Centenário do PCB: os comunistas e o “queremismo”
Entre as formas encontradas para estigmatizar Prestes e os comunistas temos a acusação de um suposto conluio do líder comunista com Vargas, o carrasco de sua mulher, responsável pela sua extradição para morrer num campo de concentração da Alemanha nazista. Um dos expedientes usados na tentativa de revelar esse conluio foi a difusão de uma falsificação histórica: a suposta participação dos comunistas na campanha queremista e a consequente suposta adesão à consigna de “Constituinte com Getúlio”.
FOTO: ARQUIVO NACIONAL
Por Anita Leocadia Prestes
Comunistas e queremistas
Tornou-se lugar comum, tanto nos textos acadêmicos quanto escolares e jornalísticos, a afirmação de que em 1945 Luiz Carlos Prestes e os comunistas teriam aderido ao movimento consagrado com o nome de “queremismo”, criado em junho daquele ano.
Dirigido pelo político paulista Hugo Borghi, membro do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), o movimento queremista tinha como slogan “Nós Queremos Getúlio”. Significava o apoio à candidatura de Getúlio Vargas à presidência da República nas eleições presidenciais e parlamentares marcadas para 2 de dezembro de 1945. No decorrer da campanha os queremistas adotariam a consigna “Queremos Constituinte com Getúlio”, entendendo que as eleições poderiam ser para a Constituinte em vez de para o Parlamento, como previsto pelo Ato Adicional n.9, decretado por Vargas em fevereiro daquele ano. Para o movimento queremista, o principal era a permanência de Vargas na presidência. (CARONE, 1977, p. 332-36).
Desde o início de 1945 e, em particular, desde o lançamento da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, para os comunistas, com Prestes à frente, o secretário-geral do PCB, o processo de conquista efetiva da democracia no país só poderia ter êxito por meio de uma Assembleia Constituinte livremente eleita pelo povo, que viesse a elaborar uma Constituição democrática.1 A Constituinte seria o único meio capaz de levar à implantação de um regime democrático no Brasil, sepultando a Constituição de corte fascista de 1937 e as instituições autoritárias do Estado Novo. Ao mesmo tempo, era preciso impedir a consumação de um golpe militar por parte das forças conservadoras, que viesse a reverter o processo de democratização inaugurado por Vargas.
Em julho de 1945, em comício no estádio do Pacaembu, em São Paulo, diante de 100 mil pessoas, Prestes reafirmava que os comunistas tudo fariam para “unificar as mais amplas camadas sociais, visando, antes e acima de tudo, a levar ao parlamento a que se refere o Ato Adicional n.9 ou à Assembleia Constituinte, que preferimos, o maior número possível de genuínos representantes do povo, capazes de defender a democracia” (PRESTES, s/d, p. 112).
Um mês depois, no informe político apresentado ao Pleno do Comitê Nacional do PCB, Prestes voltava a afirmar:
O melhor caminho para a efetiva democratização do país não é […] o estabelecido pelo Ato Adicional. Reclamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, em que os verdadeiros representantes do povo possam livremente discutir, votar e promulgar a Carta Constitucional que pede a Nação. (PRESTES, s/d, p.156)
Ao justificar a defesa da convocação imediata da Constituinte e o adiamento da eleição presidencial para depois da promulgação de uma nova Carta, a direção do PCB dava a seguinte explicação:
O governo que temos é um governo de fato, e qualquer eleição presidencial enquanto estiver em vigor a Carta de 1937, inaceitável para qualquer patriota consciente, nada mais significa do que a simples mudança de homens no poder, a substituição de um governo de fato por outro governo de fato, igualmente armado dos poderes vastos e arbitrários que confere ao Executivo a referida Carta. (PRESTES, s/d, p.156)
As crescentes ameaças à deposição Vargas eram reveladoras da preocupação das forças de direita no país e do governo dos EUA com o avanço do movimento popular no Brasil e, em particular, com o PCB, atuando legalmente. Diante disso, durante o mês de outubro de 1945, os comunistas intensificaram, as denúncias do golpe em preparação. Prestes declarava: “O Partido Comunista está realmente decidido a defender o governo contra quaisquer perturbações, e insistiremos na campanha da Constituinte, esperando que, dentro de poucos dias, o sr. Getúlio Vargas satisfaça a vontade do povo”.2
A consulta aos documentos da época revela que em momento nenhum o PCB ou Prestes defenderam a palavra de ordem “Constituinte com Getúlio”, bandeira dos queremistas que, com o beneplácito e o incentivo do próprio Vargas, batiam-se por seu continuísmo. Os dirigentes comunistas jamais defenderam a continuidade de Vargas no poder. Pelo contrário, lutaram por eleições presidenciais efetivamente democráticas, entendendo que, para tal, era necessário que esse pleito se realizasse numa nova situação institucional, livre do autoritarismo da Carta estado-novista de 1937.
