Em dois compassos para o abismo
Essas eleições expõem, mais do que qualquer outra antes delas, a derrota das esquerdas parlamentares. Lamentar o fechamento das portas emperradas há muito tempo rumo ao mais do mesmo ou enfrentar o desafio de abrir novas portas e de construir uma outra história sem os entulhos de uma forma societária que há mais de 500 anos mostrou a que veio?
MINERAÇÃO NA SERRA DOS CARAJÁS. FOTO: T PHOTOGRAPHY/SHUTTERSTOCK
Por Maria Orlanda Pinassi e Gisele Sifroni
“Negras florestas, rústicos pastios,
Pereceis! Parabéns, pois já sois Roma!”
Ovídio
Dadas as circunstâncias extremas que explodem pelos quatro cantos do Brasil profundo e real, um Brasil de gente que pouco frequenta as mídias e os debates políticos a não ser como números de pobreza, desemprego, de mortes, de violências. Dadas, enfim, as causas miseráveis contornadas por essas estatísticas sem alma, achamos por bem pensar no que de fato parece incidir sobre as eleições que enfrentamos. Pensar, por exemplo, que estamos diante de uma guerra de tendências domésticas, politicamente supletivas, mais ou menos duras de sustentação de uma outra guerra, internacional, mais imperativa e monopólica em vias de recolonizar o Brasil para servir ao que há de mais avançado e destrutivo em termos de padrão tecnológico: a 4º Revolução Industrial, também chamada de Indústria 4.0.
Sobre essa questão, lembramos que, em 2010, auge do “progressismo brasileiro”, o Estado criou um Grupo de Trabalho Interministerial sobre Minerais Estratégicos, articulado com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Ministério das Minas e Energia (MME). Longe das vistas dos movimentos sociais institucionalizados, ocultado ou ignorado pelos grandes veículos de comunicação, o citado Grupo de Trabalho se apresentava então com o objetivo de pesquisar e impulsionar ações que permitam, até 2030, o desenvolvimento no Brasil das cadeias produtivas ligadas à grande mineração, com destaque para as chamadas terras raras.
Pode parecer contraditório, mas o documento intitulado “Uso e aplicações de Terras Raras no Brasil: 2012-2030”, produzido na transição do Governo Lula para o Governo Dilma, guarda severas semelhanças com o documento “Projeto de Nação: o Brasil em 2035”, produzido pelo Instituto Sagres e pelo Instituto General Villas Bôas, um dos articuladores da vitória e da presença do Alto Escalão das Forças Armadas no Governo Bolsonaro.
É desnecessário, e até mesmo redundante, afirmar que a mineração, em especial a de grande escala, deixa rastros de destruição definitiva na natureza orgânica (biodiversidade) e na natureza inorgânica (humana). Não por acaso, a imagem de uma mina aberta de modo legal ou ilegal se assemelha a um cancro que se espalha, contamina e liquida tudo ao redor.
Mas, se em tempos de progressismos, o Estado e toda sua base de sustentação não hesitaram em planejar, implementar e articular atividades econômicas duplamente degradantes e subalternas às cadeias produtivas globais, parece pertinente perguntar: governe quem governe o Leviatã, qual prelúdio se anuncia às classes trabalhadoras do país, quando as mesmas bases materiais internas e externas, que um dia permitiram os anos de ouro do neodesenvolvimentismo, flertaram com a extrema-direita que não parece disposta a recuar? Será que existe alguma diferença de tipo ideológico entre destruição ambiental e social de esquerda e de direita? Ou ainda, existe diferença substantiva entre as tragédias dos anos progressistas e aquelas que nos exigirão as cadeias de acumulação capitalistas que alimentam a sofisticada produção de circuitos integrados (chips)? Em outras palavras, qual a diferença efetiva entre as devastações de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) em Minas Gerais, de Barcarena (2018), no Pará, provocadas pela mineração legal durante o Governo Dilma e a devastação das Terras Indígenas yanomami, em Roraima, provocada pelo garimpo ilegal, durante o Governo Bolsonaro? A esse respeito, entendemos que somente as vítimas, quando não forem silenciadas por morte ou cooptação, poderão oferecer respostas. Por enquanto, é certo dizer que por trás das tragédias há uma linha comum de exploração legal e ilegal do nosso território, linha essa que embala campanhas políticas aparentemente distintas, mas que não nasce e tampouco se encerra nelas.
I.
