O homem sem pele. Theodor W. Adorno, leitor de Marcel Proust
Proust, diz Adorno, é um mártir da felicidade. Ele a apreende na forma de imagens no momento em que ela se esvai. [...] Esse mergulho profundo na experiência individual está ligado, ao mesmo tempo, a um eu que não é mais capaz de agir no mundo.
IMAGEM: PORTRAIT OF MARCEL PROUST, DE ANDY WARHOL
Por Bruna Della Torre
Em 1954, Adorno ministrou uma palestra no Collegium Academicum de Heidelberg sobre Proust. A mesma conferência foi proferida posteriormente em Göttingen e Freiburg. O manuscrito, publicado pela primeira vez em 2019 no compêndio de Vorträge (1949-1968), tem algumas sobreposições com o ensaio “Sobre Proust” [Zu Proust], publicado nos Notas de Literatura e leva o mesmo nome [Ad Proust], dado a posteriori pelo organizador do livro, Michael Schwarz. Revisitar essa palestra é uma maneira refletir sobre como Proust sobrevive 100 anos após sua morte.
A primeira recomendação de Adorno em relação a Proust é ler a Recherche du temps perdu como obra de arte que é. O conselho vem a calhar num momento no qual Proust se torna um produto cobiçado da indústria cultural. O adjetivo que Bertolt Brecht designava para qualificar os produtos da cultura de massa – arte culinária – não é metafórico aqui. Nas livrarias francesas, são inúmeras as variações de La cuisine retrouvée. Proust serve também como guia de viagens e conselheiro amoroso. Seu livro passa a ser companheiro de crises existenciais de meia-idade. Tudo que leva seu nome vende.
Adorno escapa ao clichê da madeleine e recusa a interpretação de Ernst Robert Curtius e outros autores que abordavam Proust como um desdobramento literário de Bergson ou um tipo de platonismo. Nada de durée, nem de memória involuntária. Hoje a consagração de Proust como filósofo, expressa em livros como The Proustian Mind, atesta a importância da discussão da Recherche enquanto um romance (se é que ainda podemos chamá-lo assim). A Recherche, diz Adorno, é uma obra de vanguarda. A filosofia de Bergson e o debate complexo sobre a temporalidade são sua matéria. Não é nela, entretanto, que reside o conteúdo filosófico de sua forma. Essa é uma das grandes armadilhas de Proust, uma cilada comunicativa, que Adorno sugere ser proposital: a matéria filosófica de sua obra torna mais difícil a apreensão de sua forma, profundamente avessa à comunicação. Os debates filosóficos são, conforme sugere Adorno, parte do monólogo interior a partir do qual a forma se constrói e não elementos autônomos independentes (como as ideias e teorias em Thomas Mann ou André Gide). Essa objeção se estende igualmente à questão da memória involuntária – hipostasiada na leitura de Benjamin. Outra arapuca proustiana. Esta irrompe no romance de maneira controlada e refletida, mediada pela realização artística do eu que narra. Sua invasão é produto da mediação e reflexão e, portanto, não revela nada por si própria, nem pode ser ela o principal elo dos vários “milagres” do romance, para usar a expressão de Samuel Beckett. Este reside na consciência do narrador que liga os episódios. Já na sua correspondência com Benjamin na década de 1930, Adorno chamava a atenção para uma dialética entre consciência e inconsciência em Proust.
