Centenário do PCB: o “bloco histórico” gramsciano e a luta pela conquista da hegemonia na história do PCB
Conquistar a hegemonia dos legítimos interesses dos trabalhadores na luta por uma democracia que seja política e social e por transformações revolucionárias que abram caminho para sua real emancipação da exploração capitalista é tarefa urgente das forças políticas comprometidas com a revolução socialista e o comunismo.
Festa da rendição da Alemanha na Praça da Sé, São Paulo, 8 de maio de 1945.
Por Anita Leocadia Prestes
As concepções gramscianas
Ao abordar a questão do esforço pela conquista da hegemonia nas sociedades movidas pelo conflito social e pela luta entre as diferentes classes sociais, o historiador britânico E.P. Thompson, escreveu:
[…] não posso aceitar a opinião […] de que a hegemonia imponha um domínio total sobre os governados – ou sobre todos aqueles que não são intelectuais – que atinge até mesmo o limite de sua experiência, e implanta em seus espíritos desde o seu nascimento categorias de subordinação, das quais são incapazes de libertar-se e, para cuja correção, sua experiência resulta impotente (THOMPSON, 1984, p. 60)
Observação fundamental para quem pretende contribuir para a construção de uma outra hegemonia ou, dito de outra maneira, uma contra-hegemonia – uma via revolucionária comprometida com a criação de propostas libertadoras e de emancipação da grande maioria dos trabalhadores submetidos à exploração capitalista.
Os comunistas brasileiros, como boa parte dos seus contemporâneos no movimento comunista internacional, afirmaram sempre em seus documentos que, na atuação política de seus partidos, uma das tarefas mais importantes seria a conquista da hegemonia da classe operária em relação aos diferentes setores sociais aliados nos processos revolucionários em pauta. Meta necessária para os objetivos revolucionários traçados serem efetivamente alcançados.
O conceito de hegemonia havia sido utilizado por Vladímir I. Lênin, o grande dirigente comunista russo, na conjuntura revolucionária de 1905 na Rússia, para destacar que, devido à incapacidade da burguesia desse país, o proletariado, em aliança com o campesinato, deveria assumir o papel dirigente da revolução democrático-burguesa que estava posta na ordem do dia.
Para… [Lênin]…o proletariado deveria assumir todas as reivindicações populares. Lênin concebia a ditadura do proletariado como direção de um sistema de alianças. Fundamentava a hegemonia do proletariado como capacidade de direção em todos os níveis. […]
Gramsci retomou esse conteúdo e fez da hegemonia um dos conceitos teóricos chave do seu pensamento. […]
No essencial, os problemas da hegemonia são fundamentalmente questões de alianças de classes e grupos sociais. Trata-se de uma síntese de direção e de dominação, de consenso e de força, que deve ser entendida como capacidade de um determinado grupo para dirigir os seus aliados e como ação de força contra os adversários. Um grupo social é hegemônico quando identifica os traços fundamentais da situação histórica para tornar-se protagonista de reivindicações de outras classes (BIGNAMI, s.d., p. 23-24).1
Mas como era entendida, na maioria dos casos, tal luta pela hegemonia da classe operária? Ao não levar em conta o papel desempenhado pelo consenso e a hegemonia alcançados pelos intelectuais orgânicos das classes dominantes na sociedade civil (na concepção gramsciana de tais categorias), ao desconsiderar, frequentemente, o papel decisivo do consenso e da hegemonia construídos pela burguesia nas sociedades contemporâneas, os comunistas, muitas vezes, subestimaram a importância da luta ideológica. Ainda que essa fosse bastante enfatizada nos documentos partidários, ao não perceber a necessidade imperiosa, para o êxito de qualquer transformação revolucionária, da construção de uma contra-hegemonia revolucionária na sociedade civil, os dirigentes comunistas, por vezes, abdicaram na prática de um empenho real voltado para a formação de intelectuais orgânicos comprometidos com a elaboração de tal contra-hegemonia e com a luta pela sua conquista.
