Cultura inútil | Herdeiros: uma praga!

De Carlos Drummond de Andrade a Buda, passando por Bob Marley, Clarice Lispector e Pedro Bial, Mouzar Benedito faz uma seleção de frases sobre a praga da herança.

Por Mouzar Benedito

Quando se anunciava a eleição para a Constituinte de 1987 (que resultou na Constituição de 1989), um grupo de militantes se reunia na minha casa e discutíamos o que deveríamos propor para a nova Constituição do Brasil.

Para isso, teríamos que eleger alguém que levasse nossas ideias ao Congresso Nacional. Um dia, uns amigos apareceram com um panfleto já impresso com todas aquelas nossas propostas… e meu nome como candidato a deputado federal. Chegamos a fazer panfletagem na feira de artes da Vila Madalena, mas eu já tinha decidido não aceitar a candidatura. Argumentei com os amigos: “Na eleição podem acontecer duas coisas ruins. Uma é perder, outra é ganhar. Já imaginaram que chatice ter que conviver com a maioria daqueles deputados?”

Uma coisa interessante era um item totalmente utópico que deveríamos propor: extinção do direito de herança. Foi muito gozada a reação do pessoal que lia o folheto ao chegar nesse item. “Como? O meu pai trabalhou para criar um patrimônio para nós e, quando ele morrer, isso vai para o Estado?”, era o que diziam, mas o mais interessante era quem argumentava isso: pessoas de esquerda, anticapitalistas. Eu contra-argumentava: “Ora, a base do capitalismo é o direito de herança. Se acabarmos com isso, acaba-se o capitalismo, não é isso que você quer?”.

Sabíamos que era impossível aprovar algo assim, mas cutucávamos não só os direitistas mas também nossos amigos que herdariam, se não uma fortuna, uma boa grana.

O certo é que tenho uma birra com a maioria dos herdeiros. E há motivo para isso. Eles se sentem no direito de abocanhar bens para os quais nunca contribuíram para criar. Vejam as brigas de irmãos por causa de herança! Quanta mesquinharia! E quantos casos de espertos que enganam irmãos ingênuos (mais comumente, irmãs ingênuas) e abocanham tudo ou quase tudo.

Como apreciador de uma boa cachaça, relato o que herdeiros fizeram com os alambiques que herdaram. Décadas para o pai construir a fama de boa cachaça e…

Primeiro, lembro-me de uma sem rótulo que chamávamos “Pinga da Serra”, produzida no município de São Pedro da União, perto da minha terra, em Minas Gerais. Quando o velho morreu, a cachaça que produzia era famosa, e a produção pequena. Os herdeiros começaram a comprar pinga de outros produtores e misturar nela. Queriam ganhar mais e, para isso, precisavam vender mais do que produziam. Destruíram a qualidade e a fama daquela cachaça.

A outra é da pinga “Motinha”, produzida no município de Manga, no norte de Minas. Era uma das melhores que havia. O velho morreu, irmãos começaram a brigar pela herança e cada um produzia a cachaça “herdeira”. A própria Motinha, que perdeu a qualidade rapidamente, e a Nova Motinha…

E herdeiros de músicas ou obras literárias? Li há tempos que duas sobrinhas de Noel Rosa herdaram os direitos sobre as músicas dele, e elas nem tinham nascido quando ele morreu. Até aí, tudo bem. Mas segundo li há anos, elas chegaram a proibir a reedição de uma biografia muito correta de Noel Rosa (agora que ninguém mais pode proibir biografias, quem sabe reimprimem). Na mesma época, li também que um sobrinho de Manuel Bandeira herdou os direitos sobre as obras do poeta. Um amigo de juventude de Manuel Bandeira escreveu um livro (autobiográfico, se não me engano) e iria publicar nele fotos com velhos amigos. Uma delas, com o poeta. Pediu autorização ao herdeiro (precisava fazer isso?) e ele quis cobrar uma grana que inviabilizava a publicação. Dizia que, como herdeiro, precisava preservar o nome do tio. Quer dizer, preservar era cobrar pela utilização dele.

Por causa dessas e de outras coisas, acho que, se tivesse uma boa grana, iria tentar torrar tudo antes de morrer. Deixaria zero de herança, como sei que alguns fizeram.

Para concluir, antes de entrar numas frases sobre herança, lembro-me de um sujeito que era filho único de fazendeiros e tinha vários tios sem herdeiros diretos, que deixariam tudo para ele. Nunca trabalhou. Herdou tudo do pai e foi gastando festivamente até a grana acabar. Como ele, a mulher e os filhos eram muito festivos, foram fazendo dívidas até que morreu um tio, e veio uma nova herança. Pagaram as dívidas e festejaram anos com o que sobrou. Quando a grana acabou e começaram a fazer dívidas, morreu outro tio, e lá veio nova herança. Viveu assim até morrer o último a lhe deixar uma herança. Quando acabou a grana dessa última herança, o que fazer? Morreu.

