No meu céu não brilha uma, brilham várias estrelas

Uma perspectiva militante para um voto em Lula.

IMAGEM: HUBBLE FRIDAY – HEAVY METAL STARS/NASA

Por Adelaide Ivánova

Não está sendo fácil escrever esse texto. Mesmo essa linha que você lê agora, já foi escrita e apagada miliquinhentas vezes, e já teve outras palavras, e já viu meu desespero quando palavras melhores não vinham em meu socorro. Comecei a escrever para dar conta de entender: por que eu vou votar em Lula em 2022? Para além dos motivos mais óbvios (foi o melhor presidente do Brasil, é o que tem mais condições de vencer Bolsonaro nas urnas, é o que provavelmente vai acabar com a fome etc.), eu precisava de mais respostas. Eu precisava encontrar o viés político da minha escolha.

Meu primeiro voto foi em 2002. Faz vinte anos. E esse voto foi em Lula, mesmo que eu não soubesse muito bem por quê. Eu poderia ter votado aos 16, mas em 1998 nada me interessava menos que política parlamentar – tendo mal sobrevivido aos anos 1980 no nordeste do Brasil, cercada de familiares conscientemente ou inconscientemente traumatizados pela migração interna e pelos anos de ditadura empresarial-militar; tendo sobrevivido aos tropeções da redemocratização, à era Collor, à cantilena de FHC, e vendo que nada mudava, quase tudo era doloroso, tudo era precário. Em Recife, ainda se morria de cólera, ainda se pegava filariose, não tinha (não tem) água nas torneiras, mas todo inverno tinha enchente etc. Com tudo isso, não era de se espantar que em 1998 eu fosse uma anarquista wannabe, que queria que todos fossem à merda. Do fundo do meu coração atarantado, nada parecia ter conserto, e ninguém parecia ter vontade de querer consertar.

Só que em 2002 aquele fuzuê de esperança me pegou de jeito, até hoje não sei exatamente o motivo. Eu estava no segundo ano da faculdade de jornalismo, tinha feito um estágio no INCRA e outro na Secretaria de Justiça, órgão que “cuidava” dos presídios de Pernambuco – experiências que, se não me politizaram, ao menos me fizeram acordar para a vida. Enquanto isso, meu avô Raimundo, agricultor semialfabetizado, aposentado pelo Funrural, um delicado ambientalista, estava muito doente e perto de morrer, fato que me mudou, também – aliás, a lembrança dele ainda me muda, todo dia. Votei em Lula nesse contexto, sem saber exatamente por que, apenas sentindo que era o melhor.

Vovô só viveu os dois primeiros meses do mandato de Lula e morreu num hospital do SUS, ainda sucateado naquele março de 2003, mas que melhoraria exponencialmente nos anos que se seguiram, sob o governo do seu conterrâneo (Garanhuns, aliás, nem é tão longe de Gravatá do Jaburu, onde vovô nasceu, ficando as cidades a apenas 140km uma da outra).

Em 2022, mas diferente das eleições de 2006, eu me sentia de volta no mesmo lugar mental de 2002: votar em Lula sem saber direito por quê. Os motivos da confusão mental são diferentes: na época, era ignorância política. Hoje, é por politização. Hoje, não posso mais fazer a Roberta Miranda, sem saber o que dizer, só sentir. Preciso dar conta do dilema “como votar em Lula?”. Como, com ele tendo Geraldo Alckmin como vice, com ele tendo recebido enormes doações de Rubens Ometto (um paulista bilionário do agro), com ele falando que Cuba não tem democracia e tudo mais? Preciso ser capaz de votar com o mínimo de dissonância cognitiva possível.

A diferença crucial entre a Adelaide de 2002 e a de 2022 é que eu não somente me politizei, com Marx e as teóricas marxistas, mas sobretudo eu me organizei politicamente. 2022 marca não somente o sétimo ano de filiação política, mas marca antes de mais nada uma guinada completa na quantidade de tempo e esforços que dedico a mudar o mundo. E no bojo dessa experiência militante, de dedicação e disciplina, que eu encontrei a resposta. A experiência de aprender a organizar comunidades em torno de um problema compartilhado, e com elas me levantar diante de um inimigo comum (e até derrotá-lo), me ensinou a colocar a política parlamentar em perspectiva: a luta maior está fora dos parlamentos, fora das eleições. Ela está no dia-a-dia. 