Por fim, ler a Recherche como um retrato da aristocracia francesa decadente na virada do século XIX para o XIX, no crepúsculo do capitalismo liberal, também não resolve o problema da forma do romance proustiano. Não interessa a Adorno a leitura sociológica, da anatomia das classes sociais e trajetórias, obsessão que se atualiza também na interpretação corrente da obra de Annie Ernaux, leitora extraordinária de Proust. Apesar de descrever finamente a esfera do consumo, dos parasitas de uma classe sem base social, diz Adorno, as esferas econômica e política seriam mantidas à distância na obra, aparecendo apenas como negativo de uma sociedade de luxo esotérica. Hoje, essa interpretação é fortemente contestada e Proust, como argumentei aqui em outra ocasião, é lido não só como um autor profundamente político, mas como um escritor da guerra. De qualquer modo, a sociologia, assim como a filosofia, seriam “cortinas de fumaça” que turvam a capacidade de apreender esse conteúdo formal da Recherche ao qual se refere Adorno. Esta tem a ver com a capacidade única de Proust de combinar as técnicas avançadas de escrita do romance e um caráter exemplar que, sem deixar de ser privado, permite que cada leitor (leitora também, será?) tenha a impressão de que aquilo se passou com ele(a). Proust alcança essa forma, que é objetiva, por meio da preservação de uma percepção infinitamente indiferenciada do mundo que só seria possível numa infância não podada precocemente em sua capacidade de reação. Este seria um dos principais impulsos da obra de Proust; o cerne de sua forma – a experiência [Erfahrung] – e seu elo com a psicanálise freudiana.
Adorno reitera essa ideia ao afirmar que, ao ler Proust, sentimos que há algo em sua obra que nos é familiar, mas esse algo é o mais incomum. Aquilo que percebemos como simultaneamente familiar e incomum na leitura do romance é, de acordo com a sugestão de Adorno, uma capacidade de percepção não deformada que seria própria da criança. Adorno retoma a ideia freudiana de que a substância de quem somos se forma na infância. A obra de Proust assentar-se-ia nessa capacidade de estranhamento típica da criança que privilegia a experiência vivida em detrimento das fórmulas pré-constituídas. Sua obra está marcada pela busca do mais individual, do que ainda não foi apreendido pelo conceito. Adorno fornece dois exemplos para elucidar esse ponto.
O primeiro é uma referência a uma passagem do primeiro volume, Du côté de chez Swann, no qual o narrador se lembra de como sua tia-avó torturava a sua avó, fazendo-a voltar de seus passeios noturnos chamando-a para impedir que seu marido, avô de Marcel, bebesse o conhaque que ela mesma [a tia-avó] havia servido.
Este suplício que lhe infligia a minha tia-avó, o espetáculo das súplicas baldadas de minha avó e de sua franqueza, de antemão vencida, tentando em vão tirar de meu avô o cálice de licor, era dessas coisas a cuja vista a gente se habitua mais tarde até a considerar em risos e a tomar o partido do perseguidor, resoluta e alegremente, para se persuadir que não se trata de perseguição; na ocasião, causavam-me um tal horror que me dava vontade de bater na minha tia-avó. Porém quando ouvia: “Bathilde! vem ver se impedes que o teu marido beba conhaque!”, já adulto pela covardia, eu fazia o que todos fazemos, quando somos grandes, e há diante de nós sofrimentos e injustiças: não queria vê-los; subia para soluçar lá no alto da casa, numa peça ao lado da sala de estudos”
A passagem remete à capacidade de estranhamento, de captura da violência silenciosa das relações cotidianas que Proust incorpora à narrativa, que, por sua vez, apresenta uma inversão. O narrador trata de algo que aconteceu no passado, quando era jovem, mas, apesar da idade, a covardia era indício da iniciação na vida adulta, de enrijecimento e vergonha.
Adorno retira o outro exemplo de sua própria vida e relata o caso de um colega de escola que se incomodava com a forma como seu professor de francês (que Adorno dizia ser excelente) pronunciava o “l” da peça L’Avare [O avarento] de Molière. Segundo o colega, essa pronúncia – na qual se insinuava o dialeto – indicaria que o professor não podia falar a língua. Esse episódio, diz ele, poderia ter sido narrado por Proust. O exemplo é menos antipático do que parece, já que Adorno não falava bem o francês e evitava a todo custo fazê-lo em público. Segundo ele, a capacidade de escutar esse “l”, de escutar e auscultar a realidade foi perdida. A referência aqui à regressão da audição, bem como de outros sentidos – um dos temas mais importantes da obra de Adorno, reaparece quando Adorno afirma que quando ouvimos nossa voz numa gravação, costumamos ter um choque. Segundo ele, Proust manteve essa capacidade de escutar a própria voz e a voz dos outros com proximidade e estranheza em toda a sua obra – sua forma advém daí. O último filme de David Cronenberg, Crimes do futuro, trata de algo similar ao que encontramos aqui. Numa passagem muito interessante, um homem dança ao som de uma música eletrônica exibindo um corpo coberto de orelhas. É um espetáculo. Seus olhos e boca são costurados enquanto um narrador afirma que “é a hora de parar de enxergar, é a hora de parar de falar, é a hora de começar a ouvir”. Mas somos, então, surpreendidos por alguém na plateia que interrompe: “as orelhas extras sequer funcionam, elas são apenas um adorno”. A multiplicação de órgãos sem função ressalta uma reificação inscrita no corpo de maneira radical. O protesto de Proust contra o embotamento dos sentidos nunca foi tão atual.
