Vidas de Maria: reflexões sobre a exploração da mulher (trabalhadora) pernambucana

Pernambuco passará por um grande desafio: pautar conquistas populares e avançar frente a um governo de direita amarrado por vários compromissos com o fundamentalismo religioso, o fascismo e a grande burguesia do estado. Nesse desafio terá papel central um feminismo popular, antirracista e que consiga representar e pautar os interesses de todas as mulheres exploradas do nosso estado.

FOTO:  ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

Por Jones Manoel, Raline Almeida e Victória Pinheiro

No capitalismo, a condição de vida da mulher trabalhadora é de sofrimento constante e exploração. Se um grande revolucionário disse já que não “há capitalismo sem racismo”, o mesmo pode ser dito em relação ao machismo e o patriarcado. Não existe capitalismo sem a dominação da mulher. No Brasil, país da periferia do capitalismo, essas contradições são ainda mais expressivas. Temos uma população formada em sua maioria por mulheres, e essas são o principal alvo do desemprego, da fome, da negação de direitos, de diversas formas de violência etc.

Em Pernambuco, esse cenário se projeta e atinge particularidades de um estado localizado no nordeste do país, governado há quase 16 anos por um projeto político liderado pelo PSB sem compromisso com os direitos das mulheres e fiel ao neoliberalismo, que só fomenta a desigualdade social e fortalece o patriarcado. No segundo turno da eleição de 2022, marcando a derrota do PSB, tivemos duas mulheres disputando o cargo de governadora: Marília Arraes e Raquel Lyra. A despeito disso, o debate sobre a mulher trabalhadora não teve qualquer destaque durante a campanha. 

Sabemos que Raquel Lyra foi a vencedora da eleição. Nesse momento, buscando ajudar a pautar o debate e as lutas para esse 2023, é útil traçar um amplo diagnóstico sobre a situação da mulher pernambucana. Não esperamos que o governo de Raquel Lyra enfrente esses problemas. Esperamos, isso sim, contribuir na mobilização popular e no debate público para fortalecer as lutas dos movimentos feministas e populares.

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A própria ideia de uma secretaria voltada para política de gênero é recente. A Secretaria da Mulher só foi criada em 2007, ainda no formato de secretaria especial, sendo oficializada como Secretaria de Estado apenas em 2011. Seu objetivo, de acordo com o próprio site da Secretaria, é “formular, desenvolver, articular, coordenar, apoiar e monitorar políticas públicas para promover a melhoria das condições de vida das mulheres em Pernambuco” para “os segmentos da população feminina, em idade reprodutiva e madura, dos espaços urbanos e rurais”.

São definições extremamente limitadas para uma política de estado pensada para as mulheres. Limitar a qualificação de mulheres entre “idade reprodutiva e madura”, não citar mulheres trans e a particularidade das mulheres negras, e não apresentar nenhum desenvolvimento teórico e político baseado nos acúmulos de décadas dos movimentos feministas no país é um dos primeiros sintomas da fragilidade da política implantada pelo PSB.

Em termos orçamentários, temos hoje um relevante processo desfinanciamento da secretaria, o que implica diretamente na ausência de políticas públicas e formulações sobre as condições de vida das mulheres pernambucanas.

Podemos aferir que, nos últimos 4 anos, houve um aumento tímido no orçamento fixado para a Secretaria de Mulheres, no entanto, a porcentagem do valor executado vem diminuindo, de tal forma que o valor pago no ano de 2020 foi maior que o de 2021.

A situação é ainda mais dramática quando destrinchamos esses valores e observamos que praticamente todo o orçamento da Secretaria já está comprometido com o pagamento das despesas correntes, que estão relacionadas ao pagamento de pessoal.

Dessa forma, pelo menos desde 2018, quando o governo Paulo Câmara finalizou seu primeiro mandato e foi reeleito, até o ano de 2020, o orçamento para investimento não foi pago. Apenas em 2021 o investimento foi retomado, no entanto, o valor pago correspondeu a apenas 50% do total.