Na história do PCB, tais fatores contribuíram para que a ideologia burguesa alcançasse significativa penetração em suas fileiras. Desde a sua fundação, na década de 1920, as posições nacional-libertadoras, sob diferentes formas, viriam a tornar-se a concepção ideológica dominante entre os comunistas brasileiros. Como pude mostrar em livro de minha autoria:
A comparação entre as várias formas de nacionalismo que estiveram presentes em diversos momentos da trajetória política dos comunistas brasileiros contribui para que melhor se possa perceber a permanência nas fileiras do PCB da ideologia nacional-libertadora – ideologia esta que, encontrando ampla receptividade na sociedade brasileira dos anos 1950, sobrepôs-se à ideologia do proletariado, ou seja, contribuiu para que o PCB continuasse a ser, como antes, um partido progressista, movido pelos ideais nacionalistas e democráticos, cuja real implementação se tornara inviável devido às características do desenvolvimento capitalista brasileiro, subordinado e associado ao grande capital internacionalizado (PRESTES, A.L., 2010, p. 154).
O desconhecimento da teoria gramsciana, assim como de suas bases leninistas, no que concerne à luta pela hegemonia na sociedade civil contribuiu para que os dirigentes do PCB incorressem num sério risco, para os marxistas, advertido por Eric Hobsbawm, de “aceitar o nacionalismo como ideologia e programa, ao invés de encará-lo realisticamente como um fato, uma condição de sua luta como socialista” (HOBSBAWM, 1980, p. 310).
Conforme pude observar, ao pesquisar a trajetória dos comunistas brasileiros,
se o PCB, desde o início de sua formação, sofreu forte influência das ideias e das posturas nacionalistas presentes na sociedade brasileira da época, nos anos 1940-1950 – quando o nacionalismo se tornou um verdadeiro “divisor de águas” – a adesão do PCB às teses nacionalistas então em voga seria particularmente marcante (PRESTES, A.L., 2010, p. 59).
E tais teses ficaram consagradas na literatura com a etiqueta de nacional-desenvolvimentismo.
A incompreensão da necessidade de elaborar um projeto revolucionário viável para a construção de uma contra-hegemonia, ou seja, capaz de conquistar e unificar amplos setores populares, formando um consenso de contestação ao consenso dominante – fabricado pelos intelectuais orgânicos da burguesia através, principalmente, do controle dos meios de comunicação de massa –, levou o PCB, na prática, a abandonar os objetivos revolucionários consagrados nos documentos partidários, a enveredar irremediavelmente pelo caminho do reformismo burguês. Na história do PCB, principalmente a partir dos anos 1950, o reformismo, se caracterizaria pela adesão à ideologia do nacional-desenvolvimentismo e a permanência da ilusão na possibilidade de alcançar um capitalismo autônomo em nosso país, com a colaboração de uma hipotética burguesia nacional.
A ausência de um projeto revolucionário viável para as condições do Brasil, contribuiu para que o PCB se mantivesse durante décadas apegado às formulações de uma revolução por etapas, explicitada numa estratégia nacional-libertadora, cuja inadequação à realidade do país acarretava a adoção por parte do partido de drásticas viradas táticas ora à “esquerda” ora à “direita” (PRESTES, A.L.,1980). Como consequência, os comunistas brasileiros pouco contribuíram para uma efetiva acumulação de forças, conforme as diretrizes de grande parte dos documentos partidários.
As categorias gramscianas de guerra de posição e guerra de movimento (ou assalto ao poder) nos ajudam a melhor compreender a política do PCB. Podemos dizer que uma estratégia política reformista e inadequada às condições do Brasil não ajudava os comunistas a acumularem forças num processo de guerra de posição, segundo Gramsci. Ao mesmo tempo, favorecia a afirmação de uma concepção golpista de assalto imediato ao poder, ou guerra de movimento, tática de sucesso improvável nas condições do mundo ocidental pós Primeira Guerra Mundial, conforme Gramsci explicitou nos Cadernos do Cárcere. Para o filósofo e dirigente comunista italiano, no mundo contemporâneo, em que a sociedade política está vinculada a uma robusta sociedade civil, a guerra de posição seria o caminho para acumular forças e preparar as condições para o sucesso dos revolucionários na conquista do poder, momento em que a guerra de movimento seria oportuna e necessária (GRAMSCI, 2000, V.3, p. 255-257, 261-262).