Adorno associa, em vários momentos de sua obra, embrutecimento, enrijecimento da aptidão para experiência, reificação e disposição para violência. Sua experiência intelectual caracteriza-se por uma reflexão extensa sobre a produção da sociedade através dos indivíduos – inclusive, de uma perspectiva da corporalidade. No fragmento que encerra Dialética do Esclarecimento e intitula-se “Sobre a gênese da burrice”, Adorno e Horkheimer recorrem a uma metáfora para designar a inteligência. Eles dizem: “o símbolo da inteligência é a antena do caracol ‘com a visão tateante’, graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar”. Isto é, a inteligência tem a ver com um aspecto de apreender o mundo em sua dimensão sensível (e sinestésica). Mas, dizem os autores, se as antenas saírem do abrigo protetor do corpo e se depararem com algum obstáculo, elas se tornarão mais hesitantes e demorarão a sair. Seus músculos se atrofiarão por falta de uso. Nesse sentido, “a burrice é uma cicatriz. […] Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar”. A burrice aqui, nada tem a ver com instrução. Ela é o resultado de um processo de aniquilação da capacidade de experimentar o mundo.
A obra de Proust seria, nesse sentido, “uma tentativa, um ensaio [Versuch] de apresentar a realidade interna e externa pelo instrumento da existência de uma pessoa sem pele”. E esse caráter indiviso revela o escritor dialético e vanguardista. Proust aprofunda o romance psicológico até produzir a sua dissolução. A diferença entre exterior e interior é aniquilada. O homem sem pele é um vaso comunicante entre os dois polos. Adorno comenta o hábito de Proust de, em seus últimos anos, manter seu casaco de pele nas ocasiões sociais, mesmo no verão, para amenizar o contraste de temperatura entre os ambientes fechados e abertos, como se essa fosse sua única membrana protetiva. O modelo de sua obra, diz Adorno, é a fábula da princesa e da ervilha, conto do dinamarquês Hans Christian Andersen que designa a capacidade de sentir e de sofrer mantida intacta apesar das várias camadas que buscam amortecê-la ou apagá-la. Adorno afirma que isso exige um exercício constante, quase como uma prática de ioga, que Proust atingiu estendendo em torno de si um cordão sanitário – prática, aliás, que havia sido inventada por seu pai, chefe do departamento de higiene francês. Proust teria, segundo Adorno, internalizado esse cordão.
Mas não se trata de pensar Proust como indivíduo, mas como escritor. Tudo isso é visível em sua obra, na qual essa “ingenuidade” assume uma configuração de segunda ordem. Isto é, trata-se de uma capacidade de perceber o mundo diferencialmente transplantada para o romance, na qual esse atributo nada tem de infantil – mas é mediado pela consciência do adulto e pela narrativa. Seria possível transpor a Proust o mesmo que Adorno afirma sobre Schönberg; as pessoas não desprezam sua obra porque não a entendem, porque ela é muito difícil, mas porque a entendem bem demais e, o que ela nos diz, não estamos mais acostumados a escutar. Proust, por meio dessa disciplina sem precedentes, mantém vivo aquilo que cada indivíduo sabia quando criança e reprimiu. No seu romance, é isso que aparece como familiar e, ao mesmo tempo – talvez por isso mesmo – choca, produz estranhamento. Embora Proust tenha submergido à condição de mercadoria ligada à semi-formação, quem lê seu romance à sério sente uma vertigem similar aquela produzida pela escrita de Franz Kafka e pelos filmes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. O tempo não passa. Proust submete sua leitora a frases longas e palavras difíceis, a um enredo despido de ação e dotado de temporalidade própria, uma temporalidade avessa à velocidade imposta a nós pela indústria cultural. A experiência de ler Proust (aliás, a experiência de ler qualquer coisa que valha a pena) nada tem a ver com os cenários de Instagram com poltronas confortáveis, papéis de parede pastel e meias de lã. Proust, diz Adorno, pagou um preço alto para ser um homem sem pele. Nós, suas leitoras, se queremos tirar algo desse romance, devemos assumir a dívida que ele nos lega.