Para o PCB, apoiar Vargas, exigindo concomitantemente a convocação da Assembleia Constituinte, era o meio de evitar o golpe das forças mais conservadoras – aquelas que desejavam impedir a aproximação de Getúlio com as massas e deter o processo de democratização por ele promovido, apesar das vacilações e das limitações evidenciadas. Para os comunistas, tratava-se de dar sustentação ao governo existente, que vinha tomando medidas de “abertura” do regime e pressioná-lo no sentido da realização de eleições livres para a Constituinte, em que fosse elaborada e promulgada uma nova Lei Magna, representativa da correlação de forças presente no país. Dessa forma, o presidente da República a ser eleito governaria respeitando os preceitos de uma Constituição democrática, expressão da vontade nacional.
Em artigo publicado em setembro de 1945, Maurício Grabois, futuro líder da bancada comunista na Câmara Federal, escrevia: “Nós, comunistas, não levantamos a bandeira da Constituinte com Getúlio Vargas. Levantamos a bandeira da Constituinte. Constituinte com Vargas é a palavra de ordem de uma outra organização, o ‘Queremismo’”.3
Alguns autores4 não só afirmam que “foi de autoria dos comunistas a ideia de ‘Constituinte com Getúlio’”, como nomeiam eventos públicos em que Prestes teria defendido essa consigna, citando, por exemplo, o comício do PCB realizado em Belo Horizonte, em 14 de outubro de 1945. Entretanto, a consulta aos discursos pronunciados por Prestes e por outras lideranças comunistas nessa ocasião revela que foi feita a defesa de uma Assembleia Constituinte soberana e não há referências à tese queremista.5
Se os documentos da época são reveladores tanto no que diz respeito às posições do movimento queremista quanto às do PCB e de Luiz Carlos Prestes, o que é apresentado sobre essa temática em numerosos textos historiográficos, memorialísticos, biográficos, sociológicos e de ciência política? Como estão refletidos nessas obras os posicionamentos assumidos em 1945 pelas forças políticas em questão?
Os comunistas e o “queremismo” em textos de historiadores, sociólogos e cientistas sociais
Em O livro negro do comunismo no Brasil, obra declaradamente anticomunista, inspirada em sua congênere Livro negro do comunismo, publicada em 1997 na França, afirma-se que Prestes teria defendido “Constituinte com Getúlio”, aproximando-se do queremismo (MARQUES, 2019, p. 262, 265). Em livro também assumidamente anticomunista, Comunismo e stalinismo no Brasil, repete-se que o queremismo contou com o apoio do PCB (OLIVEIRA, 2017, p. 146). Sérgio Corrêa Costa, diplomata brasileiro que serviu em Buenos Aires no final da 2ª Guerra Mundial, no livro Crônica de uma guerra secreta, escreve: “[…] Os comunistas – Luiz Carlos Prestes à frente – lançam o chamado ‘queremismo’, com o slogan ‘Queremos Getúlio’” (COSTA, 2004, p.36).
Em Brasil: uma biografia, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, após acusarem Prestes de deixar os princípios de lado, apoiando “o ditador que havia extraditado sua mulher para a Alemanha nazista”, ademais de outras diatribes, afirmam que o queremismo “passou a contar com a adesão de Prestes e dos comunistas, sempre buscando se posicionar mais próximo de onde o vento soprava” (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 389, 391).
Em O golpe silencioso, obra em que é abordada a implantação do Estado Novo no Brasil, está registrado um suposto apoio de Prestes ao queremismo, insinuando-se que isso teria sido feito “em busca da legalização do PCB” (CAMARGO, 1989, p. 247).