Pude observar que na história do PCB, assim como em grande parte dos seus congêneres em diversos continentes, a defesa de políticas de alianças com outros partidos políticos e com outras forças sociais e políticas pode ser considerada uma constante. Com certa frequência aparecem referências à necessidade de formar um bloco histórico de setores sociais possuidores de interesses e reivindicações comuns ou convergentes. Na realidade, trata-se da tentativa de formação de uma aliança baseada numa certa identidade de interesses econômicos e sociais. Entretanto, o conceito gramsciano de bloco histórico pressupõe o momento político dessa aliança. “Sua constituição está assentada em classes ou grupos concretos definidos pela sua situação na sociedade, mas as ideias cumprem um papel fundamental no que se refere à sua coesão.” Em outras palavras, no bloco histórico, há “uma estrutura social – as classes e grupos sociais – que depende diretamente das relações entre as forças produtivas; mas também há uma superestrutura ideológica e política” (BIGNAMI, s.d., p. 27). Gramsci escrevia nos Cadernos do Cárcere que, segundo Marx, “uma persuasão popular tem, com frequência, a mesma energia de uma força material”. Tal afirmação, segundo o filósofo italiano,
conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais (GRAMSCI, 2001, V.1, p. 238).
Os elementos citados da concepção gramsciana de bloco histórico permitem perceber o frequente empobrecimento de tal conceito no âmbito dos partidos comunistas. Nas fileiras do PCB, semelhante postura teria como consequência a subestimação pelo trabalho ideológico de formação teórica e política não só dos seus quadros como também de lideranças populares. A incompreensão da necessidade de criar um bloco histórico contra-hegemônico, capaz de conduzir o processo revolucionário à vitória, condicionou o desarmamento ideológico e político dos comunistas diante do bloco histórico dominante e a inevitável capitulação frente ao reformismo burguês.
As indicações gramscianas sobre o conceito de partido político também são significativas, quando se quer escrever a história de um partido. Segundo Gramsci,
pode-se dizer que escrever a história de um partido significa nada mais do que escrever a história geral de um país a partir de um ponto de vista monográfico, pondo em destaque um seu aspecto característico. Um partido terá maior ou menor significado e peso precisamente na medida em que sua atividade particular tiver maior ou menor peso na determinação da história de um país. (GRAMSCI, 2000, V.3, p. 87)
Tendo como base as considerações de Gramsci sobre a formação do grupo dirigente do Partido Comunista por ele fundado e dirigido, verifiquei que, para melhor compreender a orientação política posta em prática pelo PCB a partir dos anos 1940, seria necessário analisar a reestruturação pela qual passou nesse período a direção partidária. Gramsci escrevia que “todos os problemas de organização são problemas políticos” (GRAMSCI, 2004, V.2, p. 348) e acrescentava: “É preciso criar no interior do Partido um núcleo […] de companheiros que tenham o máximo de homogeneidade ideológica e, portanto, consigam imprimir à ação partidária um máximo de unidade de orientação” (ibidem, p. 129-130). A tal núcleo caberia o papel de garantir a “formação de uma vanguarda proletária homogênea e ligada às massas” (ibidem, p. 351). Para Gramsci, a formação do grupo dirigente ou núcleo dirigente constituiria um ponto de partida fundamental para a construção do Partido Comunista e, consequentemente, as características de tal grupo dirigente iriam definir o perfil da organização partidária em questão.
A pesquisa da história dos comunistas brasileiros me levou à conclusão de que na Conferência da Mantiqueira do PCB, realizada em agosto de 1943, foi constituído um novo grupo dirigente, que, embora no decorrer dos anos, sofreria algumas modificações, seus elementos mais destacados foram os que orientaram a reconstrução do partido e o dotaram de um tipo de organização que correspondia aos objetivos políticos traçados naquela Conferência. O caráter nacional-libertador da política então aprovada, em continuidade à orientação partidária anterior, seria sua marca registrada. As características do novo grupo dirigente iriam definir o perfil da organização partidária que viria a existir daí por diante. O berço do novo PCB, reconstruído após seu esfacelamento em 1940, seria a Conferência da Mantiqueira, e o seu perfil foi determinado pelo núcleo dirigente constituído nesse conclave.