Além disso, a disposição do ínfimo investimento foi concentrada quase que inteiramente nas aplicações diretas, sobretudo na aquisição de equipamentos e materiais, como equipamentos de áudio, vídeo, foto, equipamentos de processamento de dados e veículos.

A violência como um problema crônico

Hoje o estado de Pernambuco conta com onze delegacias especializadas no atendimento à mulher. São unidades referentes à Polícia Civil com objetivo central de atender mulheres vítimas de violência doméstica e familiar; vinte e oito centros especializados de atendimento às mulheres, com foco no acolhimento de mulheres em situação de violência; e doze serviços de saúde especializados para o atendimento de mulheres e adolescentes em situação de violência sexual e doméstica.

Os números já demonstram uma cobertura ineficiente para um estado com as proporções de Pernambuco, especialmente quando a maioria dos serviços se concentra na região metropolitana do Recife. Por exemplo, as regiões do sertão do vale do São Francisco, Sertão Central, Sertão do Pajeú e Sertão do Moxotó contam com apenas um serviço de saúde, cada, para o atendimento de vítimas de violência.

Enquanto a cobertura é insuficiente, os números de violência contra a mulher crescem em todo o estado. Só em 2021, quase 41 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no estado, segundo dados da Secretaria de Defesa Social. O interior lidera os levantamentos todos os anos pelo menos desde 2012, com mais de 20 mil casos de violência doméstica registrados no interior do estado só em 2021, contra mais de 10 mil na região metropolitana e mais de 9 mil na capital.

De acordo com o levantamento do Observatório de Segurança, Pernambuco foi o segundo colocado, entre Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo, no número de feminicídios. O estudo revela que 90 mulheres foram mortas por questões de gênero entre junho de 2019 e maio de 2020 no estado, que fica atrás apenas de São Paulo, que registrou 175 casos no período. Rio de Janeiro, com 56 mortes, e Bahia, com 75, apesar de terem populações superiores, ficam atrás de Pernambuco.

Já em 2021, observou-se uma queda no número de homicídios totais e um aumento no número de feminicídios. Ao todo, foram 1940 vítimas de homicídio, o que representa um recuo de 15,1% quando comparado com 2020; no caminho contrário, os feminicídios cresceram 40%. No levantamento deste ano, de acordo com a Secretária de Defesa Social (SDS), já são mais de 5.400 casos de violência doméstica registrados.

A violência contra mulheres trans e travestis: um horror de todos os dias

É sintomático que um estado que foi governado por partidos que se apresentam enquanto esquerda seja recordista no assassinato de pessoas LGBTQIA+ em todo o país. De acordo com levantamento do Fórum Nacional de Segurança Pública (FBSP), num intervalo de dois anos, entre 2018 e 2020, o estado registrou uma média anual de 402 casos de lesões corporais dolosas, 34 homicídios dolosos e 30 estupros cometidos contra LGBTIs.

Só no ano de 2020, a Secretaria Estadual de Segurança Pública registrou 604 casos de lesão corporal dolosa (aumento de 78,7%, em comparação com 2019), 39 homicídios dolosos (aumento de 30%) e 47 estupros (aumento de 104,3%).

Esse cenário é ainda mais dramático quando olhando diretamente para a população T. Desde o ano passado o estado de Pernambuco enfrenta uma onda de atentados contra a vida de mulheres trans e travestis em todo o seu território. Em 2021 o Brasil foi, pelo 13º ano consecutivo, o país onde mais se mata pessoas trans. Pernambuco, por sua vez, foi o 5º estado com maior número de homicídios de pessoas trans, com 11 casos registrados.

Na metade de 2021, em menos de 20 dias, foram registrados quatro transfeminicídios. No dia 18 de junho, Kalyndra Selva foi encontrada morta com sinais de asfixia; poucos dias depois, em 24 de junho, Roberta Silva, que estava em situação de rua, foi queimada viva no Cais de Santa Rita, um dos principais terminais de ônibus da cidade, morrendo 15 dias depois em decorrência dos ferimentos; em 04 de julho Crismilly Pérola, cabeleireira, foi encontrada às margens do rio Capibaribe; dias depois de Crismilly, Fabiana foi vítima de um ataque transfóbico num bar em Santa Cruz do Capibaribe, interior do estado, onde foi morta.