Eu vou votar em Lula porque eu sou organizadora comunitária. Não foi apenas como militante partidária, nem apenas com leituras de textos marxistas, que entendi o que é necessário para melhorar a vida da gente. Esse aprendizado veio na construção coletiva e cotidiana, nos movimentos sociais de base, tantas vezes uma experiência atordoante, que nos torna muito humildes diante da complexidade da vida (afinal, as pessoas ao lado da gente na luta são cheias de contradições, nem sempre são de esquerda, muitas vezes são racistas, quase sempre são machistas e tantas outras coisas que bem sabemos). Foi com essa experiência que aprendi que, se por um lado, não se faz revolução em terra arrasada, tampouco é um governante ou um parlamento, dentro da democracia burguesa, que vão trazer as mudanças que correspondem à minha visão de mundo.

Eu vou votar em Lula porque, sendo organizadora comunitária, votarei em conformidade com a decisão tomada pelos maiores movimentos sociais do país. Se, como sugere Marighella, é a ação quem faz a vanguarda e os militantes se guiam por esta, então eu voto em concordância com o MST, com o MTST, com a Frente Povo Sem Medo etc.

São esses mesmos movimentos que irão, depois que Lula for eleito, pautar os debates e os embates, as cobranças e as lutas. Muito provavelmente é essa mesma parte da base eleitoral de Lula que será, eventualmente, sua oposição – porque as alianças com Alckmin e com o agronegócio não são só um apertinho de mão, esses atores vão cobrar, mais cedo ou mais tarde, o preço pelo seu apoio. São os movimentos sociais que terão que fiscalizar e pautar a extensão, ou mesmo a existência, dessas cobranças – sobretudo fora, mas idealmente também dentro da Câmara. Aliás, é também por isso que é tão importante eleger candidatos de esquerda para Câmara e Senado, para que Lula tenha condições mínimas de governar.

Partidos como o PCB e a ala mais radical da esquerda politizam e elevam o nível dos debates, e os movimentos sociais azeitam a engrenagem com sua imaginação política e ação planejada de longo prazo, com frescor de ideias e de iniciativa. Enquanto isso, a esquerda que só olha para eleição (e só vê Lula como candidato) segue cada vez mais empoeirada. Ela, e seus simpatizantes, terão que dar conta de enxergar e debater (e combater!) suas próprias contradições.

Em resumo: a posição da parte do PSOL que queria sair com candidatura própria está correta, assim como a linha adotada pelo PCB está correta, assim como a ala do PSOL que apoia Lula está, assim como os movimentos sociais que fecharam com Lula estão. É que todas essas escolhas têm contradições, nenhuma delas é perfeita. O que só confirma, para mim, que o trabalho maior sempre estará fora do contexto eleitoral. É o que acontece fora, antes e depois das eleições que importa: no trabalho de base, de formiguinha, de organização comunitária, de formação política, de vigílias, de atos, de encontros, as plenárias, as greves, as ocupações etc.

Torço para que o PT se reinvente, e que o personalismo da esquerda, petista ou não, seja superado por um pluralismo funcional e, sobretudo, militante. Não tenho dúvidas de que são os movimentos sociais, as lutas organizadas pelos comuns, que farão com que isso aconteça. Até lá, e de momento, a gente aperta 13 dia 2 de outubro, mas sem perder a disciplina organizativa e o rigor crítico, jamais.



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Adelaide Ivánova é pernambucana, poeta e organizadora comunitária da campanha Deutsche Wohnen und Co. Enteignen, que luta pela expropriação de grandes empresas do aluguel, em Berlim, onde mora desde 2011. Em 2017, publicou o livro de poesia documental “o martelo”, que investiga a re-traumatização causada por um processo judicial por estupro. Em 2018 o livro venceu o prêmio Rio de Literatura na categoria poesia.

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