China: múltiplas crises em vez de hegemonia

Tomasz Konicz comenta por que a República Popular capitalista-estatal não herdará o poder hegemônico dos EUA.

Por Tomasz Konicz

A “Nova Rota da Seda”, lançada em 2013, um ambicioso programa de investimentos de Pequim em países em desenvolvimento e emergentes, deveria na verdade anunciar uma era de hegemonia chinesa e fazer do século XXI um século chinês – depois de o século XX ter entrado para a história como o da hegemonia dos EUA. Pequim orçou mais de US$ 1 trilhão para esse programa de desenvolvimento estratégico, que lembra o Plano Marshall dos EUA na Europa devastada pela guerra. Assim como Washington usou o dinheiro do Plano Marshall depois de 1945 para reconstruir a Europa e se tornar a potência líder indiscutível do Ocidente na segunda metade do século XX, também os vultosos empréstimos chineses a muitos países da periferia foram motivados por esse tipo de cálculo estratégico.

De acordo com este cálculo, o impulso de desenvolvimento de infraestrutura que a construção de usinas, ferrovias ou estradas nos “países em desenvolvimento” desencadearia está associado à estreita conexão estratégica desses países com a China. Pequim compraria assim o domínio geopolítico através do desenvolvimento econômico financiado por crédito em muitas regiões da Ásia, África e até mesmo da América Latina. A China, que há muito se tornou a principal potência comercial na maioria das regiões do Sul Global, se tornaria, assim, o credor e parceiro estratégico mais importante, em condições de construir seu próprio sistema de alianças centrado na República Popular – tal como no “Ocidente” sob a liderança dos EUA.

Um programa gigantesco de investimentos e sua espiral de endividamento

Até o final de 2021, segundo o Financial Times, a China investira o equivalente a US$838 bilhões nesse ambicioso programa de desenvolvimento, que a tornou “o maior credor bilateral do mundo”. Essa posição de destaque aplica-se especialmente à periferia do sistema mundial, já que Pequim fez mais empréstimos aos 74 países qualificados pelo Banco Mundial como países de baixa renda do que todos os demais “credores bilaterais” juntos. A Iniciativa “Belt and Road”, como é conhecida em inglês a estratégia de investimento da “Nova Rota da Seda”, não é apenas o maior empreendimento de política externa da República Popular desde sua fundação em 1949, mas também o “maior programa de infraestrutura transnacional” já realizado por um único país. Mesmo o Plano Marshall, que hoje custaria cerca de 100 bilhões de dólares, desvanece considerando as dimensões da “Nova Rota da Seda”.

E é precisamente esse gigantesco programa de investimentos que deu à China sua primeira grande crise de dívida internacional. Cada vez mais Estados devedores da “Nova Rota da Seda” são obrigados a pedir à China um adiamento ou renegociação dos empréstimos. Segundo cálculos de think tanks americanos, cerca de 118 bilhões de dólares nesses empréstimos chineses estão em risco de inadimplência, o que corresponde a cerca de 16% do total dos investimentos. Os afetados são países da África, do Sul da Ásia e da América Latina, complementa o Financial Times (FT), economicamente prejudicados pelo recente surto de crise iniciado pela pandemia. Pequim teve que renegociar os termos de empréstimos estrangeiros no valor de US$52 bilhões em 2020 e 2021, em comparação com apenas US$16 bilhões de dívidas em 2018 e 2019, antes da pandemia eclodir.

As negociações entre Pequim e os mutuários do Sul global giram em torno de amortizações parciais do valor do empréstimo, atrasos de pagamento ou reduções das taxas de juros. Pequim tem, além disso, que emitir empréstimos de emergência cada vez mais frequentes para poder manter a solvência de seus devedores na periferia do sistema mundial. De acordo com o FT, a China se vê, assim, progressivamente no “papel que geralmente é assumido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)” em muitos investimentos de grande escala financiados por crédito no contexto da “Nova Rota da Seda”. Ironicamente, o FMI, cujos empréstimos durante as crises estão ligados há décadas a medidas de austeridade draconianas, pediu à China e a outros credores em meados de julho que façam concessões aos países devedores em dificuldades, já que grande parte do Sul Global corre o risco de colapsar diante de uma dramática crise da dívida. De acordo com o FMI, “um terço das economias emergentes e dois terços dos países em desenvolvimento estão com problemas por causa dos altos níveis de endividamento”.

