A vida única de Lula e Graciliano Ramos

O valor fundamental na sexta-feira no debate e no próximo dia 30 é o futuro que Lula, caluniado como ladrão e analfabeto, descortina para toda a gente na altura dos seus bravos 77 anos. Um futuro que é a transformação do passado em uma luta de vida e morte. De vida, enfim. O presente é este: vencer com ele o fascismo e as trevas do Brasil.

Por Urariano Mota

O 27 de outubro marca o aniversário dos grandes Luiz Inácio e Graciliano Ramos. Para esse dia, penso nas semelhanças e diferenças entre Lula e Graciliano Ramos, os dois brasileiros mais ilustres da recente quinta-feira.

Sobre o alagoano, o nordestino universal Graciliano Ramos, anotei uma vez que Vidas Secas era uma vitória do gênio do escritor sobre as condições difíceis de tempo e lugar em que escreveu o livro, numa pensão do Rio, cheio de dívidas. Que o valor da obra não caía nem um bilionésimo quando se via nela um exemplar conjunto de contos em vez de um romance. E sobre a genialidade do artista, em mais de uma página da biografia O velho Graça recebíamos lições da voz do escritor como: “A qualidade essencial de quem escreve é a clareza, é dizer uma coisa que todos entendam da forma que você quis. Para escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum”.

E do diário de Paulo Mercadante, citado em velho Graça: “Graciliano falou de sua experiência. Escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é alguma coisa que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo. Não se trata apenas de saber a sintaxe, de dominar um grande vocabulário, mas de ser fiel à ideia e domá-la em termos de uma precisão formal. Por isso, a experiência é essencial, só escapando dessa condição o poeta. Talvez com relação ao escritor haja uma conjugação, Graciliano concluiu, da pessoa como individualidade, do ponto de vista de uma psicologia determinada com o meio onde cresceu e viveu”.

Onde então a semelhança com Luiz Inácio Lula da Silva, que não escreve? Lula “apenas” fala, age e anda com  o povo para os rumos do Brasil. Mas nesse “apenas” vale observar que poucos políticos do mundo inteiro falam com a sua eloquência. Isso não quer dizer falar “bonito”, cheio de lugares-comuns da retórica conforme a nossa deseducação bacharelesca. Não. Lula possui a inteligência de falar simples, com palavras do cotidiano, mas carregadas de significados vitais. Ele fala da fome, da esperança, do lugar inalienável de todos os pobres terem uma vida digna, da própria história de retirante nordestino. E quando o momento exige, fala de realidades complexas da economia, da luta contra as mudanças do clima, de ciência, mas com um tradutômetro que só ele possui. Lula traduz o difícil para a compreensão de todos como um educador popular. Essa é a sua literatura. Isto é, o retirar as palavras do seu casulo para a tribuna do povo. Não lhe peçam romances como São Bernardo, Angústia ou o imortal Memórias do cárcere. Peçam-lhe a expressão dos humilhados, quando ele fala sobre o chiclete mascado por outro, quando ele provou o gosto da goma mastigada com saliva que não era a sua. Peçam-lhe um depoimento sobre a marmita na fábrica, com o seu almoço sem carne. Isso ele fará com a pungência de um novo Fabiano. Vivo, que enfrentou e enfrenta todos os soldados amarelos.      

Lula é um pensador, notem. Ele é capaz de refletir sobre os filhos sem mãe com palavras novas em que desenvolve o pensamento de que as mães não morrem, elas continuam na gente, porque somos sementes do seu DNA, do nascimento ao fim. As mães continuam na gente, ele fala. É um salto do novo sambista Cartola, “semente de amor sei que sou desde nascença”. Se esse homem não é um gênio, esqueçam a categoria dos gênios.

