A cadeia alimentar

Um mosquito vem sugar meu sangue e lá fora uma enorme árvore farfalha, sem dúvidas e sem notar nossa existência. Em algum lugar, um predador poderoso eleva seu uivo triste em direção a dez sextilhões de estrelas.

IMAGEM: VEETERZY (UNSPLASH)

Por Mauro Luis Iasi

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”
Machado de Assis

Quando passeamos por uma mata, em meio à exuberância da natureza, costumamos imaginar sensações de tranquilidade, harmonia, relaxamento. No entanto, esta distorção de sentidos se deve ao fato de estarmos, via de regra, muito perto de nossa civilização urbana e não de estarmos perdidos nesta aprazível mata.

A mata é um lugar assustador, no qual se joga literalmente a vida e a morte. No seu interior, nossa suposta superioridade se anula. A imensa variedade de vida que ela comporta simplesmente ignora nossos juízos morais, nossa linguagem articulada, nossas filosofias sofisticadas que costumam fazer perguntas e oferecer respostas, nossa habilidade em fazer instrumentos e nossos avanços científicos e tecnológicos. Nada disso faz sentido para aquela massa de formas variadas de vida.

A natureza só entende e reage a dois sentidos fundamentais: fugir diante de uma ameaça ou atacar se for necessário. Em uma variação disso, podemos dizer que, para boa parte das formas de vida, nós somos alimento ou predadores, ao passo que para outra somos absolutamente indiferentes. Para uma formiga que passa por sobre nossa bota, somos tão indiferentes como um tronco de árvore, uma pedra ou qualquer outro obstáculo. Ela não quer nos devorar e não nos atacará a não ser que eventualmente chutemos o formigueiro ou venhamos a sentar sobre suas irmãs. As árvores, se pudessem, nos olhariam como qualquer animal que passa diante delas. E, para algumas espécies, nossa precária existência de sessenta e dois anos não é mais que um momento em sua vida, que pode chegar a séculos.

Na verdade, na natureza, somos alimento para um segmento muito específico da cadeia alimentar: animais com força, garras e dentes afiados, tais como vários felinos, ursos e tubarões. No entanto, a maioria deles não faz de nós seu prato predileto, como no caso evidente dos tubarões, mas também dos grandes predadores. Serpentes, escorpiões e aranhas podem nos matar, mas via de regra não querem e, quando podem, fogem. Os únicos seres vivos que se alimentam de nós com frequência são os mosquitos, pernilongos, pulgas e carrapatos, que buscam nosso sangue como o de qualquer outro animal. Picam, vão embora e a gente se vinga às vezes esmagando um ou outro entre as palmas de nossa mão.

Por nossa mera constituição natural, não estaríamos no alto da cadeia alimentar, somos, como os estudos apontam, muito mais próximos dos carniceiros e coletores de coisas que não podem se defender, como raízes e frutos. Qualquer animal com garras e dentes afiados pode nos destroçar sem muito esforço contra nossas unhas quebradiças, nossos dentes retos e nossa inabilidade de correr rápido e impossibilidade de voar.

Nossa suposta superioridade não vem da natureza, mas da cultura, ou seja, daquilo que como seres sociais fomos capazes de desenvolver para compensar nossa constituição patética utilizando nossos cérebros desenvolvidos e nossos polegares opositores. A maioria dos predadores quando nos encontra, eventualmente, continua nos destroçando sem cerimônia apesar de nossa carne ser menos saborosa que a de uma gazela ou uma foca. Ainda temos pouca chance no mano a mano com eles. A enganosa visão de caçadores corajosos cai por terra assim que lhes retiramos as lanças, armas, redes e arpões. Continuamos os seres patéticos no que tange à natureza. Neste sentido, a autoimagem de estar no alto da cadeia alimentar é um mito. Nos alimentamos de animais domesticados e que não podem se defender adequadamente, criados muitas vezes já em cativeiro. Descendentes valorosos e altivos de lobos passeiam guiados por coleiras e felinos pequenos nos suportam em troca de ração e um cafuné atrás da orelha. Quando rosnam e mostram os dentes, recuamos como há cem mil anos em uma mata.

Estamos no alto da cadeia alimentar quando enfrentamos caixas de sucrilhos e imitação de comida ultraprocessada que pode ser aquecida no micro-ondas. Nosso contato com predadores se dá através da mediação da tela de uma smart TV com resolução de 4 ou 8K. Não estamos no alto da cadeia alimentar, somos carniceiros especializados que pela cooperação e o salto ontológico foram capazes de criar uma ampla defesa que se materializa no espaço urbano. Somos seres heterotróficos secundários ou terciários, isto é, nos alimentamos de produtos que tiram sua energia da natureza (plantas, cerais, etc.) ou de animais que tiram sua energia destes e que foram criados para morrer.

Existe, entretanto, uma forma de vida que parasita todos as outras e que não se encaixa propriamente na lógica de uma cadeia alimentar. Refiro-me às bactérias, micróbios, fungos e vírus que usam outras formas de vida como hospedeiros para sua sobrevivência e multiplicação. Se alguém está no topo, talvez sejam eles, normalmente atuando no momento da decomposição que devolve os elementos que constituíam as formas de vida novamente à massa geral do organismo do planeta. Alguns nos matam de forma mais eficiente que o mais forte dos felinos com suas garras e outros decompõe nosso organismo sem deixar vestígios daquilo que um dia fomos.

