismo, transformado em identitário, sem “conseguir dar mais respostas efetivas à realidade concreta”, se transforma em “seitas”, e por aí vai. E se o marxismo não é identitário, “também seus adeptos não raramente caem nas armadilhas da identidade”. Portanto, após o marxismo, só nos resta esperar o barrismo!
Barros me acusa de tudo simplificar ao propor serem os intelectuais conservadores robôs ao serviço das classes dominantes. Constrange-me lembrar que, ao abordar os fatos descritos por Wanderson Chaves para os anos 1950-1970, não expandi minhas considerações, por falta de espaço e tempo! (MAESTRI, 1999). E, sobretudo, que a formatação dos sentidos nas ciências sociais conhece múltiplas mediações, sob a forte e permanente determinação da realidade e da luta social. De corpo presente, assisti vagas de intelectuais, sindicalistas, políticos, e por aí vai, abandonarem aceleradamente a trincheira do mundo do trabalho quando da hecatombe de fins dos anos 1980, sinalizada pela dissolução da URSS, à procura de um lugar refrescante à sombra do sol. Aquela geração adesista, ao pendurar as chuteiras, tem cedido o lugar a descendentes já educados na tradição patológica pós-“Queda do Muro”.
Para Barros, o intelectual é um ser que progride através do confronto das ideias, sustentando-se pelos próprios cabelos, ao igual que o célebre barão, através do movimento da “contradição”, “recepção” e “debate” das narrativas. Ele resgata o que inicia negando, a proposta furada da autonomia dos intelectuais aos fluxos e refluxos da luta social, sem compromissos com deus ou com o diabo, com apenas a razão por norte. São produtos dos embates intelectuais dados e resolvidos no mundo das ideias. O imperialismo, portanto, nada teve a ver na produção e sucesso das políticas identitárias e no deslocamento do foco da luta social da “classe” para a “raça”, da solidariedade para o autismo racial. Sucesso garantido, sustentado e aprofundado pelo refluxo brasileiro e internacional do mundo do trabalho.
Era das sombras
Barros anuncia que fenômenos tecnológicos-comunicacionais, próprios à globalização-mundialização, teriam criado um mundo todo novo, à margem da luta de classes e da centralidade do trabalho, na produção capitalista e na sua necessária superação. Superação que, para Barros, já não se constitui como problema na nova era que anuncia. Na sua proposta de autonomia dos tempos atuais da luta de classes e social, como determinação tendencial do devir histórico, em clara cegueira seletiva, Barros salta minha proposta das razões histórico-sociais do avanço atual dos múltiplos identitarismos.
Em minha resenha, lembrei que, nos anos 1970, sob o avanço do mundo do trabalho, o identitarismo negro, desembarcado dos EUA, teve pouca repercussão, dominando no MNU posições de esquerda, influenciadas pelos Panteras Negras. E afirmo pois, como o nosso poeta do romance célebre, posso dizer: “Meninos, eu vi!”. Propus que aquelas e outras propostas conservadoras se fortaleceram nos “anos que antecederam a vitória da maré contrarrevolucionária liberal, em 1989-91, e sobretudo após isso”, quando do refluxo geral do “mundo do trabalho, [de] suas organizações, partidos, militantes, intelectuais […]”. Refluxo que vivemos até hoje.
Como os identitários brasileiros, Barros vive em mundo construído a partir das necessidades ideológicas. Afirma-se e basta. Para ele, o “problema central” do capitalismo é a “racialização, herança dos processos coloniais”, que se deve à “incapacidade do desenvolvimento do capital em superar a herança colonial encravada no seu embrião”. Reafirma, assim, o axioma do “racismo estrutural” também made in USA. Apenas lembro, sem me deter, que a “herança [patológica] do Brasil colonial” é mais material, de classe, do que “racial” ou cultural (MAESTRI, 2022; GORENDER, 2010; MOURA, 1959).
O racismo não é estrutural
No artigo “O racismo não é estrutural”, amplamente divulgado, apresentei por que o “racismo” não é elemento “estrutural” do processo de acumulação capitalista (MAESTRI, 2021). Em vastas regiões do mundo e do Brasil, o racismo não alavanca a super-exploração do trabalho, devido a populações eticamente homogêneas. A super-exploração do trabalho feminino funciona possivelmente em forma mais ampla do que a da raça, sem também ser elemento necessário, e, portanto, estrutural, ao processo de acumulação e reprodução do trabalho.