E quanto à educação, o que dizer de ambos? Em Graciliano Ramos, sabemos o que ele fez quando esteve na diretoria da Instrução Pública de Alagoas. Assim que foi empossado, ele foi à periferia. Escolheu, então, o bairro mais pobre de Maceió e encontrou uma escola completamente às moscas. Na biografia O velho Graça escrita por Dênis de Moraes, lemos:

“– Por que a escola não está funcionando?
A diretora gaguejou para explicar que o regulamento não permitia a entrada de alunos descalços e sem uniforme. O bairro era paupérrimo, os pais não podiam fazer despesas e, por isso, os filhos ficavam sem estudar. Com a fisionomia contraída, Graciliano balançou a cabeça e se retirou.
Horas depois, ordenou a compra de sapatos para todos os alunos. A encomenda foi entregue com uma circular assinada por Graciliano, determinando que as professoras percorressem o bairro, casa por casa, e dissessem aos pais que as crianças já podiam frequentar as aulas.
Logo, a escola parecia outra: salas superlotadas, porém com alunos sentados no chão por falta de mesas e cadeiras. Para contornar o problema, Graciliano mandou colocar caixotes até que o mobiliário fosse adquirido. Não se contentou com isso. Fardos de sarja azul e morim branco, para confecção de uniformes, encheram os depósitos da Instrução”.        

Graciliano, como educador,  foi na base, na raiz. E de Lula, o que diremos do chamado analfabeto quando presidente do Brasil? Aliás, diga-se de passagem, que a suja elite chamava de analfabeto um homem que dirigiu o maior sindicato metalúrgico da América Latina. Chamavam de burro, apedeuta, um homem que aprendeu com as lideranças do sindicalismo, com os intelectuais e com os operários do chão de fábrica. Se isso não é uma universidade, que diremos dessa escola magnífica que ensina a dialogar com os diversos, com os frutos e seiva do trabalho? De uma universidade que ensina a mudar o mundo a favor dos oprimidos, o que diremos? 

Muito bem. Falemos da educação em Lula como presidente. Copio e colo sem pudor:

Foi no governo Lula, em 2008, que foi sancionada a lei (Lei nº 11.738/2008) que criou o Piso Salarial Nacional para professores de escolas públicas da educação básica. E a garantia de formação gratuita para educadores, ainda que em universidades privadas, para aqueles interessados em atuar na educação pública. No ensino superior, o homem iniciou uma verdadeira revolução, com o número de alunos saltando de 3,5 milhões para mais de 8 milhões. Foram criadas 18 novas universidades e 178 novos campi, espalhados por 295 municípios. O ensino superior mudou de perfil. Antes majoritariamente branco, hoje tem mais de 50% de pretos e pardos. Houve ainda a criação de 422 escolas técnicas e institutos federais, além de programas de extensão e pós-graduação, como o Ciências sem Fronteiras, que levou centenas de estudantes brasileiros a escolas do mundo.

Mas para não falar mais nada, olhem isto:

E com outras palavras, Lula nos conta: “Toda vez eu choro com relação ao povo que cresceu, porque é uma gratificação a gente saber que na hora que as pessoas têm oportunidade, as pessoas não são inferiores. Então, o papel do Estado é criar condições para que todas as pessoas tenham oportunidades”.

Mas o valor fundamental na sexta-feira no debate e no próximo dia 30 é o futuro que Lula, caluniado como ladrão e analfabeto, descortina para toda a gente na altura dos seus bravos 77 anos. Um futuro que é a transformação do passado em uma luta de vida e morte. De vida, enfim. O presente é este: vencer com ele o fascismo e as trevas do Brasil.  

E aqui voltamos ao começo. Luiz Inácio Lula da Silva e Graciliano Ramos são patrimônios do povo brasileiro. Acredito que Lula poderia até dizer: “Companheiro, somos patrimônios, mas cada um à sua maneira, sabe?”.

Sei, e me recolho feliz com o passado, presente e futuro desses dois patrimônios.


A coletânea Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, organizada por Maud Chirio, reúne 46 missivas, de um total de 25 mil enviadas a ele durante o cárcere em Curitiba, procurando representar a imensa diversidade contida nas cartas, contemplando autores de diferentes origens sociais e regiões do país, com histórias de vida, tons e abordagens variadas. Diferente de outras obras de estadistas encarcerados, que reúnem parte de sua comunicação com o mundo exterior, as cartas a Lula apresentam a visão daqueles que viram de longe o desenrolar da história. São demonstrações de solidariedade, de amor e esperança ao prisioneiro.

Até o dia 31 de outubro Boitempo disponibiliza download gratuito do ebook de Querido Lula e audiolivro de A verdade vencerá, que acaba de ser lançado, por R$13!

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Urariano Mota  é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

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