Ao estudar a trajetória dos comunistas brasileiros, é possível perceber a atualidade das considerações gramscianas concernentes “à capacidade do partido reagir contra o espírito consuetudinário, isto é, contra as tendências a se mumificar e tornar anacrônico”. Gramsci escrevia:
Os partidos nascem e se constituem como organização para dirigir a situação em momentos historicamente vitais para suas classes, mas nem sempre eles sabem adaptar-se às novas tarefas e às novas épocas, nem sempre sabem desenvolver-se de acordo com o desenvolvimento do conjunto das relações de força […] no país em questão ou no campo internacional. […] A burocracia é a força consuetudinária e conservadora mais perigosa; se ela chega a se constituir como um corpo solidário, voltado para si mesmo e independente da massa, o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, é esvaziado de seu conteúdo social e resta como que solto no ar (GRAMSCI, 2000, V. 3, p. 61-62).
Palavras adequadas à caracterização da crise que atingiu o PCB no final dos anos 1970 e levou Luiz Carlos Prestes a lançar a “Carta aos Comunistas” de março de 1980 (PRESTES, L.C., 1980).
O VI Congresso do PCB (1967): a continuidade da estratégia nacional-libertadora
Realizado após o golpe civil-militar de 1964, em condições de rigorosa clandestinidade, o VI Congresso do PCB manteve a estratégia nacional-libertadora, vigente desde os primeiros anos do partido, adotando ao mesmo tempo a tática de fortalecer o movimento popular e de massas na luta pela conquista das liberdades democráticas gravemente restringidas pelos governos ditatoriais. Entre as diversas possibilidades de atuação, os militantes comunistas foram orientados a ingressarem nas fileiras do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) – o partido da oposição consentida, criado pela ditadura após a extinção de todos os partidos anteriormente presentes na vida política nacional.
Naquelas circunstâncias de derrota dos setores progressistas e de esquerda, era justo concentrar esforços na mobilização popular em prol da reconquista dos direitos democráticos, mas, como foi apontado por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB, os comunistas tinham o dever de dar prosseguimento à luta pelos objetivos revolucionários do partido. Limitar-se ao combate pelas liberdades democráticas significava postar-se a reboque dos liberais da burguesia e de sua defesa dos privilégios de classe exploradora.
Como foi destacado por Fidel Castro, em discurso pronunciado à época do governo de Salvador Allende, no Chile:
Um verdadeiro revolucionário procura sempre o máximo de mudanças sociais. Mas procurar o máximo de mudança social não significa que em qualquer momento se possa propor esse máximo, senão que, em determinado momento e considerando o nível de desenvolvimento da consciência e das correlações de forças, pode-se propor um objetivo determinado. E uma vez conquistado esse objetivo, propor-se outro objetivo mais à frente. O revolucionário não tem compromisso de ficar parado no caminho (CASTRO RUZ, 1972, p.90).2
Ainda nos marcos da estratégia nacional-libertadora, Prestes entendia que os comunistas, para não abdicarem do seu papel revolucionário, deveriam estar sempre empenhados em impulsionar o movimento operário e popular rumo a formas mais avançadas de democracia. Formas que constituíssem momentos de um processo voltado para o estabelecimento de um governo revolucionário que, mesmo antes da extinção do capitalismo, significasse o início de uma transição ao regime socialista. Segundo Prestes:
A conquista de um regime democrático não deverá significar […] uma simples volta ao passado. A frágil e vulnerável democracia de 1964 não mais corresponde aos anseios do povo. A luta de todos os patriotas e democratas só pode ter por fim a derrota definitiva do fascismo e a inauguração de uma nova democracia, que assegure amplas liberdades para o povo, uma democracia econômica, política e social, que possibilite a solução dos problemas nacionais mais graves e imediatos (PRESTES, L.C, 1974).3
Esclarecendo o conteúdo dessa nova democracia, escrevia o secretário-geral do PCB:
Trata-se da conquista de uma democracia que seja estável, que impeça a volta do fascismo. Para isso, a nova democracia terá que tomar medidas que limitem o poder econômico dos monopólios e dos latifundiários e que se orientem no sentido de sua completa liquidação. […] A nova democracia deverá ser o regime estabelecido por um governo das forças da frente única patriótica e antifascista, abrirá caminho para as profundas transformações de caráter democrático e anti-imperialista, já hoje exigidas pela sociedade brasileira (PRESTES, L.C, 1974).4
