Respirar fundo

Penso que as sociedades, tanto quanto os indivíduos, necessitam de praticar a respiração profunda para poder prosperar. A sociedade brasileira e os democratas de todo o mundo solidarizados com ela têm nestes dias uma extrema necessidade de respirar fundo.

FOTO: PABLO PORCIUNCULA/AFP

Por Boaventura de Sousa Santos

Entre as culturas orientais, a prática de respirar fundo é considerada a chave natural de uma vida saudável. As propriedades curativas são imensas: reduz as dores, elimina as toxinas, aumenta o fluxo sanguíneo e melhora a imunidade, baixa a ansiedade e o ritmo cardíaco, reduz as inflamações, aumenta o nível de energia, acalma o sistema nervoso e relaxa o corpo e a mente. Penso que as sociedades, tanto quanto os indivíduos, necessitam de praticar a respiração profunda para poder prosperar. A sociedade brasileira e os democratas de todo o mundo solidarizados com ela têm nestes dias uma extrema necessidade de respirar fundo. Nestes últimos anos foram tantos os agentes tóxicos e tão grande a falta de sangue fresco que a imunidade democrática da sociedade brasileira atingiu os seus níveis mais baixos desde o fim da ditadura militar. Era elevadíssimo o nível de toxicidade fascista, de sangue mal renovado, excessivamente ácido e incapaz de absorver as vitaminas da verdade, da razão e da convivência pacífica. No último mês em particular, a democracia brasileira dormiu mal, atormentada por maus pensamentos, com o sistema linfático afetado e incapaz de drenar os líquidos do bom senso, da confiança, da simpatia. Enfim, esteve à beira de um ataque de nervos tanto mais que os ambulatórios da saúde eleitoral, apesar de presentes e generosos no seu esforço de garantir a sobrevivência da democracia, estavam igualmente sob ataque e quase impossibilitados de respirar. De tudo isto se conclui que o corpo e a alma do Brasil precisam urgentemente de respirar fundo, a precondição para ganhar a energia exigida pelo novo ciclo democrático. Terão condições para respirar fundo pelo tempo necessário para recuperar o ânimo democrático? É difícil prever. Enumero algumas razões tanto para uma possível resposta negativa como para uma resposta positiva.

Quanto às primeiras, há que contar com as almofadas de toxicidade do tamanho de nuvens com que os fascistas brasileiros e internacionais vão tentar sufocar a respiração do Brasil democrático. A primeira almofada, a mais densa, é da contestação provável dos resultados eleitorais para disfarçar as imensas fraudes que os serviçais do governo Bolsonaro cometeram (orçamento secreto, compra de votos, supressão de votos, intimidação generalizada) e que, para surpresa deles, não deram os resultados previstos. Nitidamente subestimaram a vontade democrática dos brasileiros e brasileiras. A segunda almofada é a da toxicidade ambiental gerada pelo bolsonarismo secular, empresarial, midiático, religioso, popular. É uma fumaça fascizante, bem à superfície da vida social e relacional, uma mistura de fumaça de mentira e de neblina de ódio e de cegueira industrializada que impede o reconhecimento do outro e neutraliza a inclinação natural da solidariedade, da partilha e da compaixão. A fumaça fascizante concebe a sociedade como um campo de batalha dominado pela lógica binária do amigo/inimigo, a sobrevivência do “nós” assente na eliminação física do “eles”. A primeira almofada asfixia rapidamente, a segunda lentamente.  Há ainda uma terceira almofada tóxica, bastante mais difusa, mas nem por isso menos perigosa. Reside no efeito que a perda de visibilidade criada pelo smog fascizante, pode ter entre os mais afetados pela poluição antidemocrática, as classes populares e as classes médias. A mistura da fumaça e da neblina impedem ver com nitidez a gravidade das ameaças à respiração democrática. Favorecem uma vontade infundada de pensar que tudo voltou à normalidade e que o mais saudável é esquecer os malefícios recentes e acreditar que o ar está puro apenas porque o sol voltou. O outro lado do ódio inextirpável é o amor indiscriminadamente inocentizador. De um lado, o ressentimento, do outro, a falsa consciência, ambos poluindo insidiosamente a respiração democrática.

Também há uma boa razão para pensar que a respiração funda vai ser suficientemente longa e tranquila para desintoxicar a sociedade brasileira e permitir que ela absorva doses fortes de vitaminas democráticas que fortaleçam contra possíveis percalços futuros. A toxina Bolsonaro foi tão sufocante que, pela primeira vez depois do fim da ditadura militar, os democratas brasileiros “viram claramente visto”, como diria Luís de Camões, que a democracia nem é irreversível nem é suficientemente robusta para se defender institucionalmente dos antidemocratas. A democracia só sabe respirar fundo com os pulmões dos democratas mobilizados para a defender ativamente. A democracia só é um dado para quem a quer destruir. Os que a querem defender têm de o fazer como uma conquista sempre em curso. A recordação deste trauma não pode ser normalizada nem muito menos suprimida. Os psicólogos e psiquiatras da alma brasileira só a curarão  incitando-a a ir para as ruas, as praças, os terreiros, as fábricas, as comunidades, as igrejas, as praias dar testemunho de si. As camisetas da cor da esperança e da luta devem ir vestidas por dentro da pele e não por fora. É mais difícil, mas dura mais.


Na retomada da coluna Razão Quente, coluna mensal de Boaventura de Sousa Santos na TV Boitempo, o sociólogo analisa o cenário eleitoral brasileiro. Ainda faria sentido uma divisão entre esquerda e direita ou estaríamos diante de uma distinção entre política de vida e política de morte? Qual seria o papel da esquerda nesse momento? Boaventura destaca a necessidade de as forças de esquerda defenderem a democracia liberal e suas conquistas no Brasil, mas permanecerem sempre atentas aos seus limites.

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Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, em 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Pela Boitempo, publicou A cruel pedagogia do vírus (2021), O futuro começa agora: da pandemia à utopia (2021), Esquerdas do mundo, uni-vos! (2018), A difícil democracia: reinventar as esquerdas (2016) e Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social (2007).

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