Autores como Francisco Weffort, Ângela de C. Gomes, Leôncio M. Rodrigues, Maria Celina D’Araújo repetem esse suposto apoio do PCB e de Prestes ao queremismo (WEFFORT, 1978, p. 24, n.5; GOMES, 2007, p. 60; RODRIGUES, 1981, p. 409; D’ARAÚJO, 1996, p. 47; 1997, p. 31).
Maria do Carmo Campello de Souza escreveu que, em outubro de 1945, Prestes “somava forças aos comícios queremistas” (SOUZA, 1976, p. 113), e Paulo Brandi afirma um suposto queremismo do PCB, de acordo com o qual a campanha “Constituinte com Getúlio” teria sido “apoiada nos comunistas” (BRANDI, 1983, p. 188). Da mesma forma, Lucília de A. N. Delgado, Maria Victoria Benevides, José Murillo de Carvalho, Jorge Ferreira, Vamireh Chacon repetem a tese hoje consagrada da participação do PCB e de Prestes no movimento queremista (DELGADO, 1989, p. 29, 42, 62; BENEVIDES, 1981, p. 54; 1989, p. 32, 121; CARVALHO, 1999, p. 73; FERREIRA, 2003, p. 24; CHACON, 1981, p. 144).
Valentina da Rocha Lima, organizadora da obra Getúlio – uma história oral, coletânea de depoimentos de políticos contemporâneos de Vargas, reproduz a fala do “ex-tenente” Augusto do Amaral Peixoto, em que este se refere a um suposto lançamento da campanha do queremismo pelo PCB e pelo próprio Prestes, junto com “trabalhistas intransigentes”, apresentando a consigna de “Constituinte com Getúlio”; afirma ainda que o PCB “veio espontaneamente à praça pública chefiando o queremismo”. Hugo de Faria, outro político varguista, confirma a participação comunista no queremismo (LIMA, 1986, p.157). Na mesma obra de Lima, no depoimento de Hugo Borghi, a liderança máxima do queremismo, encontramos o desmentido da consagrada tese da participação comunista nesse movimento: “Os comunistas, diretamente, não deram apoio ao queremismo. Pelo menos não senti nenhum apoio comunista ao movimento queremista” (LIMA, 1986, p. 156).
Alguns autores estrangeiros, como Thomas Skidmore e Daniel Pécaut reafirmam a suposta participação dos comunistas no queremismo (SKIDMORE, 1996, p. 75, 88; PÉCAUT, 1990, p. 94, 144), mas J.W.F. Dulles reconhece que “Prestes e o PCB queriam que o povo apenas elegesse uma assembleia nacional constituinte” (DULLES, 1985, p. 272).
Edgard Carone, autor conhecido pela destacada contribuição ao registro da História do Brasil republicano, em várias de suas obras, afirma terem os “queremistas” o apoio dos comunistas, referindo-se a programas supostamente semelhantes de ambos os movimentos e a “ações paralelas dos queremistas e dos comunistas”. Destaca que os comunistas teriam adotado o lema “Constituinte com Getúlio” (CARONE, 1977, p. 335, 336, 337; 1976, p. 132; 1985 [março], p. 335; 1985 [junho], p. 10, 14; 1982, p. 5).
Moniz Bandeira, historiador progressista, com perfil de esquerda, registra em suas obras a tese do suposto apoio comunista à consigna “Constituinte com Getúlio” ou, em outras palavras, “Constituinte sob a égide de Vargas” (BANDEIRA, 1978, p.301; 1979, p. 33; 2010, p. 104-5).
Outros autores, considerados mais ou menos próximos à esquerda, adotaram a tese da adesão dos comunistas ao queremismo. É o caso de Manoel Maurício de Albuquerque (ALBUQUERQUE, 1981, p. 606), Ricardo Maranhão (MARANHÃO, 1979, p. 33, 36, 60), Arnaldo Spindel (SPINDEL, 1980, p. 50), Eliezer Pacheco (PACHECO, 1984, p. 191), Paulo Ribeiro da Cunha (CUNHA, 2002, p. 211), Hélio da Costa (COSTA, 1999, p. 101), Daniel Aarão Reis (REIS, 2005, p. 176), Alexandre Fortes (FORTES, 2004, p. 377-8). Este último escreve que o PCB apoiou o movimento queremista “buscando transformar o lema Queremos Getúlio! em algo mais complexo Queremos Constituinte com Getúlio!” (FORTES, 2004, p. 377-8).
