Lula precisa reconstitucionalizar o Brasil

É fundamental voltar a traçar as fronteiras entre os poderes e a definir as atribuições de cada um, permitindo tanto que eles deem previsibilidade à disputa política e à vida social quanto restabelecendo o equilíbrio do sistema de freios mútuos, que, no arranjo liberal, é a garantia da não-tirania.

FOTO: MOHAMMED SALEM/REUTERS

Por Luis Felipe Miguel

Lula assume a presidência no próximo dia 1º de janeiro com um conjunto hercúleo de tarefas a cumprir. Afinal, os últimos anos foram de acelerada destruição do país. O novo presidente precisa reinserir o Brasil no mundo, restaurar os compromissos sociais do Estado, retomar o caminho do desenvolvimento, conter o colapso ambiental e pacificar a disputa política. Um desafio, em particular, atravessa todos os outros e é crucial para o futuro de nossa democracia: Lula precisa comandar o processo de reconstitucionalização do Brasil.

A derrota de Bolsonaro retira do horizonte o risco de um fechamento autoritário, mas ainda há muito a fazer para que a Constituição de 1988 volte a vigorar no país. Trata-se, em primeiro lugar, de restaurar a divisão de poderes, o princípio de igualdade perante a lei e o consenso sobre o respeito aos resultados eleitorais, pilares da ordem democrática e liberal que se quis edificar a partir da superação da ditadura de 1964. É claro que, com a chegada ao poder de um grupo abertamente saudoso do regime militar, estes princípios seriam colocados sob ataque.

Mas convém lembrar que o esvaziamento da Constituição não começou com Bolsonaro. O ponto de partida é o golpe de 2016 – quando grupos inconformados com a reeleição de Dilma Rousseff decidiram patrocinar uma “virada de mesa”, derrubando-a num processo de impeachment que, da legalidade, preservou apenas a fachada. Foi violado ali o elemento basilar da democracia eleitoral, aquele que determina que os mais votados são empossados e governam. Mas não foi só isso. A Operação Lava Jato, então com a complacência das cortes superiores, fez do Judiciário um instrumento de perseguição política, deixando evidente uma aplicação tendenciosa da lei. Em 2018, o “impeachment preventivo” de Lula, impedindo-o de concorrer às eleições, com nada discreta participação da cúpula militar, carimbou de vez a situação do país como estado de exceção.

A desorganização institucional ficou patente desde o golpe. Um episódio é ilustrativo: em dezembro de 2016, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, determinou o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado. Calheiros se recusou a cumprir a determinação, foi apoiado pela mesa do Senado e o pleno do Supremo acabou por aceitar a situação, revogando a decisão de Mello. Em suma, a relação entre os poderes tomava a forma de uma queda de braço, em que ganhava quem pudesse mais. A presidência Bolsonaro, com suas ameaças, bravatas e abusos, seguidos por “advertências” e jantares voltados à “harmonização” entre os poderes, tudo definido de acordo com os recursos e blefes lançados à mesa, escancarou uma situação na qual as regras constitucionais não vigoravam mais.

A campanha eleitoral que se encerrou há pouco revela, com clareza ímpar, a dimensão do impasse em que o Brasil foi colocado. Em relação a muitos dos abusos de Bolsonaro, a começar pelo uso da máquina pública em favor de sua candidatura, pelo pouco velado incentivo à violência política e pela reiteração de ameaças golpistas, as instituições optaram pela leniência – pouco ou nada fizeram para coibi-los. Coube ao ministro Alexandre de Moraes tomar a si a tarefa de enfrentar a desinformação, peça central da estratégia da reeleição, por meio de atitudes voluntaristas, que – embora justificadas pelas urgências do momento – não fornecem fundamento para um ordenamento jurídico estável.

A questão candente da liberdade de expressão serve de perfeito exemplo. Sim, os brados de “censura” da extrema-direita são hipócritas, já que ela apostava na difusão deliberada de mentiras com o objetivo de desvirtuar a escolha popular. Uma ação rápida e enérgica era necessária, para evitar danos irremediáveis ao processo eleitoral. Mas ainda falta definir o arcabouço legal que permita estabelecer a sanidade do debate público, sem comprometer a liberdade dos agentes e sem depender do arbítrio de algum xerife do momento.