Agora começamos a receber notícias que estamos caminhando para produzir sinteticamente nossos alimentos. Cientistas da Universidade de Osaka, no Japão, sintetizaram um bife, com seus músculos, gordura e vasos sanguíneos, utilizando células-tronco isoladas de vacas Wagyu. Não é exatamente uma novidade. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Maastricht em Londres já haviam criado o primeiro hamburguer artificial. O problema era o custo. Os crescentes investimentos em pesquisas, não só em “in vitro meet”, mas em agricultura celular e as diversas imitações de alimento apontam para a viabilização deste setor em substituição às formas tradicionais de conseguirmos alimentos ou algo parecido com isso. Quando pensamos na exploração do trabalhador rural e na crueldade contra animais, assim como o equilíbrio ambiental em um planeta ameaçado, essa poderia ser uma boa notícia. Ficam, no entanto, algumas preocupações.

Marx dizia que quando os seres humanos agem sobre a natureza transformando-a, transformam-se a si mesmos. Por exemplo, quando além de colher frutos e cavar atrás de raízes passamos a plantar as sementes daquilo que comíamos, não apenas alteramos o ciclo de nascimento das plantas com o desenvolvimento da agricultura como deixamos de ser coletores para nos transformarmos em agricultores. A descoberta de como controlar o fogo e a criação de animais, permitindo o hábito de comer carne, alterou nosso cérebro e possibilitou outros saltos que, em síntese, nos levam até à capacidade de produzir sinteticamente aquilo que comeremos.

Em princípio, não estamos fazendo nada de diferente do que todas as espécies, alterando e combinando os elementos oferecidos pela natureza para retirar a energia que necessitamos para viver e procriar, mas agora com a capacidade de intervir em âmbito molecular e genético. A questão, no entanto, é que tipo de ser nos tornaremos então. Um ser que realizou mais um salto para além das barreiras naturais, como pensava Lukács? Nossas bolhas urbanas produzindo sinteticamente alimentos terão que impacto no conjunto do sistema natural? Os seres humanos que serão, provavelmente, 10 bilhões em 2050, fartamente alimentados, não sabemos se de fato nutridos, passearão por matas filosofando sobre a vida, sentirão medo de predadores, oferecerão seu sangue aos mosquitos, ficarão doentes com que tipo de vírus? Que bactérias, fungos, micróbios e vermes devorarão, enfim, nossos cadáveres sintéticos? O que nascerá daí?

Interessante que minha mente não se assombra tanto com essas perguntas e meu ser pessimista se compraz com a possibilidade de matar a fome sem torturar animais. Minhas dúvidas são um pouco mais prosaicas e antigas. O alimento sintético ainda assumirá a forma de uma mercadoria? O acesso ao seu valor de uso só se dará mediante o valor de troca como meio de realização do valor que se acumulará como capital nos bolsos dos grandes proprietários monopolistas? Ao lado da abundância ainda haverá fome? O processo industrial de produzir tudo isso para os lucros das corporações terá que impacto no meio ambiente? A expropriação do ato de produzir alimentos não levará então à subordinação real de toda a humanidade ao capital uma vez que o ato mais fundamental, alimentar-se, exigirá a mediação de enormes cadeias produtivas cujos meios de produção estarão sob a égide da propriedade privada?

Quando os monarcas egípcios desenvolveram técnicas de irrigação passaram a controlar os camponeses não para alimentá-los, mas para construir um enorme império sobre o trabalho escravo. Quem deterá o poder quando a produção sintética de alimentos for propriedade de algumas poucas corporações capitalistas?

Um mosquito vem sugar meu sangue e lá fora uma enorme árvore farfalha, sem dúvidas e sem notar nossa existência. Em algum lugar, um predador poderoso eleva seu uivo triste em direção a dez sextilhões de estrelas.


No Café Bolchevique deste mês, Mauro Iasi faz um balanço do primeiro turno das eleições de 2022 e analisa alguns elementos para compreendermos os resultados do último domingo: a precarização das instituições da República; a aposta no desgaste da figura de Bolsonaro por parte da centro-esquerda; a crença de que a polarização poderia abrir espaço para um terceira via por parte de segmentos do grande capital; o enraizamento da extrema-direita na classe trabalhadora a partir do ressentimento; e o papel das igrejas S.A. e das milícias. Embora o esforço da esquerda deva ser concentrar forças para derrotar Bolsonaro, Mauro Iasi nos lembra da importância de construirmos a oposição popular no Brasil para combater o bolsonarismo e fazer uma reforma política fundada em alicerces populares.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

1 comentário em A cadeia alimentar

  1. Mauro, ontem li com meus netos de 10 e 9 anos e hoje li sozinha. O seu último parágrafo me fez chegar ao barro novamente. “Um mosquito vem sugar meu sangue e lá fora uma enorme árvore farfalha, sem dúvidas e sem notar nossa existência. Em algum lugar, um predador poderoso eleva seu uivo triste em direção a dez sextilhões de estrelas.” Busco alegria em dia cinza aqui em Mato Grosso do Sul.

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