Desde essa altura, Pequim surgiu como um “concorrente sério do FMI”, depois que a República Popular teve de fornecer “empréstimos de emergência” e pacotes de resgate no valor de dezenas de bilhões de dólares a Estados superendividados para evitar inadimplências ou crises de dívida, diz o FT, citando estudos de instituições de pesquisa dos EUA. De acordo com o FT, somente os três maiores devedores de Pequim – Paquistão, Sri Lanka e Argentina – receberam pacotes de resgate no valor de 32,8 bilhões de dólares desde 2017. A lista de países que tiveram que ser estabilizados por Pequim através de empréstimos de crise inclui Quênia, Venezuela, Angola, Nigéria, Laos, Belarus, Egito, Turquia e Ucrânia. Na sua maioria, esses empréstimos de emergência impediram a insolvência de projetos de infraestrutura financiados pela Nova Rota da Seda.

Foi dessa forma que Pequim conseguiu evitar que grandes projetos fracassados levassem a crises de pagamento ou falências estatais. E a China é um credor mais popular do que o FMI porque, segundo o FT, ela concede aos seus Estados devedores “cada vez mais empréstimos de emergência”, sem exigir que os devedores “restaurem a disciplina da política econômica” ou executem aqueles notórios “processos de reestruturação” com os quais o Fundo Monetário devastou economicamente grande parte da periferia do sistema mundial desde a crise da dívida nos anos 1980. Suspeita-se que os Estados com dificuldades de pagamento prefiram empréstimos chineses a fim de “evitar o FMI”, que lhes exigiria “reformas dolorosas”, disse um analista ocidental ao FT. Isso, no entanto, só atrasaria o inevitável “ajuste”, tornando-o “ainda mais doloroso”. Seja como for, muitos dos empréstimos da Rota da Seda da China seguiriam uma lógica geopolítica de criar relações de dependência com os países devedores para reduzir “as opções estratégicas dos EUA e do Ocidente”.

As dimensões geopolíticas dos investimentos

O componente geopolítico da estratégia de investimento chinesa é particularmente evidente no alto nível de empréstimos na região pós-soviética, onde Pequim investiu cerca de 20% de seus fundos destinados à “Nova Rota da Seda”. Com US$ 125 bilhões, a maior parte dos empréstimos chineses foi para a Rússia, seguida por Belarus, por US$8 bilhões, e pela Ucrânia, por US$7 bilhões. Esses investimentos gigantescos de Pequim estão agora ameaçados pela guerra na Ucrânia, que no momento a Rússia parece estar perdendo – e que pode levar ao colapso da esfera de influência russa. A estratégia de investimento da China nesta região depende literalmente do resultado da guerra. De qualquer maneira, Pequim pode esperar recuperar parte de seus empréstimos com o pagamento em produtos naturais. De acordo com os acordos, a Rússia pode liquidar em petróleo ou gás os pagamentos pendentes, o que significa uma improvável inadimplência total da Rússia.

Outro foco dos investimentos chineses é a África Subsaariana, onde, segundo estimativas ocidentais, foram concedidos empréstimos no volume de cerca de 78 bilhões de dólares. Isso representa apenas uma pequena parcela de cerca de 12% da dívida externa dessa região do mundo em grande parte isolada economicamente, onde os credores privados ocidentais ainda detêm uma posição dominante, com 35% da dívida total; mesmo assim, a China conseguiu recuperar terreno aqui nos últimos anos. Somente entre 2007 e 2020, Pequim emprestou US$23 bilhões em parcerias público-privadas na região subsaariana, enquanto os EUA, Japão, Alemanha, Holanda e França investiram juntos apenas US$9,1 bilhões. A China é procurada como financiadora na região porque as suas condições de empréstimo são muito mais favoráveis do que as condições impostas pelas instituições ocidentais. Diz-se que as taxas de juros dos empréstimos ocidentais são duas vezes mais altas do que os empréstimos concedidos pela República Popular.