Paulo Sérgio Pinheiro, conhecido cientista político, autor de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935, obra considerada por Michael Hall a primeira tentativa de situar, “na historiografia brasileira, as vicissitudes do movimento comunista no contexto dos desenvolvimentos internacionais e em relação à tortuosa história da Internacional Comunista”, também afirma que Prestes e os comunistas teriam apoiado o queremismo (PINHEIRO, 1991, p. 222 e orelha).
John D. French, historiador brasileiro, radicado nos EUA, e estudioso do movimento operário brasileiro, é um dos raros autores que reconhece a diferença entre as consignas dos queremistas e dos comunistas (FRENCH, 1995, p. 96), esclarecendo que “um exame da imprensa e dos relatórios comunistas confirma a insistência de Prestes de que ‘Queremos uma Assembleia Constituinte com Getúlio’ jamais foi um slogan oficial do partido em 1945’” (FRENCH, 1995, p. 300, n. 64). French cita, por exemplo entrevista concedida por Prestes a Robert Alexander, em 27 de agosto de 1945, na qual o secretário-geral do PCB “negou ter-se encontrado ou entrado em contato com Vargas em 1945” (FRENCH, 1995, p. 300, n. 68). Assim, tratava-se de “políticas paralelas” entre o PTB e o PCB (FRENCH, 1995, p. 300, n. 68).
French entendeu que, para Prestes, o caminho a percorrer em 1945 consistia na “eliminação da Constituição de 1937 e na instituição de uma Assembleia Constituinte livremente eleita” (FRENCH, 1995, p. 111), acrescentando que não houve qualquer encontro pessoal entre Prestes e Vargas, mas uma aliança de forças “conduzida à distância por meio de intermediários”, sendo que “a relação implicava ação paralela mais do que acordos formais negociados” (FRENCH, 1995, p. 112). French registra que “nenhum comunista falou em qualquer comício getulista, bem como os líderes do PTB não apareceram em funções e eventos de massa do PCB”, embora nas manifestações queremistas houvesse a presença de operários getulistas e comunistas (FRENCH, 1995, p. 112).
Os comunistas e o “queremismo” em textos memorialísticos e biográficos
A consulta a diversas obras memorialísticas e biográficas é reveladora da adesão de muitos dos seus autores à tese da participação dos comunistas no movimento queremista de 1945. Afonso Arinos de Melo Franco, conhecido político liberal originário de importante família oligárquica de Minas Gerais, autor de vasta obra memorialística, escreveu que os comunistas estavam “dentro da onda queremista”, postulando o continuísmo de Vargas. Assinala que “a manobra comunista tornou-se patente quando os seus porta-vozes assumiram a responsabilidade do movimento ‘Constituinte com Vargas’”, assinalando o que ele denomina o “conúbio Prestes-Vargas (espantosa aproximação de vítima e algoz sobre o cadáver de uma mulher […]” (FRANCO, 2018, p. 504).
Também Carlos Lacerda, desde o final dos anos 1930, um dos líderes das forças de direita no Brasil e, a partir de 1945, importante liderança da UDN (União Democrática Nacional), chamou o apoio de Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas de “nojo” e “horror”. Em nota de pé de página do seu livro memorialístico, Claudio Lacerda, seu sobrinho e organizador da obra, sem maiores explicações, ressalta o suposto apoio de Prestes ao queremismo (LACERDA, 1987, p. 51, 57).
Roberto Campos, ex-ministro da ditadura implantada em 1964, conhecido economista liberal, defensor do sistema capitalista e inimigo declarado do socialismo e do comunismo, em A lanterna na popa, obra memorialística, entre inúmeras acusações lançadas contra Prestes e os comunistas, afirma que o dirigente comunista, em 1945, teria se reconciliado com Vargas e aderido ao queremismo (CAMPOS, 1994, p. 1127).
Alzira Alves de Abreu e Alan Carneiro, no verbete dedicado a Luiz Carlos Prestes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, obra cuja segunda edição é de 2001, insinuam um suposto apoio de Prestes ao queremismo, pois chegara “até mesmo a admitir a possibilidade de adiamento das eleições presidenciais”, embora reconheçam que não ocorrera “uma atuação conjunta entre comunistas e ‘queremistas’” (ABREU; CARNEIRO, 2001, p. 4779).