Tanto a direção do PCB quanto a sua militância – formadas segundo a concepção de concentrar esforços na luta pela conquista da libertação nacional da dominação imperialista, contribuindo assim para um suposto desenvolvimento capitalista autônomo do país – não estavam preparadas para levar adiante a construção de um bloco histórico contra-hegemônico voltado para a luta por um poder revolucionário que significasse o início de uma transição ao socialismo. Conforme advertiu Prestes: “É impossível construir um partido efetivamente revolucionário, capaz de enraizar-se na classe operária, se se baseia numa falsa concepção da revolução” (PRESTES, L.C, 1981).5
A falsa concepção nacional-libertadora da revolução, que marcou a história do PCB durante décadas, impediu que se viabilizasse uma atividade robusta, como se fazia necessária, de construção de bases comunistas, nas principais concentrações operárias e nos diferentes setores constituídos por trabalhadores, que estivessem voltadas para a luta pelos objetivos revolucionários socialistas de um partido comunista. Na prática, os dirigentes e militantes do PCB eram levados a privilegiar a formação de alianças de cúpula com aliados de distintos setores burgueses e pequeno-burgueses, contribuindo, por exemplo, para que o bloco histórico de oposição à ditadura fosse encabeçado pelos liberais do MDB. Na ausência de setores revolucionários organizados e engajados na luta pela democracia, ficaria descartada a formação de um bloco histórico contra-hegemônico por eles liderado, o que marcou o processo de transição do regime ditatorial a uma democracia tutelada pelos militares, consagrada na Constituição de 1988.
O PCB e a retomada das greves operárias a partir de 1978
A partir dos anos de 1978/79, com a retomada das greves operárias, principalmente no chamado ABC paulista, revelou-se a ausência de qualquer protagonismo do PCB junto ao movimento operário. A violenta repressão da ditadura contra os comunistas foi responsável, em grande medida, por essa situação, o que não invalida a constatação de que o “desafio histórico”, formulado pelo PCB, de organizar o partido nas grandes empresas industriais não fora implementado no decorrer de décadas, quando as condições eram mais propícias para sua realização. Tal situação era também reveladora de que os comunistas não haviam construído os pressupostos necessários para avançar na conquista da hegemonia no bloco histórico que viria a formar-se no processo de luta contra a ditadura e de transição para um regime democrático.
Frente a essa realidade, a maioria do Comitê Central (CC) do PCB aceitava o papel subalterno destinado pela burguesia liberal ao movimento operário e popular no bloco histórico antiditatorial. Luiz Carlos Prestes, entretanto, defendia a necessidade de rever a estratégia nacional e democrática ainda presente no partido e promover uma nova orientação política voltada para a reorganização das fileiras comunistas visando a luta pela formação de um bloco histórico revolucionário constituído pelas forças antimonopolistas, anti-imperialistas e antilatifundiárias, que abrisse caminho para a transição ao socialismo. Para o êxito de tal estratégia seria necessário dirigir os esforços da militância comunista para a organização e a formação política e ideológica de bases sólidas no movimento operário e popular (PRESTES, A.L., 2015, Cap. XVI-XVIII).
Naqueles anos de 1978/79, a ditadura militar era acossada pela crise econômica, pelas derrotas eleitorais da ARENA (Aliança Renovadora Nacional, o partido governista), pelo advento das lutas operárias e o crescimento das mobilizações populares democráticas, dentre as quais destacava-se o movimento de luta pela anistia dos presos e perseguidos políticos. Nessas condições, a ditadura buscava sua institucionalização e, junto com os liberais burgueses, construía uma transição pactuada sob o controle dos militares.
Enquanto a maioria do CC do PCB defendia a adesão e a submissão aos liberais do MDB, Prestes postulava a luta dos comunistas pela ampliação da presença popular na Frente Única democrática em formação. Nas condições descritas, desfavoráveis aos trabalhadores e aos setores populares, a proposta do então secretário-geral tornara-se a única viável, pois os comunistas não haviam avançado na construção da hegemonia dos trabalhadores no bloco histórico antiditatorial. A capitulação da maioria do CC do PCB diante dos liberais burgueses, justificada com a tese de “não aguçar tensões para evitar o retrocesso”, dificultou o processo de construção de uma transição à democracia que correspondesse aos anseios populares.