E não são apenas projetos de prestígio, sem sentido em termos de desenvolvimento e alimentados pela corrupção, como foi o caso no Sri Lanka, que estão sendo realizados na África. Por meio de capital chinês, por exemplo, foi financiada uma linha ferroviária na Etiópia, que reduziu o tempo de viagem entre a capital e o vizinho Djibuti de três dias para 12 horas. No Quênia, uma nova linha foi construída entre Mombaça e Nairóbi; uma nova ligação ferroviária entre Tanzânia e Zâmbia também reduz drasticamente o tempo de viagem; foram construídas barragens em Uganda; estradas e projetos de infraestrutura para abastecimento de água e eletrificação avançaram na África e na Ásia Central. A estratégia chinesa de acumular influência geopolítica por meio do desenvolvimento econômico parecia estar funcionando na África até o mais recente impulso de crise.

A ilusão do desenvolvimento recuperador

Mesmo os projetos que fazem sentido em termos de política de desenvolvimento, porém, estão cada vez mais atingindo seus limites econômicos devido à tendência crescente de crise global: a linha ferroviária entre Nairóbi e Mombaça, construída pela empresa estatal Chinese Road and Bridge Corporation há quatro anos, deve perder cerca de 200 milhões de dólares em três anos. Sabe-se que a China acumulou os empréstimos com mais chances de inadimplência na África subsaariana. Mais de cem contratos de empréstimo foram renegociados nessa região, em comparação com 21 na Ásia e apenas 12 na América Latina. Um excelente exemplo de como esse desenvolvimento e a estratégia hegemônica chinesa se despedaçaram na realidade da crise do capitalismo tardio é a Zâmbia, no sul da África, que faliu no ano da pandemia, em 2020, com passivos externos de US$17 bilhões. A China já havia construído lá uma linha ferroviária para a Tanzânia, uma usina hidrelétrica, dois aeroportos, dois estádios esportivos e um hospital em projetos de investimento estimados em seis bilhões de dólares.

Fora da África e do espaço pós-soviético, não é o Sri Lanka, mas o Paquistão que recebeu um influxo particularmente rápido de investimento chinês nos últimos anos. No Sri Lanka, os empréstimos chineses somam cinco bilhões de dólares, o que representa apenas 10% do passivo total do Estado economicamente colapsado, onde a corrupção e a má administração culminaram em projetos absurdos de investimento, contribuindo para o agravamento catastrófico do atual impulso de crise. O Paquistão, que como oponente da rival geopolítica da China, a Índia, sempre teve grande importância estratégica para Pequim, recebeu 62 bilhões de dólares dos cofres da Road and Bridge.

As atividades de investimento de Pequim variaram de projetos de infraestrutura, com os fundos fluindo para a produção e transporte de energia, até a expansão importante em termos estratégicos do porto de Gwadar, e a construção de instalações de produção no Paquistão para aproveitar os custos muito baixos da mão de obra naquele país. Essa criação de “trabalho terceirizado” no Paquistão, para as quais foram transferidas atividades de produção intensiva, algumas vezes ocorreu não apenas nos centros econômicos do Paquistão, mas também na periferia instável atormentada pelo islamismo e por “lutas tribais”, como a província de Chaibar Pachtunchwa.

As esperanças de modernização capitalista terminaram o mais tardar em 2020, já que parte dos projetos de investimento chineses foram suspensos depois do surto da pandemia e da crise econômica subsequente, que rapidamente tornou insustentável o peso da dívida do Paquistão. Os trabalhos no projeto do porto de Gwadar, por exemplo, teriam sido em grande parte interrompidos. Para evitar a falência estatal na sequência da espiral econômica descendente, na qual a inflação, os custos crescentes dos empréstimos e o colapso das receitas do governo causaram uma diminuição rápida das reservas cambiais, Islamabad teve de recorrer a empréstimos de emergência do FMI e da China – em julho 2022, as divisas do Paquistão foram suficientes para cobrir por apenas dois meses os custos de importação no país. Os bancos chineses concederam “uma série” de empréstimos, mais recentemente de US$2,3 bilhões em meados de 2022, para reforçar o cada vez menor “estoque de moeda forte”. O FMI, por outro lado, está agora comprometido com empréstimos de urgência de mais de 7 bilhões de dólares para Islamabad.