Uma reportagem em parceria entre a Marco Zero Conteúdo e a Agência Diadorim apurou o esvaziamento orçamentário das políticas estaduais destinadas à população LGBTQIA+. Nacionalmente, Pernambuco é o estado que mais tem políticas e mecanismos de enfrentamento à LGBTfobia, no entanto, a realidade é que desde 2018 os orçamentos da gestão de Paulo Câmara (PSB) e Luciana Santos (PCdoB) para essas políticas são esvaziados ou contingenciados. Alguns exemplos citados pela matéria são a ação “Operacionalização e expansão da rede de apoio e atenção à população LGBT”, que teve corte de 100% em todos os anos, e o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que em 2019 recebeu R$ 21358, mas em 2018, 2020 e 2021, ficou com orçamento zerado.

A situação de desfinanciamento do CECH é dramática, uma vez que o Centro funciona como porta de entrada para um conjunto de políticas destinadas ao atendimento de pessoas LGBT, ou seja, uma porta de entrada para uma rede desumanizada e precarizada, que muitas vezes afasta essas pessoas ao invés de as aproximar. Em 2022, a situação não tem melhorado; pelo contrário, os assassinatos de mulheres trans e travestis não cessaram. Só nos primeiros quarenta e cinco dias do ano foram registrados quatro transfeminicídios, dos quais três aconteceram em apenas um final de semana.

A memória dessas mulheres vive apenas no seio do movimento trans do estado, uma vez que, passados alguns dias, já não se falava mais no assunto nos veículos de mídia do estado. É importante lembrar também que na ocasião do assassinato de Roberta, o prefeito da cidade do Recife, João Campos, prometeu a criação de um abrigo LGBTQIA+ para acolher pessoas em situação de vulnerabilidade.

Depois de muitos prazos ignorados pela prefeitura, houve a abertura de processo licitatório para seleção da empresa que seria responsável pela gestão do abrigo. A empresa selecionada foi o Instituto Ensinar de Desenvolvimento Social – IEDS, mantendo o processo de parcerias público-privadas em detrimento da garantia de concursos públicos, que nesse caso poderiam ter sido realizados com foco na própria população LGBT, garantindo trabalho estável com um plano de cargos e carreiras.

O desemprego com rosto de mulher

O trabalho é historicamente uma pauta cara às mulheres, uma vez que o processo histórico de inserção delas no mercado de trabalho foi marcado pelo preconceito de gênero e pelas duplas e triplas jornadas. De acordo com a pesquisa de estatísticas de gênero do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, as mulheres dedicam ao trabalho doméstico, em média, 21,4 horas semanais, contra 11 horas dos homens. Em Pernambuco esse cenário é ainda mais dramático, acima da média nacional: no estado, as mulheres despendem 22,3 horas para o trabalho doméstico contra 10,8 horas dos homens.

Desde o ano passado, Pernambuco é o estado líder em desemprego no país, atingindo a marca de quase 20% da população em idade laboral desempregada. Sabemos que a pandemia agravou esse cenário de forma brusca, mas é inegável que o desemprego hoje tem a cara das mulheres pernambucanas. Dos 5163 empregos formais perdidos em 2020, 99,5% foram de mulheres.

De acordo com dados da PNAD Contínua do IBGE, referente ao terceiro trimestre de 2021, o Brasil registrou um total de 46,4 milhões de mulheres com 14 anos ou mais na força de trabalho, das quais 39 milhões estavam ocupadas e 7,4 milhões desocupadas.

Segundo a pesquisa, Pernambuco contava com uma População em Idade Ativa (PIA) nessa mesma faixa etária de 4 milhões de mulheres, com uma taxa de participação de 44%, contra uma taxa de desocupação de 24,2%.