Quase concluindo. Minha referência ao trabalho de Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, deveu-se à minha surpresa da importância que teve no debate organizado pelo imperialismo nos EUA para a definição das políticas identitárias, como documentado por Wanderson Chaves em A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970). Ele teria sido o mais antigo e importante fundador do identitarismo negro brasileiro. Profissionalmente, centrei minhas investigações na história da escravidão colonial brasileira e da África Negra Pré-Colonial, e não nas relações raciais. Minha atenção centrou-se nos trabalhos de Florestan sobre as populações nativas, empreendidos também em um viés estruturalista e weberiano, quando eu preparei livro sobre a escravização e genocídio tupinambá no litoral brasílico (FERNANDES, 1978; MAESTRI, 2013).
Não tem sentido a aproximação de Barros de Florestan Fernandes, intelectual de destaque, e Abdias do Nascimento, ex-integralista, pseudo-refugiado político nos EUA, que desembarcou no Brasil, ainda sob a Ditadura, disparando sobre o marxismo e a militância de esquerda, que tentava se reorganizar, após longos anos de repressão. Abdias produziu apenas trabalhos ideológicos à margem da literatura científica. Quanto à afirmação de que Abdias seria fundador do MNU, em 1978, é outra tentativa de “invenção de tradição” e de biografia em leitura despreocupada com a história.
Barros conclui com longuíssima resenha de livro seu no prelo. Navegar, não é preciso! Vender-se, é preciso! Descreve o mundo no qual os homens não fazem a história, determinados por processos tecnológicos-comunicacionais que transformam a produção, o trabalhador, o capital e tudo mais em elementos fictícios. Não é fácil acompanhar sua tentativa de ensacar o “identitarismo negro” nas narrativas que, há décadas, profetizam o fim da história e o reino eterno de um capitalismo autorregulado ou desregulado, que já não se anuncia magnífico! A crítica de tudo isso já foi feita. Em tentativa de síntese haikai, diria apenas que Barros propõe que o marxismo, o trabalho e as classes abandonaram a cena ao surgir o primeiro Iphone.
Referências bibliográficas
BARROS, Douglas Rodrigues. “O identitarismo marxista de Mario Maestri”. Blog da Boitempo, 4 jan. de 2023.
CHAVES, Wanderson. A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970). Curitiba: Apris, 2019.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3 ed.2 v. São Paulo: Ática, 1978.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2010.
MAESTRI, Mário. “O Imperialismo, a Fundação Ford e o Movimento Negro no Brasil”. Contrapoder, 27 dez. 2022; A Terra é redonda, 04 jan. de 2023.
MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, filhos do cão: o trabalhador escravizado na historiografia brasileira: ensaio de interpretação marxista. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.
MAESTRI, Mário. Abdias do Nascimento: Quilombola ou Capitão-do-Mato? Ensaios de interpretação marxista sobre a política racialista para o Brasil. 2 ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2021.
MAESTRI, Mário. “O racismo não é estrutural”. A Terra é Redonda, 07 abril de 2021; Contrapoder, 3 maio de 2021.
MAESTRI, Mário. Os Senhores do Litoral: conquista portuguesa e agonia tupinamba no litoral brasílico. Século 16. 3 ed. Porto Alegre: UFRGS, 2013.
MAESTRI, Mário. Paulo Coelho, Paul Vayne, François Furet, Stéphane Courtois: le même combat! Irracionalismo, literatura e historiografia na ‘pós-modernidade’. Revista de Filosofia e Ciências Humanas, UPF – Passo Fundo/RS, v. 2, n.1, p. 85-114, 1999.
MANDEL, Ernest. Le troisiéme âge du capitalisme. Tomo I, II, II. France: 10/18, 1976.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Zumbi, 1959.
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Mário Maestri, 74, é historiador. Militou, quando estudante, na oposição à ditadura militar, foi preso, exilou-se, participou da tentativa de oposição militar no golpe de Estado chileno. Retornou à militância no Brasil em 1977. Atualmente, é comunista sem partido. maestri1789@gmail.com
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