Ao mesmo tempo, não encontra sustentação na realidade brasileira do final da década de 1970 e início dos anos 1980 a tese defendida por alguns autores, segundo a qual existiria a possibilidade de transcender, a partir de meados da década de 1970, uma “frente pluriclassista” e de formar uma “robusta frente única classista”, com base nos “movimentos operários da região do ABC paulista” (MAZZEO, 2022, p. 183-84), ou de “com a emergência do movimento operário, a tática de frente democrática deveria mudar para que o Partido se incorporasse ao ascenso das lutas dos trabalhadores” (COSTA, 2022, p. 20). Na verdade, os alegados movimentos dos trabalhadores, embora importantes, foram localizados, marcados pelo acento nas reivindicações econômicas, de conteúdo político limitado, e não tiveram força para modificar substancialmente a correlação de forças então presente no cenário político nacional. Os comunistas pouco haviam investido na formação de bases operárias preparadas para imporem sua hegemonia no processo de transição da ditadura a um regime democrático, ou, em outras palavras, na formação do bloco histórico antiditatorial.
Algumas considerações finais
Não seria por um golpe de mágica que se conquistaria a hegemonia da classe operária seja no bloco histórico antiditatorial seja no bloco histórico revolucionário com vistas à transição ao socialismo.
Conquistar a hegemonia dos legítimos interesses dos trabalhadores na luta por uma democracia que seja política e social e por transformações revolucionárias que abram caminho para sua real emancipação da exploração capitalista é tarefa urgente das forças políticas comprometidas com a revolução socialista e o comunismo. Para alcançar tais objetivos, a experiência das lutas do proletariado mundial nos mostra que é necessário um longo e persistente trabalho de organização e formação ideológica dos elementos mais combativos do proletariado e dos setores explorados pelo capital.
Essa almejada hegemonia no bloco histórico contra-hegemônico constitui objetivo a ser posto em prática por uma organização com profundas raízes nos setores populares e dos trabalhadores, regida pela ideologia marxista e capaz de aplicá-la criadoramente à realidade brasileira, elaborando uma estratégia política que seja correta e, consequentemente, viável nas condições de nosso país. Tal organização cumprirá o papel de um partido comunista efetivamente revolucionário.
Notas
1 Grifo do autor; tradução do espanhol desta autora.
2 CASTRO RUZ, Fidel. Fidel en Chile: textos completos de su diálogo con el pueblo. Santiago: Quimantú, 1972, p.90 apud BORON, Atílio A. “Estudio introductorio”. In: Rosa Luxemburg. Reforma social o revolución? Buenos Aires: Luxemburg, 2010, p.74; tradução do espanhol e grifos meus.
3 “Manifesto de Prestes” (29/10/1974), Voz Operária, suplemento, n. 118, dez. 1974; grifos meus.
4 Idem; grifos meus.
5 PRESTES, Luiz Carlos, “Aprender com os erros do passado para construir um partido novo, efetivamente revolucionário (25 de março: o PCB completa 59 anos de lutas pelos interesses dos trabalhadores, pelas liberdades e por todas as causas justas do nosso povo)”, Voz Operária, nº 167, março/1981.
Referências bibliográficas
BIGNAMI, Ariel. El pensamiento de Gramsci: una introduccion. 2a ed. Buenos Aires: Editorial El Folleto, s.d.
COSTA, Edmilson. PCB: 100 anos de luta pelo socialismo no Brasil. In: POMAR, V. (coord.). 100 anos de comunismo no Brasil. Curitiba: Korter, 2022, p. 8-29.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, V. 1.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, V.3.
GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, V. 2.
HOBSBAWM, Eric. Nacionalismo e marxismo. In: PINSKY, J. (org.). Questão nacional e marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 294-323.
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia inacabada: a política dos comunistas no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2022.
PRESTES, Anita Leocadia. “A que herança devem os comunistas renunciar?”, Oitenta, Porto Alegre, LP&M, nº 4, 1980.
PRESTES, Anita Leocadia. Os comunistas brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a política do PCB. São Paulo, Brasiliense, 2010.
PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015.
PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.
THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase; estúdios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Crítica, 1984.
Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.
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Anita Leocadia Benario Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres da rua Barminstrasse, em Berlim, na Alemanha Nazista, é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benario Prestes e Luiz Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
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