No início de agosto, o país empobrecido, atormentado pelo islamismo e pelo processo de erosão do Estado, parecia pelo menos ter evitado uma falência nacional aguda após um novo acordo de empréstimo com o FMI, que foi acompanhado pelos cortes habituais, como cortes nos subsídios para energia e aumento de impostos. Em seguida, no entanto, veio a inundação historicamente sem precedentes, característica dos extremos climáticos que estão aumentando com a crise climática. Cerca de um terço da superfície do Paquistão foi inundada, e mais de 33 milhões de pessoas foram afetadas pelas enchentes. O país está agora ameaçado por uma crise alimentar e pelo avanço do extremismo, com a economia à beira do colapso. Em estimativas iniciais, os ministros do governo paquistanês avaliam os danos das enchentes em cerca de dez bilhões de dólares.

Essa interação cada vez maior entre a crise de endividamento e a crise climática, entre os limites internos e externos da capacidade de desenvolvimento do capitalismo, que devastou áreas inteiras do Paquistão, foi em grande parte ignorada pelo Ocidente. Este é o ambiente de crise global de um sistema mundial capitalista tardio que se desfaz em suas contradições, no qual a China iniciou a grande tentativa de construir seu próprio sistema de alianças por meio de um ambicioso programa de investimentos para ascender à nova hegemonia. As montanhas cada vez mais altas da dívida global e a escalada da crise climática estão frustrando os cálculos imperiais de Pequim, que na verdade imitavam a ascensão dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.

A ascensão hegemônica de Washington após o fim da Segunda Guerra Mundial, porém, aconteceu no contexto do longo período de expansão fordista das décadas de 1950 e 1960, o “milagre econômico” idealizado na Alemanha. A motorização em massa e a penetração total de todas as áreas da sociedade do pós-guerra pela lógica da valorização, já anunciada na mobilização total da economia de guerra1, conseguiu por quase duas décadas utilizar gigantescas massas de força de trabalho num processo de acumulação intensivo em termos de trabalho por meio do sistema de Taylor. Esse regime de acumulação fordista, tendo a indústria automobilística como setor principal, era a base econômica da hegemonia dos Estados Unidos até ser gradualmente eliminado na década de 1970 e substituído pela financeirização neoliberal do capitalismo – na verdade, a crescente formação do déficit global, que leva a sempre novas bolhas financeiras e crises de endividamento.

Os EUA conseguiram se tornar a potência líder indiscutível e aceita do “Ocidente”, o hegemon, até porque o boom econômico duradouro permitiu a Washington conceder espaço para o desenvolvimento econômico de seus aliados – que foi amplamente usado pelo Japão e pela República Federal alemã também no curso do “milagre econômico”, logo superando a indústria dos EUA em termos de qualidade. A breve maré alta do fordismo ergueu todos os barcos. Enquanto o capital foi capaz de se expandir para novos mercados que surgiram apenas sob o fordismo (automóveis, “produtos da linha branca”, eletroeletrônicos etc.), a concorrência entre “localizações econômicas” – também no que diz respeito ao “conflito de sistemas” – permaneceu secundária.

A impossibilidade de um novo sistema hegemônico na crise do capitalismo

A China, por outro lado, tem de operar em um sistema mundial em crise, no qual o enorme nível de produtividade global da indústria produtora de mercadorias levou a uma crise sistêmica de superprodução, que resulta no constante acúmulo de montanhas de dívidas, uma vez que o sistema hiperprodutivo está efetivamente funcionando com crédito. Além disso, a falta de um novo setor líder e de um novo regime de acumulação leva a uma ênfase crescente na política econômica nas exportações e às correspondentes guerras comerciais, nas quais os países centrais capitalistas tentam sustentar suas economias com excedentes de exportação – à custa da concorrência, que muitas vezes reage com medidas protecionistas. A busca de excedentes de exportação, aperfeiçoada sobretudo pela República Federal da Alemanha no âmbito desta política de salve-se que puder, com a qual a crise sistêmica de superprodução será de fato “exportada”, é assim uma fonte de tensões interestatais permanentes das “localidades” ameaçadas de declínio.