Leonêncio Nossa, em obra biográfica de Roberto Marinho, o poderoso proprietário do “Grupo Globo”, escreve que Luiz Carlos Prestes apoiou o queremismo e “chegou a subir no palanque com Vargas”,6 como se “subir no mesmo palanque” significasse apoio a esse movimento (NOSSA, 2019, p. 155).
Flávia Salles Ferro, cuja tese de doutorado aborda a trajetória política de Eduardo Gomes – o “ex-tenente” que se tornou o candidato derrotado da UDN nas eleições presidenciais de dezembro de 1945 –, afirma que o PCB teria participado do queremismo, manifestando “seu apoio à continuidade de Getúlio Vargas no poder”. A autora insinua que os comunistas teriam a mesma posição dos queremistas (FERRO, 2020, p. 100).
Em biografia do político San Thiago Dantas, ex-chanceler e ministro da Fazenda do governo de João Goulart, Pedro Dutra repete que o queremismo fora apoiado pelos comunistas, destacando um suposto “apoio enérgico dos comunistas” que “engrossou a campanha ‘Constituinte com Getúlio’” (DUTRA, 2014, p. 483, 488, 493),
Em obra biográfica de Bilac Pinto, conhecido político mineiro da UDN, Murilo Badaró, seu autor, também udenista de Minas Gerais – ambos anticomunistas declarados –, escreve que “o combatido e polêmico Luiz Carlos Prestes” teria aderido ao queremismo, lançando contra o dirigente comunista a acusação mentirosa de ter visitado o Catete para “um encontro com Vargas, o mesmo que havia feito exilar sua mulher Olga Benario […]” (BADARÓ, 2010, p. 88).
Marco Antônio Carvalho, biógrafo do jornalista e famoso cronista Rubem Braga, regista que era difícil para seu biografado
captar a lógica de Prestes e dos comunistas: depois de anos de prisão e morte da própria mulher, depois da tortura e do assassinato de companheiros do partido, o líder comunista afirmaria que, naquele momento, o melhor para a esquerda seria apoiar o próprio Vargas nas eleições presidenciais que estavam marcadas para o final do ano (CARVALHO, 2013, p. 31).7
Na verdade, estamos diante de uma deturpação grosseira da posição de Prestes e do PCB, contrários à realização de eleições presidenciais conjuntamente com o pleito para a Assembleia Constituinte.
Lira Neto, no 2º volume de sua biografia de Getúlio Vargas, afirma que Luiz Carlos Prestes, Hugo Borghi e um dos fundadores do PTB, José Segadas Viana, teriam convocado o povo para concentração pública conjunta de comunistas, queremistas e trabalhistas a favor de Vargas (NETO, 2013, p.478). No 3º volume da mesma obra, Lira Neto refere-se a uma suposta aproximação realizada pelos comunistas do movimento queremista (NETO, 2014, p, 135). O mesmo autor, em obra biográfica de Castello Branco, reafirma o apoio dos comunistas ao queremismo, movimento que, em suas palavras, “sob o bordão de ‘Queremos Getúlio’, pregava a continuidade do ditador para mais um mandato presidencial” (NETO, 2019, p. 164).
Em sua biografia de Getúlio Vargas, lançada em 1967, John W. F. Dulles, diferentemente do que escreveria em 1985, em O comunismo no Brasil (1935-1945),8 afirmava que
os ‘queremistas’ eram membros do PTB ou do Partido Comunista, que manifestavam seu desapreço pelos candidatos militares com outro ‘slogan’: ‘Constituinte com Getúlio’. A ideia era adiar as eleições presidenciais, e reunir uma assembleia constituinte ainda sob o Governo de Getúlio Vargas” (DULLES, 1967, p. 284).
Dessa forma, equiparavam-se as posições dos queremistas às dos comunistas, falsificando os acontecimentos históricos ocorridos durante o ano de 1945.
Os comunistas e o “queremismo” em textos de autores próximos ou comprometidos com as esquerdas
Ex-dirigentes e/ou militantes do PCB e de outras organizações congêneres, assim como autores próximos ou comprometidos com as esquerdas, também contribuíram para a consagração da tese da suposta aliança entre comunistas e queremistas em 1945.