Desde a Independência até bem recentemente, o desejo de “superar o atraso” foi mantra comum repetido à exaustão por liberais e parte substantiva da esquerda brasileira. A afinidade desenvolvimentista foi tão grande que ambos os lados, outrora delimitados em suas convicções e expectativas históricas, ficaram cada vez mais iguais na decadência. Mas, se existe um patrimônio incurável na nossa história é o fato de sermos um país de extração colonial, de capitalismo estruturalmente dependente e periférico. E o que isso significa? Que apesar dos pesares, jamais fomos atrasados e que não nos compete decidir sobre o papel que desempenhamos no circuito mais amplo da acumulação de riquezas.
Habitamos um território de espoliação permanente, cuja burguesia residente sempre foi servil e associada ao grande capital, hoje predominantemente transnacionalizado, de modo que fica quase impossível perceber diferenças entre os seus interesses e os interesses do capital global, se é que de fato existem. Isso não só não muda como acelera o fator preponderante de que aqui se continua a produzir bens primários – ou commodities, como define o imperativo sistema financeiro –, com base em tecnologias avançadas, uso contumaz de veneno e transgenia, fogo e correntões.
No Brasil mais recente, domina a monocultura industrializada pelos agronegócios; o extrativismo de mercado é praticado pela mineração em larga escala de componentes essenciais, por exemplo, ao complexo industrial militar, como o ferro, à inovadora indústria 4.0, como ouro e lítio, à produção de fertilizantes, como o potássio; e a construção de toda uma infraestrutura necessária a tais atividades como rodovias, ferrovias, hidrovias, hidrelétricas, transposição de rios, cuja onipotência transforma irresponsavelmente a geografia física, social e cultural do país. Esse é o padrão de desenvolvimento associado que se pratica há décadas em todo o Brasil numa lógica de catástrofes e destruição veloz de todos os 6 biomas de nosso território, dos seres humanos e não humanos que aí radicam.
Vivemos num país gigantesco que ampliou e amplia suas fronteiras de exploração sempre com muita opulência e violência; nesse país se pratica, desde sempre e sem pudor, o extermínio dos povos originários; por aqui se descumpre corriqueiramente as leis, proliferam racismos e o esterco das desigualdades sociais abissais é zelosamente cevado pelos poderosos. Somos o repositório das contradições mais agudas do capital global em expansão, razão pela qual a economia brasileira é cronicamente instável e a política autocrática, militarizada e fascistizada.
Com frequência somos atropelados por saídas autoritárias em que sucessivos governos, à quente e à frio, controlam os passos e desmobilizam qualquer organização de massas, das maiores às menores, das mais agudas às mais mornas. Nossos breves tempos democráticos mais recentes foram pródigos em políticas inclusivas, sobretudo as de consumo, sem descuidar do aparato repressivo, fortalecido pela Minustah, pela defesa do país nos grandes eventos (PAN, Copa, Olimpíadas) e pelo afã de ocupar assento no Conselho de Segurança da ONU. Os tempos atuais – herdeiros ideológicos da ditadura de 1964 –, acirram o apego à militarização inclusive dos costumes paisanos, apontando para um recrudescimento da condição associada para fora e brutal para dentro. Eis o legado do Brasil, uma nação quimérica, uma ficção nacionalista criada no início dos XIX para servir à acumulação do capital global. Essa é a base da qual partimos para pensar que, neste exato momento, o mundo avança numa guerra imperialista estrutural que se reproduz com força inédita no interior deste país, cujas riquezas são valiosas e disputadíssimas por grandes corporações das metrópoles, sejam elas privadas ou estatais.
II.
Em meio a essa nova ofensiva do imperialismo neoliberal sobre o Brasil, estamos a dois passos de uma decisão eleitoral majoritária, polarizada num plano político-ideológico que opera com instrumentos de ontem. Democracia ou fascismo, paz ou guerra, dissensão ou conciliação, desenvolvimento destrutivo ou sustentável, capital financeiro ou indústria, passado ou presente. Mas, a quem caberá a incumbência de nos conduzir ainda mais fundo no mundo-inferno? Certamente àquele que, neste momento, estiver mais habilitado a operar no interior de um neoliberalismo arrochado e tresloucado que avançará e destruirá com ainda mais volúpia tudo o que há de mais essencial à vida no planeta. No centro desse vórtice está a Amazônia, uma das últimas fronteiras a ser sangrada na América Latina, menina dos olhos do capital na atualidade.1
Nessa medida, o bom senso recomendaria o resultado das eleições para comentá-lo. Mas, entendemos que, mais do que sua conclusão, a dura verdade que decide o pleito está no além do Parlamento e ela já vem se realizando como fundamento sistêmico há algumas décadas, independente do governo que ora presida ou tenha presidido seu andamento. Nem por isso, se pode negligenciá-lo pela importância fenomênica que possui no sentido de mapear o movimento e as tendências do capital em termos regionais e federativos do país.