E é justamente disso que resultam os obstáculos quase intransponíveis, que impedem a construção de um sistema hegemônico na atual crise mundial do capital. A hegemonia, ou seja, a posição de liderança aceita ou tolerada pelos poderes subordinados em um sistema de poder, é concebível apenas ao preço do financiamento via crédito, uma vez que não há base econômica para ela na forma de um novo regime de acumulação. As reservas cambiais da China já diminuíram de quatro trilhões de dólares para três trilhões, de acordo com o FT, em parte devido aos enormes investimentos na “Nova Rota da Seda”, e também houve uma queda maciça dos empréstimos de Pequim no exterior. Enquanto a República Popular concedeu mais de 55 empréstimos no valor de mais de um bilhão de dólares cada em 2015, esse número caiu para menos de dez em 2021. No entanto, a redução dos generosos fluxos financeiros de Pequim, que estimulava as economias da África e da Ásia, agrava a crise atual na periferia do sistema mundial. A China pode, portanto, conceder empréstimos no curto prazo, ao longo de vários anos, ganhando assim influência, mas por causa do alto nível de produtividade global ela não pode criar um novo setor líder que utilize trabalho assalariado em massa na produção de mercadorias.

E a própria China, como parte do sistema mundial, é afetada pela crise mundial do capital. Isto fica evidente nas tendências para uma política de salve-se quem puder, uma vez que a República Popular capitalista de Estado também está se esforçando para atingir os maiores excedentes de exportação possíveis à custa de seus concorrentes, o que vai de encontro à formação da hegemonia. Devido à crise de endividamento latente no anêmico setor imobiliário da China e à desaceleração da economia doméstica relacionada à pandemia, os excedentes de exportação estão se tornando cada vez mais importantes para a política econômica, também no caso de Pequim. Só em junho passado, a China alcançou um superávit comercial de US$98 bilhões – um novo recorde!

Não é apenas nos EUA que os superávits da China se materializam em déficits. O grupo de nações da ASEAN, na vizinhança imediata do Sudeste Asiático da China, registrou um déficit de US$17 bilhões no comércio com a China no referido período. Em vez de construir um sistema hegemônico, no qual os países vizinhos da China também teriam se beneficiado economicamente com a ascensão da República Popular, agora há uma luta acirrada por fatias de mercado, pois estamos em um mundo em que a “demanda absoluta” está caindo e há “guerras brutais de preços” por uma fatia do “bolo cada vez menor”.

A mudança de posição da China na economia mundial

A “oficina do mundo” parece assim estar voltando às origens de sua ascensão meteórica, que em sua fase inicial foi impulsionada precisamente por uma extrema orientação exportadora, pela obtenção de gigantescos excedentes de exportação. Até a crise financeira mundial de 2007/2008, que foi desencadeada pelo estouro da bolha imobiliária transatlântica nos EUA e na UE, a indústria de exportação funcionou como o mais importante motor econômico da China. Os excedentes comerciais chineses extremos em comparação com as “economias deficitárias” dos EUA e de algumas partes da Europa, funcionando a crédito, não só impulsionaram a industrialização das exportações e a modernização da República Popular, mas também foram acompanhados de uma exportação de dívida, como a RFA, como um múltiplo “campeão mundial de excedentes de exportação”, também fez até recentemente.

Entretanto, com o surto de crise de 2008, o estouro das bolhas imobiliárias nos EUA e na Europa, que foi combatido globalmente com enormes medidas de estímulo econômico, o modelo de acumulação chinês mudou fundamentalmente. A enorme demanda estatal por estímulos, desencadeados por Pequim através de vários pacotes de estímulo econômico, fez da economia chinesa a locomotiva econômica global em 2009. As gigantescas medidas de apoio implementadas pelo governo chinês em resposta à crise de 2008 também desencadearam uma transformação da dinâmica econômica da China: as exportações perderam peso e a indústria da construção financiada pelo crédito, a infraestrutura e o setor imobiliário tornaram-se os motores centrais do crescimento econômico – até hoje uma parcela absurdamente alta, de 29% do PIB. A modernização impulsionada pelas exportações da China com sua exportação de dívida, que às vezes fez dos EUA o maior credor da República Popular, transformou-se assim em uma economia deficitária estatalmente alimentada – que há muito escapou do controle do Estado.

