A fratura exposta: o Brasil depois das eleições

Quando as instituições são impotentes, o espaço é ocupado pela luta direta das classes. A fratura se torna exposta, mantras e lamentos não podem curar o tecido e ossos rompidos. Nenhum recuo se torna possível sem uma derrota catastrófica. Sem espaço para fugas, só nos resta avançar.

FOTO: BRUNO SANTOS/FOLHAPRESS

Por Mauro Luis Iasi

Neste momento que antecede as eleições presidenciais, podemos adiantar um cenário muito preocupante. Não apenas pelo pleito em si mesmo, que se anuncia dramático, mas principalmente pelo que provavelmente se avizinha.

O Brasil evoluiu de uma formação social profundamente dividida para uma fratura, isto é, não se trata mais de uma profunda divisão entre uma massa de despossuídos e uma minoria que concentra mais de 74% da riqueza nacional. Trata-se de um acirramento da luta de classes que coloca frente a frente a alternativa fascista e a sobrevivência de uma democracia limitada, em meio a uma enorme crise institucional.

Já tratamos insistentemente das causas que nos levaram a este quadro: a prevaricação das instituições da República, o longo período de conciliação de classes e o quanto se subestimou a força eleitoral do bolsonarismo, preferindo enfrentá-lo eleitoralmente ao invés da mobilização social. Neste momento que cerramos fileiras no apoio a Lula contra Bolsonaro, ao que tudo indica, o vitorioso (esperamos que Lula) ganhará por uma pequena margem de votos e precisamos refletir sobre o cenário que se abrirá então.

Caso o fascismo vença, pelo enorme e despudorado uso da máquina pública e pela enxurrada de fake news que desfila diante da impotência do TSE, teremos a continuidade da destruição econômica e social do país, o aprofundamento de uma reversão civilizatória e uma agudização da intolerância e da violência. O mais perigoso, no entanto, é que abre-se a possibilidade que aquilo que faltava no processo de fascistização finalmente se apresente. Analisávamos que apesar de um movimento de caráter fascista e uma liderança de extrema direita disposta a caminhar nesta direção, o fascismo exigia a transformação do Estado burguês em um Estado fascista, isto é, um controle direto da extrema-direita fascista de instituições como as forças armadas, polícias, justiça e Parlamento. Um segundo mandato de Bolsonaro abre essa possibilidade, ainda que não haja consenso entre o bloco dominante nesta direção.

A impotência de prevaricação das instituições que poderiam e deveriam ter interrompido o mandato do miliciano se agudizará e o enraizamento de uma cultura fascista se aprofundará no tecido social com consequências desastrosas.

Eleitoralmente este cenário pode se dar a partir de um aumento da vantagem do fascista no sudeste, principalmente, mas também no sul e centro-oeste. A possibilidade de vitória de Lula se dá, não somente pela heroica resistência do nordeste, mas pela capacidade do petista em não deixar se distanciar nas regiões onde seu oponente deve vencer e que têm a maior quantidade de eleitores. Isto nos leva a crer que a batalha decisiva se joga em São Paulo, Rio e Minas.

Mesmo no caso de vitória da centro-esquerda, o país estará fraturado ao meio. Três vetores são extremamente preocupantes: o questionamento do resultado eleitoral, o tempo entre o fim do pleito e a posse do novo presidente e a reação de uma malta de apoiadores inconformados que foram fartamente alimentados com mentiras. Todos esses três aspectos se articulam em um personagem: as forças armadas. As forças armadas estão de posse de um relatório sobre as urnas que, segundo as declarações, será apresentado somente após as eleições. Em caso de vitória fascista, as urnas não serão questionadas e, em caso de derrota, provavelmente sim. A imprevisível, mas provável, reação irracional de segmentos de massas apoiadas ou não por esquemas paramilitares e civis armados pode gerar o caos, exigindo uma intervenção decidida de órgãos de segurança que não se sabe se agirão para conter ou acirrar (até pela omissão) as desordens.

Por fim, o fator tempo. Os dois meses que faltam para acabar este tumultuado ano não serão tranquilos. Não se pode esperar, caso o fascismo vença, que instituições que nada fizeram diante de uma enormidade de infrações e crimes de responsabilidade, farão algo diante de um presidente eleito com mais de cinquenta por cento dos votos, o apoio de setores do capital, das forças armadas e uma massa histérica de apoiadores. Em caso de vitória da centro-esquerda, pelos motivos apontados, a instabilidade alcançará a temperatura de ebulição.

Diante disso, duas ações são essenciais: primeiro, jogar todos os esforços na reta final para derrotar o candidato da extrema-direita; segundo, ocupar as ruas de forma decidida e massiva, desde agora, depois do resultado das eleições, a fim de garantir a posse. Como o fascista derrotado tentará usar o resto de seu mandato para desfechar ataques aos trabalhadores e à ordem constitucional, é necessário que as manifestações evoluam para formas de enfrentamento mais profundas que mobilizem os trabalhadores de setores essenciais, com paralisações e, se possível, uma greve geral em defesa da democracia e de uma pauta que responda aos interesses dos trabalhadores e o conjunto da população.

Como o lado de lá da fratura está disposto a se impor e tem recursos de poder para tanto, o lado de cá, os trabalhadores, não podem confiar nas instituições que ficaram paralisadas diante do acirramento. Para tanto, só podem contar com sua própria força e a maior delas, uma vez que não temos outros instrumentos de força, é a greve. É preciso aumentar o custo de qualquer aventura fascista, que não se deterá diante de argumentos de legalidade e da institucionalidade democrática, e a única maneira de fazer isso é ocupar as ruas.

Quando as instituições são impotentes, o espaço é ocupado pela luta direta das classes. A fratura se torna exposta, mantras e lamentos não podem curar o tecido e ossos rompidos. Nenhum recuo se torna possível sem uma derrota catastrófica. Sem espaço para fugas, só nos resta avançar. Hic Rhodus, hic saltus.


No Café Bolchevique deste mês, Mauro Iasi faz um balanço do primeiro turno das eleições de 2022 e analisa alguns elementos para compreendermos os resultados do último domingo: a precarização das instituições da República; a aposta no desgaste da figura de Bolsonaro por parte da centro-esquerda; a crença de que a polarização poderia abrir espaço para um terceira via por parte de segmentos do grande capital; o enraizamento da extrema-direita na classe trabalhadora a partir do ressentimento; e o papel das igrejas S.A. e das milícias. Embora o esforço da esquerda deva ser concentrar forças para derrotar Bolsonaro, Mauro Iasi nos lembra da importância de construirmos a oposição popular no Brasil para combater o bolsonarismo e fazer uma reforma política fundada em alicerces populares.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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