Mamãe, mamãe, não chore: homenagem a Gal Costa
Urariano Mota relembra trecho de "Soledad no Recife" em homenagem a Gal Costa.
Por Urariano Mota
A partir desta semana, a coluna será amparada em textos que publiquei em livros.
Para os meus dois leitores (eu e o editor), isso pode ser um conforto. Os textos que passo a republicar são menos ruins que os improvisos. Mas perdem, é claro, sua atualidade. Entendam, por favor. Tenho que começar um quem sabe, talvez, novo livro, que me exige todo tempo de angústia e trabalho. Se houver um terceiro leitor, peço a compreensão.
De Soledad no Recife copio trechos onde canta Gal Costa:
“ ‘Mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo’, esse refrão, cantado por Gal, talvez não estivesse mais a tocar na vitrola. Mas não posso me recordar desse dia sem que essa música não venha a meus ouvidos, deles não saia, como se estivesse a se repetir, bater e afundar no sulco ferido do disco. “Mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu fui embora…”.
– Sei, eu lhe disse. É muito bom. Muito bom mesmo.
É claro que a minha voz e a minha face não expressavam tamanha alegria. Um gelo escorregava pela espinha irreprimível. O que lembro, se me consigo ver, é que as minhas sobrancelhas se contraíam, a testa se enrugava, porque grande era o meu mal-estar. “Mamãe, mamãe, não chora, eu quero é isso mesmo aqui…”. Por isso consegui dizer, em uma força intestina, de mola que volta e procura ponto de repouso:
– Mas o que fazer com isso agora?
– Hem?
A minha pergunta, do engenho do desespero, era de fato inesperada. Júlio parou, fez silêncio, uma coisa muito rara. E por isso voltei:
– O que me diz? E depois de pegar as armas?
– Hem? Eu não havia pensado nisso. É interessante…
Soledad volta com uma garrafa e copos. A voz de Gal Costa toca na sala.
Confesso estar enfeitiçado. Se a beleza clara, afirmativa, de uma mulher é invencível para quem se dobra ao calor de seus olhos, Soledad acrescenta um tom irresistível de simpatia que dirige a todos os objetos vivos, andantes ou inanimados, mas que eu, como qualquer homem, interpreto como sendo de interesse em mim, somente para mim. Deve ser algo alucinatório, alguma ayahuasca posta na bebida, não sei, mas sinto que ao sorrir ela me pisca um olho com intenção, e eu, como um gato tenho ímpetos de lhe pular no colo, no seu regaço. Deve ser uma ayahuasca. Deve ser essa voz de Gal a cantar “coisa linda nesse mundo é sair por um segundo e te encontrar por aí….”. Deve ser o perfume dos jasmins lá fora, que estalam aqui na sala, como se pétalas, pelo cheiro, fizessem ruído. Um homem é este feixe de nervos, tensos, que clamam uma explosão, quem sabe, uma linha, um grito, um gozo que nem precisa ser na cama, Soledad, alguma coisa que deixe pelo menos tocar-te nas mãos. Esse cara que fala a Júlio, a nós, deve se mesmo um bruxo. Eu sei que ele me percebe, eu sei que ele me varre com os olhos amendoados, e por isso me defendo e me vingo, a perseguir esta sua implacável figura. Retiro Soledad e me concentro nele, que fala:
– Agora é a hora, entende? Temos de conectar os quadros treinados em Cuba com a vanguarda do Nordeste. Entende?…
“Mamãe, mamãe, não chore. A vida é assim mesmo, eu fui embora…” tocava na radiola da casa dos padres. “Eu tenho um beijo preso na garganta…”. Então Soledad, a viejita, viejita desde os 5 anos de idade, teve um estremeço, um estremeço como as mulheres possuídas por santos nos terreiros. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos…”. E por isso descalçou as sandálias, e se pôs a dançar, a bailar, sozinha, ela e seu fogo presente no útero. Abriu os braços, e com toques graciosos nas mãos, com os pezinhos a bater com o calcanhar o ritmo. A saia de estampas de flores ondulou nos quartos largos de mulher parideira. “Mamãe, mamãe não chore, eu nunca mais vou voltar por aí”. Os padres, as freiras, abriram uma roda. Soledad Barret Viedma disso não se deu conta. “Eu tenho um jeito de quem não se espanta”. Quem era essa Gal Costa que cantava tão bem para uma guerreira no desamparo? “Leia um romance. Leia ‘Elzira, a morta virgem’…”. Então ela, ela e o seu santo, ela e o seu útero, ela e aquele que jamais teria nome ficaram tontos. Ficaram tontos, mas não do girar. Ainda que girem, Soledad y la viejita eram aptas para girar enquanto bailavam. Ficaram tontas com uma súbita punção no fígado. Então ela se apoiou em um pezinho e parou, e desceu no chão. Cercam-na.
– O que foi? um dos padres lhe pergunta.
– O que se passa? Daniel a interroga.
– Nada, ela responde, e se põe sentada. Sem perceber, leva uma das mãos para o ventre, como uma criancinha ao apontar o dodói.
– Você bebeu? volta Daniel.
– Sim. Uma aguardente com mel, pesada, ela mente, e sorri.
– Sabes que não podes. Sabes que o teu organismo é frágil. Sabes … – Daniel lhe diz, pondo-lhe uma das mãos no ombro, enquanto os seus olhos correm a assistência. – Bem sabes… – continua com voz quente e audível.
Há nessa voz um quê de falso, Soledad percebe. Então ela recebe um novo estremeço e se põe em pé”.
Soledad no Recife, de Urariano Mota
O livro Soledad no Recife percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar. Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de candidatos a guerrilheiros, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se mais um extermínio do que um confronto armado. A trama real inspira o romance em que Urariano Mota – com a propriedade de que viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 – resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o país naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem volta ao passado.
Na TV Boitempo, Urariano Mota comenta a vida de Cabo Anselmo, agente duplo e delator responsável pela morte de militantes de esquerda durante a ditadura militar e fala sobre o seu livro Soledad no Recife:
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.
SOLEDAD BARRETT, PRESENTE!
JOSÉ MARIA BERGES FERREIRA, QUE MORA HOJE EM MONTEVIDÉU, ME ENVIA ESTA MENSAGEM NO FACEBOOK:
Olá meu amigo. No You Tube termino de assistir a sua matéria a respeito do fim terrível da Soledad Barret Viedma.
Confesso que fiquei chocado por essa história de horror. Não conheço palavras humanas que possam descrever pessoas abjetas como cabo Anselmo. Mas conheço esse local, o Cemiterio da Várzea da mesma época que aconteceu o enterramento clandestino de S.B.V.
— Em Janeiro de ’73 estaba de férias no Recife. Homiziado na casa do meu amigo Carlinhos, a r. Argemiro Rêgo Barros 205. Na
época eu tinha 18a. Na casa do lado tinha uma empregada, Eliane, que era uma mulata da minha idade, muito bonita por sinal. Na secuéncia começamos um namoro bem legal. Mas não é para lhe-falar da minha vida que eu lhe-escrevo. A Eliane era filha de santo no Candomblé e às vêzes fazia despachos no Cemiterio, ali na Várzea. Em fevereiro desse ano convidou-me para ir com ela. E fomos arriar um despacho num setor onde haviam muitos enterramentos anónimos.Tumbas sem Nome nem Cruz. Nas beiras dessa área cresciam uns pés de manga. A Eliane me disse que os corpos desde setor eram de pessoas que foram mortas pela polícia. E agora o sr. traz de.volta na memória uma lembrança que eu associei durante cincuenta años con uma história romántica. Que pequeno que é nosso mundo!
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