Nestes últimos anos, e contrariamente ao tom bipolar da campanha eleitoral, um dos contendores mostrou que democracia se ajeita bem com totalitarismo lembrando que o fascismo ascende sim pelo voto popular. Habilitou o país a uma pax global que se traduz cada vez mais no fomento à guerra, militar e miliciana, que aparelha o Estado e a sociedade civil contra o inimigo interno. Dividiu a nação em muitos fragmentos que se odeiam de morte sem saber exatamente por que. Mostrou como é fácil pisar na constituição e nas estrelas do legalismo; abriu as portas do subterrâneo, deu verniz e condecoração aos crimes, deu-lhes funcionalidade efetiva nos grandes negócios e autorizou um novo tipo de concertação pelo alto entre o ilegal e o legal. Praticou genocídio sem ser genocida. Governou para ricos e seduziu parte não desprezível das massas sem concessões populistas. Exceção foi feita na reta final da campanha. Pregou ódio às mulheres, aos indígenas, aos negros, aos pobres, é homofóbico, piadista da tragédia humana e agente de uma devastação voraz, sustentavelmente destrutiva e tão necessária ao que o centro espera de nós. Se vencer, Bolsonaro certamente será ainda mais Bolsonaro.
O outro pleiteante, governante em dois mandatos e mentor de outros dois – o último dos quais impedido –, tem nas mãos um passado mais favorável tanto no plano mundial como nacional. Mas, esse passado beneficiário de fluxos financeiros internacionais que tanto contribuíram com o neoliberalismo social-periférico, integrou, capacitou e domesticou as massas para o consumo e o empreendedorismo, “empoderadas” por direitos identitários sem base social, sem condição de classe e sem os direitos trabalhistas que lhe são tirados paulatinamente desde FHC.
Bem, esse passado foi varrido do mapa pelos ventos da crise que abalou o centro em 2008. Tudo isso explode no Brasil durante as jornadas de 2013, momento em que milhões de brasileiras e brasileiros saíram às ruas para protestar contra uma carestia até então não revelada, numa das maiores manifestações populares já vistas no país. Na sequência, o golpe de 2016, aplicado pelas mesmas forças obscurantistas da pequena política que sustentou as alianças tão necessárias ao Partido dos Trabalhadores para se manter no Planalto. A inominável Operação Lava Jato e seu fantoche Sérgio Moro acabaram por fomentar ainda mais a instabilidade instaurada no país. Em 2022, a cena é muito outra e o mestre da conciliação precisará recriar-se de modo profundamente reverso ao que foi um dia se tiver a intenção real de conduzir o país em um mundo ingovernável. Se vencer, Lula certamente jamais será o mesmo.
Essas eleições expõem, mais do que qualquer outra antes delas, a derrota das esquerdas parlamentares. Fim de linha para elas, pois, qualquer que seja o resultado, o processo de reprodução social global do sistema reduziu a pó o que havia de esquerda na disputa, se é que de fato havia. Mostrou definitivamente que o papel da esquerda moral, tanto quanto o da direita, da extrema-direita, de conservadores, é o de pavimentar o caminho que nos levará ainda mais profundamente para o abismo. Lamentar o fechamento das portas emperradas há muito tempo rumo ao mais do mesmo ou enfrentar o desafio de abrir novas portas e de construir uma outra história sem os entulhos de uma forma societária que há mais de 500 anos mostrou a que veio?
Nota
1 Ver Pinassi e Guastalla. A solidão indígena no mundo-inferno da Amazônia. Margem Esquerda n. 39, p.82-95, 2° semestre de 2022.
No último número da Margem Esquerda, a revista da Boitempo, Maria Orlanda Pinassi e Isabella di Guastalla fazem um raio-x dos vasos comunicantes entre o mercado financeiro global e o extrativismo sanguinário que tirou as vidas do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips.
Confira também o lançamento da Margem Esquerda #39, que contou com Paulo Arantes e Silvia Viana, na TV Boitempo:
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Maria Orlanda Pinassi é professora aposentada de sociologia da Unesp. Autora, entre outros, de Da miséria ideológica à crise do capital (Boitempo, 2009), atualmente pesquisa neoliberalismo no Brasil, mineração, Amazônia e lutas sociais.
Gisele Sifroni é professora na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mestre e doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Também pesquisa neoliberalismo no Brasil, mineração, Amazônia e lutas sociais.
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