O ilustre historiador Caio Prado Júnior, militante do PCB, assim como Heitor Ferreira Lima e outros intelectuais ligados ao partido na época, eram contrários a qualquer aliança com Vargas, considerando necessário apoiar a candidatura oposicionista do brigadeiro Eduardo Gomes e apostando nas eleições presidenciais convocadas para 2 de dezembro de 1945. Para esse grupo de intelectuais, a eleição do brigadeiro seria o meio possível de derrotar, naquele contexto, o Estado Novo. Ponto de vista que desconsiderava a manobra golpista conservadora das forças oposicionistas agrupadas em torno da candidatura udenista. Caio Prado Jr. e seus correligionários não entenderam que o Estado Novo estava derrotado, pois mudanças consideráveis haviam ocorrido com as medidas liberalizantes adotadas por Vargas. A candidatura oposicionista visava a reverter tal processo de democratização, cujo avanço se dera com “a ruptura na prática de toda a legislação reacionária que havia tantos anos vinha tolhendo as mais elementares liberdades civis”.9
Em seus diários políticos – mantidos inéditos até poucos anos atrás –, Caio Prado Jr. reconheceria que Prestes e a direção do PCB tinham razão quando defendiam o adiamento das eleições presidenciais para depois da Constituinte:
A ideia fundamental dele [de Prestes] é acertada. De fato, para nada serve uma substituição de presidente dentro dos quadros da Constituição de 1937. E a reforma desta, processada regularmente, é quase impossível. Nessas condições, o ideal seria mesmo a convocação de uma Assembleia. (IUMATTI, 1998, p. 101)
O historiador paulista argumentava, contudo, que, “na altura em que estão os acontecimentos, é impossível desprezar o problema da sucessão” (IUMATTI, 1998, p. 101), pois “a tese de Prestes” lhe parecia “abstrata e teórica”, na medida em que, segundo o autor do referido diário, a tese da Constituinte não levava em conta “o momento psicológico, sobretudo a impressão que causa sobre elementos democráticos, mas não comunistas, a ideia de adiamento das eleições presidenciais, que para eles é e será sempre tida como manobra getulista” (IUMATTI, 1998, p. 102).
O erro político de avaliação desse grupo de intelectuais foi não perceber que Vargas contava com considerável apoio popular, o que lhe permitiu – mesmo após sua deposição pelo golpe de 29 de outubro de 1945 – eleger seu sucessor, o general Dutra, derrotando a candidatura supostamente democrática do brigadeiro (CARONE, 1985, p. 15). Anos mais tarde, Caio Prado Jr. reconheceria o erro do grupo de que fizera parte:
É difícil dar lições à História e saber o que teria acontecido se tivéssemos agido de forma diferente. Reconheço, no entanto, que minha posição era errada, que meu plano de frente única não era correto. Essa frente que acabou dando nascimento à UDN […]. Enfim, minha ideia era fazer um movimento democrático e popular, e me iludi com os “democratas” da UDN.10
Prestes e os comunistas defenderam o adiamento do pleito presidencial para depois da eleição da Constituinte e da promulgação de uma Constituição democrática, o que não significava a eleição de Vargas para presidente da República. Essa posição os distinguia do movimento queremista, empenhado na permanência de Vargas no poder.
Heitor Ferreira Lima, ex-dirigente do PCB, que fizera parte do grupo de intelectuais articulados com Caio Prado Jr. em 1945, anos mais tarde, em livro de memórias, criticaria Luiz Carlos Prestes por ter supostamente apoiado o movimento favorável à “Constituinte com Getúlio” (LIMA, 1982, p. 275).
Leôncio Basbaum, também ex-dirigente do PCB, em suas memórias, embora reconheça que Prestes condenara a “linha de apoio incondicional a Getúlio” (BASBAUM, 1978, p. 189), aprovada pelo partido na Conferência da Mantiqueira, em 1943, escreve que os comunistas defendiam “uma Constituinte com Getúlio” (BASBAUM, 1978, p. 193).
Moisés Vinhas, outro ex-militante e ex-dirigente do PCB, afirma que
os comunistas apoiaram decididamente Getúlio Vargas e saíram às ruas para lutar pela ‘Constituinte com Getúlio’ ao lado dos ‘queremistas’ (como eram chamados os partidários de Vargas, em decorrência do slogan ‘queremos Getúlio’, utilizado na campanha) (VINHAS, 1982, p.86).