O polo do jeans

O polo do jeans abrange as cidades do agreste pernambucano, com maior ênfase nos municípios de Toritama, Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru. A região se desenvolveu concentrando atividades produtivas, comerciais e de serviços especializado na confecção de peças em jeans, sendo um dos maiores polos desse tipo de confecção no Brasil.

Com uma população estimada em 47088 pessoas, em que mais de 50% são mulheres, a cidade de Toritama é o principal centro dessa produção. No entanto, todo o desenvolvimento econômico na região não se reflete em avanço nas condições de trabalho, que são marcadas pela informalidade e subcontratação, utilizando do trabalho domiciliar e do pagamento por peça produzida.

Nessa lógica, a força de trabalho local é, sobretudo, informal, organizada em facções, pequenos empreendimentos constituídos principalmente no ambiente domiciliar, que são responsáveis por apenas uma etapa da produção. Estima-se que 30% dos residentes na região do Arranjo Produtivo Local (APL) Agreste estão em situação de pobreza ou extrema pobreza. Tamanha flexibilização e precarização das relações de trabalho implicam diretamente em jornadas de trabalho exaustivamente longas e baixíssima renda.

Com as mulheres ocupando a maioria dos postos de trabalho informais, enquanto os homens são maioria nos poucos trabalhos formais, a questão de gênero salta aos olhos nessa região do estado. Cerca de 70% das costureiras autônomas, que trabalham nas facções, ganham no máximo um salário mínimo, sendo que 38% dessas recebem apenas um quarto de salário. A jornada de trabalho exaustiva pode chegar a até 15 horas, misturando o trabalho da costura com os afazeres domésticos e o cuidado com crianças e idosos.

Devido à informalidade e a produção flexível, a renda dos trabalhadores é relativa, sendo determinada por uma série de fatores, como a extensão da jornada de trabalho, a habilidade na execução da atividade, a intensidade do trabalho, a época do ano e as condições de saúde dos trabalhadores.

Na maioria dos casos, essa renda é essencial para a manutenção de toda a família, de forma que a insuficiência dos rendimentos leva essas trabalhadoras a buscarem outras formas de complementar a renda. Exemplo disso, é que em 2018 mais de 134,7 mil pessoas dos municípios que compõem a APL eram beneficiárias do Programa Bolsa Família.

As condições em que o  trabalho é desempenhado são precárias, são locais com instalações elétricas expostas, sem iluminação, com acúmulo de poeira, máquinas de costura sem manutenção, móveis antigos e desconfortáveis, mercadorias acumuladas, quente e sem ventilação.

Com a indústria diluída no ambiente domiciliar, os impactos na vida das trabalhadoras são diversos: o espaço de trabalho se confunde com a rotina de cuidados com o lar, o local de descanso e de lazer de toda uma família. Essa confusão ainda acaba por onerar os demais familiares, que nos períodos de pico da produção são submetidos direta e indiretamente ao trabalho, inclusive crianças, que acabam sendo inseridas na cadeia produtiva desde cedo com as atividades menos complexas.

A saúde da mulher pernambucana

No texto “A disputa pelo orçamento público em Pernambuco (I)” nós iniciamos a discussão sobre as condições da saúde do estado de Pernambuco. Dentre outras coisas, apontamos como a atenção básica, segmento fundamental na promoção de saúde, prevenção e diagnóstico precoce de uma série de doenças, vem sendo desfinanciada em favor do modelo privatista de gestão do PSB que, ano após ano, injeta bilhões de reais nas Organizações Sociais de Saúde (OSSs).

Reflexo disso são as falhas nas principais políticas de saúde da mulher, que são as políticas de rastreio e prevenção de doenças de alta prevalência sobre a população feminina. Um exemplo disso é a política de rastreio do câncer do colo do útero, o terceiro tipo de câncer mais incidente sobre as mulheres brasileiras e segundo mais incidente sobre as mulheres nordestinas. Só para 2021, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) estimou 730 casos novos desse câncer no estado de Pernambuco.

