A Questão Meridional
No Brasil, a questão meridional manifesta exatamente a complexidade da sociedade civil, mas também sua desarticulação. É o nó górdio da democracia brasileira. O fascismo busca compor uma falsa unidade nacional dando às classes médias e a setores empobrecidos uma nova direção.
IMAGEM: MARIA FERNANDA PISSIOLI/UNSPLASH
Por Lincoln Secco
A clivagem regional que as eleições revelaram neste século XXI remete a uma questão meridional no Brasil. Foi em 2011 que me referi a esse tema no livro História do PT. A inspiração era evidentemente Antonio Gramsci. Nos anos 1960, Otto Maria Carpeaux sugeriu que temos no país uma questão meridional pelo avesso. Ou seja, setentrional.1
O que parece existir no sudeste é um novo padrão de ajustamento da superestrutura política às necessidades de uma economia desindustrializada, agroexportadora e dominada por serviços dinâmicos, porém dependentes de importações tecnológicas.
Essa mistura de ultra moderno e sobrevivências coloniais confere a São Paulo o ar de um estado rico, apesar da população pobre; com universidades de ponta e escolas básicas precárias; em que tudo funciona (saúde, estradas, transportes), porém mais ou menos. É também um estado da classe média do mundo corporativo e de funcionários de carreiras de estado de altos salários. Em contraste com a maior parte do país, a maioria de sua população é branca e sua elite tem um poder de comunicação e difusão cultural capaz de desestabilizar governos que não lhe interessam. É o seu simulacro de poder moderador.
A questão meridional identificada na parte final de História do PT dizia respeito a uma hegemonia insatisfeita das classes dominantes “paulistas” (na verdade, espalhadas pelo centro oeste e sul). Seus valores predominam, mas não têm aderência à vida cotidiana. Incapazes de vencer eleições de 2002 a 2014 buscaram apoio em setores militares, do judiciário e da mídia para destruir a reputação dos adversários. Essa combinação de força e consenso foi insuficiente para virar o jogo eleitoral.
A hegemonia “paulista” persistiu porque em nenhum momento os governos petistas modificaram radicalmente os fundamentos da economia: políticas sociais relevantes e intentos desenvolvimentistas existiram, mas derrubaram o governo antes de atingir um patamar superior.
Gramsci pensou a questão meridional do ângulo de uma sociedade de capitalismo retardatário e de um território que se unificou politicamente, mas não socialmente. Dessa maneira, ele é muito mais o pensador de um ocidente incompleto assemelhado às sociedades latino-americanas, como propôs Juan Carlos Portantiero em seu célebre livro Los Usos de Gramsci. Temos uma sociedade civil complexa, típica do ocidente gramsciano, porém desarticulada. O estado integral é uma justaposição de tensões acirradas e não há uma hegemonia estável. Nos Cadernos do cárcere encontramos formas indecisas, campos de força, arranjos e rearranjos constantes que deixam de lado a ideia de um sistema hegemônico em favor de uma noção processual de hegemonia.
No Brasil, a questão meridional manifesta exatamente a complexidade da sociedade civil, mas também sua desarticulação. É o nó górdio da democracia brasileira. O fascismo busca compor uma falsa unidade nacional dando às classes médias e a setores empobrecidos uma nova direção.
Em fases de crescimento econômico as tensões são acomodadas, quando a crise se instala ou as expectativas de ganhos materiais mudam, o sistema político se torna instável e pró cíclico, diminuindo a capacidade de um governo progressista adotar medidas de estímulo da demanda. Para alterar isso, seria preciso incorporar parte das exigências das camadas médias no programa progressista, retirá-las das garras do capital financeiro, substituir a forma financeirizada dos seus interesses por uma nova expressão política fundada na produção. Um novo modelo de desenvolvimento precisa se articular a uma inversão do modelo de tributação.
Uma classe social que diretamente ganhou muito pouco dos governos progressistas e cujos preconceitos foram exacerbados pela perda de status diante da ascensão dos mais pobres não apoiará pautas de esquerda. Ao menos não as pautas centrais e que dizem respeito à classe trabalhadora. Ela se divide entre o neoliberalismo progressista e o neoliberalismo regressivo. O fascismo conquistou a maior parte para essa segunda tendência. Mas render-se à outra tendência e rebaixar o programa só importa à oligarquia eleitoral dos partidos de esquerda. No curto prazo pode salvar a todos nós, mas no médio prazo cultiva novos monstros.
Isso não surpreende.2 Assim como os pobres votam no PT pelos seus interesses materiais, grande parte das camadas médias imaginam fazer o mesmo, mas contra a esquerda. É claro que valores morais também importam, mas acredito que sejam inseparáveis da vida material. Essa luta entre setores médios e pobres precisa ser substituída pela luta de ambos contra os muito ricos.
Notas
1 Versão modificada de artigo publicado no site A terra é redonda com outro título atribuído pelos editores.
2 Cito Eduardo Bellandi com quem sempre discuti essa questão quando escrevia a História do PT. Recentemente, Breno Altman fez excelente análise em seu programa “20 minutos” mostrando de forma didática e acurada como lidar com a nossa questão meridional. Lembremos também que as camadas médias não são homogêneas e que o PT obtêm milhões de votos cruciais em São Paulo. O PT incorporou no seu programa o aumento da faixa de isenção do imposto de renda, um claro aceno para setores médios.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados (2014), e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho de 2013, Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013).
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