Ah… uma brincadeira que se fazia na minha terra. Para alguém que esperava alguma herança, dizia-se: “Ele vai ficar com’herdeiro do fulano”. Na pronúncia sincopada, em vez de “ficar como herdeiro”, falava-se “ficar com o merdeiro”…

Aí vão umas poucas frases sobre o tema… 

Marquês de Maricá: “O avarento é o mais leal e fiel depositário dos bens dos seus herdeiros”.

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Sêneca: “Lágrimas de herdeiros são risos mascarados”.

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Buda: “Eu sou o resultado dos meus próprios atos, herdeiro dos meus próprios atos; os atos são meu parentesco; os atos recaem sobre mim; qualquer ato que eu realize, bom ou mau, eu dele herdarei. Eis em que deve refletir todo homem e toda mulher”.

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Samuel Butler: “Se você já comunicou a alguém que lhe deixou uma herança, a única coisa decente a fazer é morrer logo”.

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Jean de La Bruyère: “Os filhos seriam, talvez, mais caros a seus pais e, reciprocamente, os pais aos filhos, sem o título de herdeiros”.

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Jean de La Bruyère, de novo: “O avarento gasta mais no dia de sua morte do que em dez anos de vida, e seu herdeiro gasta mais em dez meses do que ele em toda sua vida inteira”.

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Millôr Fernandes: “Morrer rico é extra incompetência. Significa que você não usufruiu, ou pelo menos não usufruiu todo o seu dinheiro. Além disso, um rico que gasta tudo o que tem antes de morrer, livra os seus herdeiros do odioso imposto de transmissão”.

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Millôr Fernandes de novo: “O senador, dando empregos não só a filhos, mas também a primos e sobrinhos, inovou o provérbio ‘Mateus, primeiro os teus’. Ficou assim: ‘Mateus, primeiro, segundo e terceiro os teus’”.

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Millôr, de mais uma vez: “O pai lhe deixou tudo o que tinha: a barriga, a careca e a estupidez”.

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E dá-lhe, Millôr: “Herança é o que os descendentes recebem quando o cara não teve a sabedoria de gastar tudo antes de morrer”.

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Carlos Drummond de Andrade: “E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana”.

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Einstein: “Tenha em mente que tudo que você aprende na escola é trabalho de muitas gerações. Tudo isso é posto em sua mão como sua herança para que você receba-a, honre-a, acrescente a ela e, um dia, fielmente, deposite-a nas mãos de seus filhos”.

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Bob Marley: “As piores loucuras são as mais sensatas alegrias, o que fiz deixei de herança para que sonham como eu: louco, mas feliz!”.

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Clarice Lispector: “As boas maneiras são a melhor herança”.

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Edmund Burke: “Há quem defenda os seus erros como se estivesse a defender uma herança”.

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Riccardo Bacchelli: “A miséria também é uma herança”.

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Grouxo Marx: “Ela herdou todos os traços do pai. Ele é cirurgião plástico”.

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Pedro Bial: “Os herdeiros da orgulhosa tradição de vencer na vida sem fazer força fazem muita força pra disfarçar a força que fazem pra manter a fama de vagabundos”.

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Não sei quem: “Herança é aquilo que os mortos deixam para que os vivos se matem”.

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Ditado popular: “Pai guardador, filho gastador”.

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Darcy Ribeiro: “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma pronta a explodir na brutalidade racista e classista…”.

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Woody Allen: “Está vendo este relógio de ouro: me foi vendido por meu avô ao morrer”.

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Jornal O Planeta Diário: “O nepotismo começou cedo, quando Deus nomeou seu filho para a Santíssima Trindade”.

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Francisca Praguer Fróes: “Eu sou feminista por herança e por convicção”.

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Balzac: “A gratidão é uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário”

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Barão de Itararé: “O príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança come diariamente 500 gramas de presunto cru, para alimentar a ilusão de herdeiro presuntivo da coroa do Brasil”.

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Barão, de novo: “O herdeiro universal é um sujeito que come de colher, sozinho, a galinha morta que foi criada, engordada e assada pelos outros”.

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Barão, mais uma vez: “Luís XV não herdou os traços fisionômicos de Luís XIV, mas a cabeleira postiça era igualzinha”.

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Francesco Petrarca: “Não é aos padres nem aos filósofos que se dever perguntar para que serve a morte… é aos herdeiros”.

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em coautoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2021, Editora Limiar). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.

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