Estamos falando de uma doença que, quando identificada em estágio inicial e seguida do tratamento adequado, tem altas chances de cura, mas que em nosso estado vitima pelo menos uma mulher por dia. No Brasil, existem diretrizes para o rastreamento da doença nas mulheres, que consiste na realização do exame citopatológico nas que possuem vida sexual ativa, a partir dos 25 anos de idade. A realização do exame a cada três anos permite a identificação precoce da doença e o encaminhamento para o tratamento necessário através de uma política extremamente barata.

Porém, mesmo com a alta incidência e mortalidade pela doença no estado, o governo atual ignora a saúde dessas pessoas, ao negar condições básicas para a realização do exame nas unidades de saúde, onde faltam instrumentos para isso, como o espéculo vaginal.

Em agosto do ano passado, o Marco Zero fez uma reportagem denunciando a falta de insumos na atenção básica. Naquele momento, já fazia mais de um ano que as Unidades de Saúde da Família (USF) não recebiam espéculos vaginais com regularidade.

A falta desse instrumento, extremamente barato, que pode ser comprado por valores em torno de R$1,00, implica não apenas na realização do exame de papanicolau, mas também na inserção do Dispositivo Intrauterino (DIU) – considerado hoje um dos melhores métodos contraceptivos e um método de contracepção de emergência dos mais eficazes – além de outros exames ginecológicos.

A reportagem da Marco Zero cita como exemplo o caso da USF Diógenes Ferreira Cavalcanti, em Nova Descoberta, que é responsável por prestar atendimento a uma população de 7 mil pessoas, mas chegou a receber apenas 24 espéculos, que deveriam ser divididos entre duas equipes de trabalho, para atender durante todo o mês. É importante frisar que se trata de um material descartável, portanto, só seria possível viabilizar o atendimento ginecológico, que necessitasse de um espéculo, de 24 pessoas no mês.

Existem ainda outros relatos mais dramáticos na cidade do Recife, onde supostamente há mais orçamento e estrutura: existem unidades de saúde completamente desprovidas de material e, as que o recebem devem trabalhar com um número irrisório de pacientes por mês. O caso da cidade do Recife nos faz questionar: se a capital do estado se encontra nessas condições, o que vem acontecendo nas cidades do interior?

Segundo os dados apresentados nos mapas da saúde, organizados pela Gerência Regional de Saúde (Geres), o indicador de cobertura do exame citopatológico avalia a razão de mulheres cadastradas, identificadas e vinculadas corretamente à equipe de Saúde da Família, com idade entre 25 a 64 anos que realizaram um procedimento de Coleta de Exame Citopatológico de colo uterino em até 3 anos. A meta estadual é de uma cobertura mínima de 42% da população feminina, acompanhando a meta nacional. A esmagadora maioria das cidades do estado está muito abaixo dessa meta, sobretudo nas regiões mais distantes da capital e no agreste pernambucano.

É o caso da III Geres, que compreende 22 municípios entre a zona da mata e agreste: a regional registrou um indicador abaixo de 15% nos terceiros quadrimestres de 2018 e 2019 e segundo quadrimestre de 2020.

Outro dado preocupante diz respeito à mortalidade materna, que é definida enquanto “morte de uma mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término da gestação, independente da duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém não devido a causas acidentais ou incidentais”, sendo definido ainda o conceito de morte materna tardia, referente a morte “decorrente de causa obstétrica mas ocorrida após os 42 dias e menos de um ano depois do parto”.

O Programa Mãe Coruja Pernambucana, política pública voltada para a saúde materno-infantil e para a redução dos índices de mortalidade materno-infantil, foi criado em outubro de 2007 e transformado em política pública do Estado de Pernambuco em 2009. O Programa é a principal estratégia do governo pernambucano para garantir atenção integral às gestantes usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus filhos de até 5 anos de idade.

No entanto, o levantamento de dados e acompanhamento do programa é em muitos sentidos falho. Exemplo disso é o documento Mãe Coruja Pernambucana – Um Olhar Sobre os Números, do ano de 2017.