A bolha imobiliária chinesa

A economia deficitária chinesa, que criou uma gigantesca bolha imobiliária, experimentou seu primeiro grande surto de crise no verão de 2021, quando uma das maiores empresas imobiliárias da China, Evergrande, estava à beira da falência. O grupo, que foi salvo da falência pelo Estado chinês no início de 2022 através de um “programa de reestruturação”, acumulou US$300 bilhões em dívidas, dos quais US$20 bilhões são devidos a investidores estrangeiros. Internamente, mais de 1,5 milhão de compradores de imóveis estão esperando por casas planejadas e pagas em 500 canteiros de obras para serem concluídas. Enquanto isso, os credores do grupo estão lutando para ver quem assumirá as perdas inevitáveis.

Qual é o tamanho da bolha imobiliária e da dívida que o capitalismo estatal chinês criou – e ela pode ser comparada com a especulação imobiliária nos EUA em 2008? Em um estudo que trata destas dinâmicas especulativas, o economista americano Kenneth Rogoff chegou à conclusão de que os setores de construção e imobiliário geram cerca de 29% do produto interno bruto (PIB) da China através de efeitos diretos e indiretos. Assim, a formação de bolhas na “República Popular” estatal-capitalista não precisa temer a comparação com o Ocidente, não apenas em números absolutos, mas também em relação a sua produção econômica. Na Espanha, no auge da bolha imobiliária transatlântica em 2006, o setor imobiliário respondeu por cerca de 28% do PIB, na Irlanda foi de cerca de 22%.

A situação é ainda mais dramática quando o nível de preços nos mercados imobiliários mais importantes da República Popular é colocado em relação ao nível salarial. Em Pequim, Xangai e Shenzhen, são necessárias mais de 40 rendas médias anuais para comprar um imóvel, enquanto que em Londres, uma das cidades mais caras do Ocidente, o número era de 22, e em Nova York “apenas” 12. Rogoff falou de uma dimensão “de tirar o fôlego” e, para as grandes economias, de uma dimensão “sem precedentes”, para a qual o capitalismo de Estado da China, impulsionado pelo mercado financeiro, impulsionou sua bolha imobiliária. Isto também é evidente na relação entre espaço habitacional e população, que, segundo Rogoff, há muito atingiu o nível da França e da Grã-Bretanha na República Popular – e até excede o da Espanha. Se a febre dos edifícios fosse realmente para fornecer moradia às pessoas, o mercado imobiliário chinês já teria sido saturado há muito tempo.

O desastre de Evergrande é de fato apenas a proverbial ponta do iceberg em um capitalismo estatal chinês autoritário que compartilha uma tendência de crise fundamental com seus concorrentes ocidentais: ele funciona a crédito. Em 2020, todos os passivos acumulados da China (governo, setor privado, esfera financeira) totalizavam cerca de 317% do PIB da República Popular, o que estava apenas um pouco atrás da média global de 356%. Apesar das declarações da liderança em Pequim e dos esforços intensificados para conter os empréstimos, as montanhas de dívida da China cresceram mais rapidamente do que o produto interno bruto da “oficina do mundo” desde 2008 – assim como em muitos dos países devedores da China.

Todos os números oficiais de Pequim devem ser tratados com cautela, pois muita coisa é simplesmente varrida para debaixo do tapete na China. Também se diz que uma montanha gigantesca de dívidas pesa sobre os municípios da China, que segundo Goldman Sachs poderia somar até 8,2 trilhões de dólares americanos – as dívidas foram terceirizadas para “veículos financeiros”2 para não aparecerem nas estatísticas. Isso seria cerca de 52% do PIB da República Popular. A propósito, os municípios superendividados exploraram uma importante fonte de financiamento durante o boom imobiliário: eles vendem terrenos para empresas imobiliárias, que constroem suas propriedades especulativas sobre eles. Estima-se que a montanha de dívida oficialmente não registrada que se diz ter sido acumulada pelos shadow banks da China é de cerca de 13 trilhões de dólares.