Proust, diz Adorno, é um mártir da felicidade. Ele a apreende na forma de imagens no momento em que ela se esvai. Na palestra, ele comenta a passagem, também do primeiro volume do livro, no qual Marcel visita seu tio Adolphe, que lhe apresenta a contragosto “a dama cor de rosa” – Odette – por quem o menino sente uma paixão imediata. Seus pais ficam descontentes com a apresentação e têm discussões calorosas com o tio. Dias depois, eles se cruzam na rua e o narrador volta a sentir
a dor, a gratidão, o remorso que gostaria de lhe ter expressado [na ocasião da apresentação]. Diante da grandeza destes sentimentos, achei que um cumprimento de chapéu seria um ato mesquinho e poderia lhe dar a entender que eu não me sentia obrigado, quanto a ele, além de uma polidez banal. Resolvi me abster desse gesto insuficiente e virei o rosto. Meu tio pensou que eu estava seguindo instruções de meus pais e nunca os perdoou por isso, e morreu muitos anos depois sem que nenhum de nós o tivesse visto de novo.
O momento de felicidade se perde para sempre repetidamente na Recherche. Esse mergulho profundo na experiência individual está ligado, ao mesmo tempo, a um eu que não é mais capaz de agir no mundo. O distanciamento é fundamental para o narrador proustiano (sua única ação é aquela que reconfigura a narrativa, que transforma a história de Marcel no livro que estamos lendo). Por isso, Adorno enquadra a Recherche na grande tradição dos últimos romances da desilusão, na trilha de Stendhal, Balzac e Flaubert. O livro conta a história da busca pela felicidade que é desonrada por toda parte. Sempre que na obra de Proust tal tipo de evidência é produzida, há uma dor, destaca Adorno – uma dor que é preservada. Daí advém, de acordo com Adorno, a obsessão proustiana com o ciúme. De Swann com Odette, do narrador com Albertine, de Charlus com Morel: “Proust responde à pergunta pela possibilidade da felicidade com a representação da impossibilidade do amor”. Sua obra é impulsionada por um desejo de felicidade que assume a forma de imagens que não são nunca processadas em conceitos – é este seu conteúdo filosófico.
Na Alemanha, a recepção de Proust foi interrompida pela ascensão do nazismo, que fez de seu tradutor uma de suas vítimas. Benjamin verteu para o alemão o segundo, o terceiro e possivelmente o quarto volume da obra, que se perdeu. A obra de Proust foi queimada e banida durante o Terceiro Reich e só encontraria sua recepção alemã no início da década de 1950, com a tradução de Eva Rechel-Mertens. É nesse contexto que Adorno a retoma em sua palestra. Talvez o destino de Proust seja justamente esse: ser um autor do recomeço. Na França sua obra ganhara notoriedade apenas após a Primeira Grande Guerra. No Brasil, o fim do governo Bolsonaro coincide com o lançamento de uma nova tradução, de Rosa Freire d’Aguiar e Mário Sérgio Conti. Proust de novo, num mundo mais petrificado do que nunca. Vale para ele, o que ele mesmo escreveu sobre Bergotte na Recherche: “Enterraram-no […], mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrines iluminadas, seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos de asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo de sua ressurreição.”
Essa noite fúnebre já dura um século.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. “Ad Proust”. In: Vorträge (1949-1968). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2019, p.55-76.
BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Volume I. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
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