O documento inicialmente contava com vinte indicadores de saúde materno-infantil para realizar a avaliação do programa, no entanto, sob a justificativa de “problemas metodológicos que prejudicam a análise dos resultados”, o estudo exclui os indicadores “taxa de mortalidade materna” e “taxa de prematuridade”. Assim como exclui o indicador de razão de óbitos infantis “por ser de difícil interpretação”.

Apesar de ainda constarem dezessete indicadores importantes, metade do objetivo inicial do programa se perde de vista e deixa de ser analisado por completa irresponsabilidade do governo do estado na coleta e tratamento de dados.

Essa falha foi identificada inclusive pelo Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, que no parecer prévio referente à prestação de contas do Governador no ano de 2016 orientou o Governo a promover estudos sobre a relação entre mortalidade materna, número de gestações e ações de assistência à saúde da mulher.

Além disso, o próprio financiamento da política é comprometido ao longo dos anos: segundo dados do portal da transparência do governo do estado, o Mãe Coruja saiu de um financiamento de 7,4 milhões de reais no ano de 2015 para um pouco mais de 677 mil reais em 2021.

No triênio de 2009 a 2011, Pernambuco já superava a taxa de mortalidade materna nacional, registrando uma razão de 63,3 por 100 mil nascidos vivos. Número que deveria ser ainda maior, devido à subnotificação. Em 2017, Pernambuco era o 6º estado, entre os estados do nordeste, com maior taxa de mortalidade materna, registrando uma razão de 60,34/100 mil. Desse total, 72% das mulheres eram negras e 74% estavam numa faixa etária de 20 a 39 anos.

A invisibilidade das mulheres negras em Pernambuco

A questão racial articulada com a questão de gênero é uma relação que historicamente foi invisibilizada. Apesar de ser compreendida como central quando nos deparamos com os indicadores sociais, que indicam que o topo das expressões de desigualdade social, vulnerabilidade e violência acometem esta parcela da população de maneira pronunciada, um longo caminho faz-se necessário para que as políticas públicas consigam promover impactos para as mulheres negras.

Quando analisamos os relatórios de gestão do governo do estado de Pernambuco entre 2014 a 2021, é possível identificar que nenhum programa ou projeto foi pensado para mudar a situação de violência, preconceito e discriminação das quais são alvo as mulheres negras pernambucanas, via Secretaria da Mulher.

Embora Pernambuco tenha um Plano Estadual de Igualdade Racial, é notória a ausência de políticas públicas efetivas de combate ao racismo no plano do Governo do Estado e das principais prefeituras da Região Metropolitana de Recife. A violência gerada pela articulação entre raça e gênero foi alimentada pela ausência do estado em promover políticas públicas que tivessem por objetivo a diminuição dos impactos do racismo e sexismo na vida dessas mulheres.

Durante a pandemia, a situações de precarização às quais estão submetidas as empregadas domésticas ficaram escancaradas. Lembremo-nos do emblemático caso do assassinato do menino Miguel, cuja luta por justiça continua a fazer parte da realidade diária de sua mãe Mirtes e de toda a sua família.

A questão do emprego para as mulheres negras pernambucanas é um dos indicadores que mais concretamente consegue demonstrar a violação de direitos que estas mulheres sofrem. No Brasil, 63% das empregadas domésticas são mulheres negras, que recebem menos que um salário mínimo e não têm seus direitos trabalhistas garantidos; além disso, as mulheres negras recebem em média 20% a menos que as trabalhadoras brasileiras da mesma categoria que são brancas.

As situações de assédio e violência doméstica e obstétrica acometem as mulheres negras de maneira diferente das brancas. 62% das vítimas de feminicídio no Brasil são negras, e, nos dez anos da Lei Maria da Penha, é possível afirmar que enquanto a violência diminuiu para as mulheres brancas, cresceu para as mulheres negras.