Crises múltiplas como expressão da crise do capitalismo global

Assim, a liderança da China tem que lidar não apenas com uma crise externa, mas também com uma crise interna da dívida, que não só é impressionantemente semelhante à bolha imobiliária que estourou no Ocidente em 2008, mas também lembra as distorções em muitos estados devedores da República Popular. Até agora, Pequim conseguiu retardar o estouro desta bolha através de sempre novas intervenções e injeções financeiras, mas em algum momento o processo de desvalorização terá inevitavelmente que ocorrer – especialmente à medida que as consequências políticas da bolha da dívida interna da China aumentarem. Mais recentemente, por exemplo, houve confrontos entre clientes de bancos logrados e forças policiais em Zhengzhou, a capital da província de Henan, na China central, que se manifestaram contra o congelamento de suas contas depois que os bancos locais foram envolvidos em um escândalo e entraram em desordem. Além disso, o Partido Comunista Chinês teve que enfrentar uma greve de hipotecas desencadeada por compradores de propriedades descontentes, que interromperam seus pagamentos de hipoteca em massa, pois ainda esperam que suas casas sejam concluídas.

Finalmente, a crise climática não se detém na República Popular, que com seu programa global de investimentos está tentando exportar seu próprio modelo de modernização fóssil, que fez da China o maior emissor mundial de gases de efeito estufa, para a periferia e semiperiferia do sistema capitalista mundial, já que as novas indústrias “regenerativas”, que deveriam permitir a transformação ecológica do capitalismo, são muito intensivas em capital e utilizam muito poucos trabalhadores. Não apenas o Paquistão, que está em dívida com a China, mas também a República Popular sofreu, neste verão, um clima extremo, historicamente sem precedentes, com uma combinação de seca prolongada e uma onda de calor extrema, que pressionou o fornecimento de energia, a atividade econômica e a segurança alimentar. O calor insuportável levou literalmente a perdas de produção que não só diminuem as perspectivas de crescimento da China, mas podem mais uma vez sobrecarregar as cadeias de fornecimento globais.

A luta contra o colapso social induzido pelo clima que emerge no verão deste ano de horrores, não apenas na China, mas também na UE e nos EUA, é, portanto, suscetível de fazer a própria ideia de hegemonia global parecer absurda nos próximos anos. Com o aumento das tensões e lutas interestatais induzidas pela crise, que escalaram para uma guerra neoimperialista na Ucrânia, os decadentes monstros dos Estados capitalistas tardios estarão mais preocupados nos próximos anos com a transferência das consequências da crise para seus concorrentes, a fim de retardar seu próprio colapso.

Tradução de Marcos Barreira e André Villar.

Notas
1 KURZ, Robert. Freie Fahrt ins Krisenchaos. Aufstieg und Grenzen des automobilen Kapitalismus. In: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, Heft 17/2020, p. 23-44 (zuerst erschienen in: Hermann G. Abmayer: Der große Crash. Der Kollaps unserer Autogesellschaft, Marburg/Berlin, 1994, p.149-169).
2 LGFV – veículos de financiamento do governo local. Empresas de financiamento estabelecidas com a finalidade de financiar projetos específicos de infraestrutura. Seus passivos são negociados nos mercados financeiros, mas eles não aparecem nas estatísticas como dívida do governo.

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Tomasz Konicz é jornalista, nascido em 1973, na Polônia. Seu blog Konicz.info, ativo desde 2005, é especializado em notícias e análises sobre a Europa Oriental e o espaço pós-soviético a partir do ponto de vista da “crítica do valor” [Wertkritik]. Publicou, entre outros, O capital contra o clima. Como um sistema econômico destrói nossos meios de vida (Mandelbaum Verlag, 2020) e Fascismo no século XXIEsboços da barbárie iminente (Heise Medien, 2018).

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