É fundamental, portanto, voltar a traçar as fronteiras entre os poderes e a definir as atribuições de cada um, permitindo tanto que eles deem previsibilidade à disputa política e à vida social quanto restabelecendo o equilíbrio do sistema de freios mútuos, que, no arranjo liberal, é a garantia da não-tirania. Mas é preciso levar em conta o fato de que as instituições são “povoadas”, isto é, não operam de forma automática, mas por meio dos agentes que nelas ocupam os cargos. Isto significa que seu funcionamento é dependente também do material humano que as compõe. No caso do Brasil, é forçoso reconhecer que a qualidade deste material é baixa. Uma boa parcela do Congresso é formada por pessoas não apenas pouco qualificadas intelectualmente, mas desprovidas de qualquer senso de dever público; e o mesmo se pode dizer das cortes superiores – nem é preciso citar exemplos. O vale-tudo em que a política foi transformada retirou as últimas inibições para que essas pessoas se comportassem de forma ainda mais predatória e truculenta, gerando um autêntico círculo vicioso.

Um elemento extra da confusão institucional brasileira é o crescimento da presença política militar. Uma certa “doutrina Villas Bôas”, elaborada pelo ex-comandante do Exército, determinaria que as Forças Armadas deveriam ser incorporadas como interlocutores “normais” do debate político. Mas elas evidentemente não são “normais”, pelo simples fato de que estão armadas. Suas intervenções sempre têm um tom de ameaça. Caso se envolvam na política, o risco de que cerceiem ou tutelem o poder civil está presente. E, não importa o que digam suas doutrinas, os militares brasileiros não se consideram um interlocutor político como os outros. Suas intervenções sempre namoram o mito do “poder moderador” – a ideia fantasiosa de que cabe às Forças Armadas a palavra final nos desentendimentos entre os poderes da República. Também gostam de se arrogar detentoras de um patriotismo especial, inacessível aos civis. No entanto, comumente agem, como bem se vê agora, não em defesa de qualquer ideia, mesmo equivocada, de Pátria, mas para proteger vantagens mesquinhas.

Do apoio velado ao golpe de 2016 ao famigerado tuíte do próprio Villas Bôas (ameaçando o Supremo caso concedesse habeas corpus a Lula, em 2018) e daí à lambança no governo Bolsonaro, as Forças Armadas brasileiras só fizeram confirmar sua inadaptação ao regime democrático – no qual seu papel político é obedecer ao poder civil e nada mais. Caso enfrente a questão, estabelecendo o silêncio político dos militares como princípio inarredável, punindo manifestações golpistas e saudosismo da ditadura, o novo governo certamente sofrerá tensões. Mas, caso repita o que se fez na transição dos anos 1980 e opte por não enfrentá-la, condenará o Brasil a uma democracia limitada, tutelada e possivelmente efêmera. A profunda desmoralização da corporação militar, dados os vexames que acumulou nos últimos anos, talvez forneça a janela de oportunidade para que esse nó, enfim, comece a ser desatado.

Há um último desafio, não menos importante, à tarefa de reconstitucionalização do país. Trata-se de estender a vigência das garantias constitucionais aos espaços geográficos e sociais em que, mesmo durante os melhores momentos da democracia brasileira, elas tiveram dificuldade de entrar: as periferias, os territórios indígenas, as zonas conflagradas do campo, os locais de trabalho. Trata-se tanto de uma questão de justiça quanto de pragmatismo político. Afinal, é a força dos grupos sociais dominados que, em última instância, mantém vivas as práticas democráticas. Quanto mais esses grupos foram capazes de usufruir dos benefícios que a democracia traz, tendo garantidos direitos e conquistando uma voz a ser ouvida nos processos de tomada de decisão, maior seu interesse em lutar para preservá-la.


Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória, de Luis Felipe Miguel

A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade. Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real. Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades. Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou para refreá-la.

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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

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