Verificamos que, nas opiniões desses ex-militantes e ex-dirigentes do PCB, evidencia-se a incompreensão da tática política adotada pela direção do partido e por Luiz Carlos Prestes, centrada na eleição da Constituinte e no adiamento das eleições presidenciais; não na manutenção de Vargas no poder, mas contra o golpe reacionário articulado pela oposição junto com setores militares e do imperialismo estadunidense.
João Quartim Moraes, cientista político de esquerda, ao escrever sobre as “concepções comunistas no Brasil democrático”, no período 1944-1954, destaca a lucidez de Luiz Carlos Prestes em 1945, ao denunciar e prever o perigo de golpe reacionário e defender a democracia no programa de União Nacional adotado pelo PCB (MORAES, 1998, p. 166, 168). O autor aprova a justeza da defesa da Constituinte em 1945 pelos comunistas, embora se refira erroneamente a “Constituinte com Getúlio” como consigna do PCB, considerando, entretanto, que essa palavra de ordem fora “deturpada pelos plumitivos liberais, que solertemente acusaram o PCB de conluio com o regime moribundo” (MORAES, 1998, p. 171).
Dulce Pandolfi, historiadora considerada de esquerda, em seu livro sobre o PCB, ao confundir as posições dos comunistas com as dos queremistas, afirma que “com o apoio dos comunistas, o movimento queremista ganhou as ruas” (PANDOLFI, 1995, p. 141, 166), contribuindo desta forma para a manutenção de uma falsa visão dos acontecimentos da época.
Pedro Estevam da Rocha Pomar, outro historiador de esquerda, escreve que o PCB aderiu ao queremismo (POMAR, 2002, p. 29), adotando “a bandeira ‘Constituinte com Getúlio’ como contraponto ao slogan udenista ‘Todo poder ao Judiciário’” (POMAR, 2002, p. 36), embora explique, com base na obra de Carone, que os comunistas pretendiam, antes do pleito presidencial, “a eleição de uma Constituinte capaz de dar ao país uma nova base legal” (POMAR, 2002, p. 78).
Hilcar Leite, ex-militante trotskista, afirma que o Partido Comunista apoiou o movimento queremista, que teria contado com o comparecimento de militantes comunistas em suas manifestações.11 O Partido Comunista, segundo Leite, adotara a palavra de ordem “Constituinte com Getúlio” (GOMES, 1988, p. 193, 191).
José Carlos Ruy, historiador e dirigente do PCdoB, escreve que no comício do Pacaembu, em São Paulo, em 15 de julho de 1945, Prestes teria lançado a campanha “Constituinte com Getúlio”, afirmação que não é confirmada no texto do referido discurso12 (RUY, 2016, p. 61, 62). O autor incorre no erro de confundir a proposta do PCB, de luta por uma Constituinte livre e democrática com a permanência de Vargas no poder até a realização das eleições e a instalação da Constituinte, com o propósito do queremismo de manter Vargas na presidência mesmo após a posse dos deputados constituintes (RUY, 2016, p.62, 64).
Vito Giannotti, atuante militante do movimento operário, escreve em seu livro História das lutas dos trabalhadores no Brasil que o PTB teria se aliado aos comunistas para juntos lançarem o movimento queremista, afirmando que defendiam “Constituinte com Getúlio” e “Queremos Getúlio” (GIANNOTTI, 2007, p. 127).
Dênis de Moraes, biógrafo do escritor comunista Graciliano Ramos, em seu livro O Velho Graça, comete o erro de atribuir a Prestes, como tantos outros autores, o apoio ao queremismo (MORAES, 2012, p. 205).
Estudiosos do movimento operário brasileiro, identificados com posições de esquerda, Fernando Teixeira da Silva e Marco Aurélio Santana repetem a tese do apoio comunista ao queremismo (TEIXEIRA DA SILVA; SANTANA, 2007, p. 106, 251-52, 255; SANTANA, 2021, p. 19).
Também M. Alice Rezende de Carvalho, autora identificada com os chamados “renovadores” do PCB, que atuaram principalmente na virada dos anos 1970 para 1980, escreve que, em 1945, Prestes e Getúlio estiveram junto no movimento queremista (CARVALHO, 2007, p. 268).