Quanto à realidade de cárcere a questão permanece: 67% das pessoas privadas de liberdade são pessoas negras que em sua maioria que realizaram crimes de natureza não violenta. A privação de liberdade atinge a vida das mulheres de maneira direta ou indireta, com seus familiares em situação de cárcere. Diante das condições das prisões brasileiras, são as mulheres negras que garantem a subsistência de seus familiares nas prisões.

A não implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra também contribui para a manutenção das disparidades no acesso à política de saúde para as mulheres negras, e situações de violência, preconceitos e discriminações marcam o acesso dessas mulheres à saúde. O não recebimento de anestesia e realização do corte no períneo (prática que não é mais recomendada) é uma marca da violência praticada contra as mulheres negras que parem.

Dos 110 casos de violência que acontecem em Pernambuco contra a vida das mulheres a maioria deles acontece no interior do nosso estado, a despeito da subnotificação dos dados. Tendo em vista a dificuldade estrutural que atravessa a vida das mulheres na hora de realizar a denúncia, a concentração dos abrigos na região metropolitana é uma realidade, além do número bastante inferior do que o necessário para o acolhimento às mulheres violentadas.

Compreendemos que a não realização da articulação entre as questões de gênero e raça/etnia nas políticas públicas contribuem para a manutenção das disparidades de acesso e manutenção das violências, discriminações e preconceitos que incidem sobre as mulheres negras na sociedade.

Como diria Lélia Gonzalez, ser mulher negra no Brasil é ter uma existência marcada pelos estereótipos de servidão e sexualização. Sendo assim, o acesso às políticas públicas de forma desigual e atravessada por discriminações é uma realidade. Logo, pensar na minimização dos impactos produzidos pelo racismo e sexismo requer um conjunto de programas e projetos que estejam presentes em todas as políticas públicas executadas pelo estado. Ou seja, precisa ser um núcleo estruturador na formulação e execução das políticas públicas.

Conclusão

O objetivo dessa reflexão foi colocar em debate vários aspectos da realidade da mulher trabalhadora de Pernambuco. Não temos pretensão de esgotar o tema. Muitas temáticas não foram abordadas por falta de acúmulo necessário de nossa parte ou escassez de informação. Merece atenção, por exemplo, a especificidade das mulheres trabalhadoras que sobrevivem da pesca artesanal, as trabalhadoras do polo gesseiro do Araripe e as trabalhadoras e estudantes da Unidade Estadual de Pernambuco (UPE), privadas do básico de políticas de permanência estudantil voltada para enfrentar as desigualdades de gênero – como vagas em creches, locais para aleitamento materno, política de transporte para os câmpus da universidade etc.

Todas essas temáticas devem nortear a luta política em Pernambuco nos próximos anos. Teremos, pela primeira vez na história, um governo liderado por mulheres: Raquel Lyra e Priscila Krause; contudo, é um governo liderado por mulheres de direita, membros de famílias oligarcas e tradicionais da política do estado e que não têm compromisso nenhum com a emancipação da mulher trabalhadora. Representatividade importa, mas só se for uma representatividade com conteúdo e compromisso popular.

Pernambuco passará por um grande desafio: pautar conquistas populares e avançar frente a um governo de direita amarrado por vários compromissos com o fundamentalismo religioso, o fascismo e a grande burguesia do estado. Nesse desafio terá papel central um feminismo popular, antirracista e que consiga representar e pautar os interesses de todas as mulheres exploradas do nosso estado. É uma batalha gigantesca, mas venceremos se nunca for esquecido que precisamos de mais mulheres na política, mas mulheres com compromisso real pela construção de um mundo sem capitalismo, machismo, racismo e LGBTfobia.

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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo.

Raline Almeida é Assistente Social especialista em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Mestranda em Serviço Social e membro do Grupo de Pesquisa em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos da UFAL

Victória Pinheiro é diretora de políticas educacionais da UNE, secretaria de movimento estudantil da UJC-PE, membra da coordenação nacional da UJC e pré-candidata à deputada federal pelo PCB-PE.

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