Algumas considerações finais
As evidências apresentadas são reveladoras da função exercida pela História Oficial na consagração de falsificações históricas de acordo com os interesses dos setores dominantes numa sociedade dividida em classes antagônicas.
Nos exemplos analisados, referentes aos acontecimentos políticos ocorridos no Brasil durante o ano de 1945, as forças de direita no país, secundadas pelos representantes do governo dos EUA, apelaram, mais uma vez, como já era costume, à propaganda anticomunista para tentar deter as medidas democratizantes em curso sob a direção de Getúlio Vargas.
Entre as formas encontradas para estigmatizar Prestes e os comunistas temos a acusação de um suposto conluio do líder comunista com Vargas, o carrasco de sua mulher, responsável pela sua extradição para morrer num campo de concentração da Alemanha nazista. Um dos expedientes usados na tentativa de revelar esse conluio foi a difusão de uma falsificação histórica: a suposta participação dos comunistas na campanha queremista e a consequente suposta adesão à consigna de “Constituinte com Getúlio”.
O discurso de numerosos políticos liberais da época, capitaneados por lideranças da UDN como Carlos Lacerda e o próprio brigadeiro Eduardo Gomes, com a ampla utilização da imprensa escrita e falada, levou à consagração como verdadeira da acusação lançada contra Prestes e os comunistas de supostamente estarem empenhados na manutenção de Vargas no poder inclusive após a eleição de uma Assembleia Constituinte. Para os comunistas, entretanto, essa Constituinte deveria ser soberana, com a suspensão da vigência da sua congênere fascista de 1937, assumindo dessa forma a direção do país até a promulgação de nova Carta Magna, na vigência da qual fosse então realizado pleito presidencial efetivamente democrático.
Como sempre, as versões historiográficas consagradas pela História Oficial, elaborada pelos “intelectuais orgânicos” (segundo Gramsci) a serviço dos interesses dominantes, adquiriram foros de verdade e passaram a ser transmitidas de geração em geração, exercendo influência inclusive em intelectuais progressistas e/ou de esquerda e na própria militância de partidos de esquerda.
Revelar as falsificações difundidas pela História Oficial é parte constitutiva da luta ideológica permanente que devemos conduzir contra a dominação burguesa nas sociedades capitalistas. Dominação que hoje é feita em grande medida através dos poderosos meios de comunicação de que dispõem os donos do poder.
Notas
1 Cf. Tribuna Popular, Rio de Janeiro, abr.-dez. 1945.
2 “Entrevista de L.C. Prestes”, Folha da Manhã, São Paulo, 23 out. 1945, citado em CARONE (1977, p.337).
3 GRABOIS, Maurício. Jornal Diretrizes: Política, Economia e Cultura, Rio de Janeiro, 21 set. 1945.
4 Por exemplo, MACEDO (2013, p. 98, 102, 125).
5 Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 16 out. 1945.
6 Prestes (pelo PCB) e Vargas (pelo PTB) estiveram juntos num mesmo palanque uma única vez, em 1947, em comício realizado em SP em prol da candidatura a vice-governador do estado do político Cirilo Jr.
7 Grifos meus.
8 Acima citado.
9 PRESTES, Luiz Carlos, “Organizar o povo para a democracia” (discurso proferido no estádio do Pacaembu, São Paulo, jul. 1945), em (PRESTES, s/d, p. 105).
10 PRADO JR, Caio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 jun. 1978, p. 14, citado em GIOVANNETTI NETO (1986, p. 43).
11 O possível e eventual comparecimento de militantes comunistas nas manifestações queremistas não significa que essa fosse a orientação oficial do PCB.
12 PRESTES, L.C., “Organizar o povo para a democracia” (Discurso pronunciado no Estádio do Pacaembu, em julho de 1945) em (PRESTES, s/d, p. 95-119).
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Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.
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Anita Leocadia Benario Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres da rua Barminstrasse, em Berlim, na Alemanha Nazista, é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benario Prestes e Luiz Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
O artigo é muito oportuno. Prestes defendia a Constituinte antes das eleições. Venceu a versão de que ele queria a manutenção do ditador. Temo que nem Hobsbawm dê jeito.
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