Sobre sereias e contos de fadas

A história da pequena sereia se baseia em outras histórias muito antigas, algumas não europeias, e ela deve seguir mudando se quiser sobreviver.

Imagem: Pintura de Sonya Namarnyilk representando as sereias de água doce de Arnhem Land, conhecidas como Yawk Yawks.

Por Janaina Tokitaka

Se você é uma das pessoas que se incomodaram com a escolha de uma atriz preta e extremamente talentosa para interpretar a pequena sereia do novo live action da Disney, devo te dizer que provavelmente a causa do seu incômodo está mais no seu racismo do que em qualquer argumento sobre pureza folclórica ou respeito à história original.

Sinto te informar que um dos registros mais antigos de uma sereia é assírio, ou seja, a primeira sereia provavelmente era asiática e marrom, não branca. Trata-se da deusa Atargatis, metade peixe, metade humana. Não gostou? Sem problemas, temos também a tailandesa sereia Suvannamaccha. Nessa lenda, uma sereia se apaixona por um humano. Familiar, não? Ela precede a história de Hans Christian Andersen em alguns séculos. Ah, mas sereia negra não existe! Me deixa triste que você, brasileiro, não conheça a orixá Yemanja, muitas vezes representada como um rabo de peixe, ou que pense que ela é branca. Temos também a dominicana Mama D’leau, protetora e curandeira dos animais aquáticos, representada como uma mulher belíssima de longos cabelos cacheados. Ou as criaturas Nommo, espíritos de Mali, anfíbias, meio humanas, meio peixes e muito enigmáticas. Conhecidas como “Os Professores”, “mestres da água” ou “monitores”, são muito reverenciadas. Não podemos esquecer de Mami Wata do folclore da Etiópia, terrível e indomável, extremamente antiga e poderosa. Temos Iara dos nossos povos originários, definitivamente não branca. 

Se você já está batendo o pé, impaciente, e vai puxar o argumento de que “A pequena Sereia” é branca pois é a dinamarquesa, escrita por Hans Christian Andersen, sugiro que você leia a história original e reveja a versão da Disney para entender que muita coisa mudou de uma versão para a outra. Ou na animação de 1989 a sereia escolhe tirar a própria vida e termina virando um anjo no desfecho final? Minha memória pode estar me enganando. Essa abobrinha de que existe uma versão “original” dos contos de fada foi uma bobagem inventada no século XIX. Isso não existe. A história da pequena sereia se baseia em outras histórias muito antigas, algumas não europeias, e ela deve seguir mudando se quiser sobreviver.


Para pensar mais sobre o tema

Lute como uma princesa: contos de fadas para crianças feministas, de Vita Murrow

E se o destino das princesas não se resumisse em casar com o Príncipe Encantado e viver feliz para sempre? Conheça um novo lado de suas princesas favoritas nesta exuberante coletânea em que 15 contos de fadas são recontados para uma nova geração de crianças. Em Lute como uma princesa, Vita Murrow e Julia Bereciartu ousaram criar um mundo de princesas poderosas onde Bela é uma destemida detetive e se aventura sem medo pela Floresta Proibida, Rapunzel torna-se uma renomada arquiteta que usa suas habilidades para mudar a realidade de sua comunidade e Cinderela é uma líder trabalhista em busca de justiça para todos.
Disponível em livrarias de todo o país!


Julián é uma sereia, de Jessica Love

Enquanto andava de metrô com a avó, Julián avistou um grupo de mulheres extremamente arrumadas. O cabelo delas era esvoaçante e em tons vivos, seus adornos reluziam, e os vestidos terminavam numa belíssima cauda de sereia. A alegria delas era contagiante. Já em casa, ainda encantado, Julián sente vontade de se arrumar como uma sereia. Mas o que será que a avó vai achar da bagunça que ele fez – e, ainda mais, o que ela vai pensar sobre a forma como Julián se vê? Um livro delicado e colorido sobre amor e, principalmente, respeito.

Leotolda, de Olga de Dios

Tuto, Catalina e Kasper estão à procura de sua querida amiga Leotolda e, durante essa busca fantástica, descobrem como as experiências compartilhadas com outras pessoas são fundamentais na vida. Passando por situações inusitadas em um tempo não muito tradicional, os três contam com a ajuda de dinossauros, sereias, outros personagens especiais e, inclusive, do próprio leitor! A obra da espanhola Olga de Dios não é apenas um livro, mas um projeto aberto, que estimula a criatividade, uma vez que cabe ao leitor moldar o fim da aventura de Leotolda e seus amigos


Para conhecer Janaina Tokitaka

Pode pegar!, de Janaina Tokitaka

Um coelhinho de saia, batom e sapatinho de salto. Outro coelhinho de botas, calça e gravata. Assim fica fácil saber quem é menina e quem é menino! Mas e quando a menina quer usar botas pra atravessar o riacho? E quando o menino precisa do salto pra ficar mais alto? Batom serve pra desenhar? E esse chapéu, é de quem? Trocar de roupa é divertido! E agora, como faz pra saber quem é menina e quem é menino? Bom… Mas isso importa mesmo? O livro tem como protagonistas um coelhinho e uma coelhinha que não veem problema em trocar de roupa um com o outro, ainda que estas remetam a universos bastante distintos: o masculino e o feminino.

Fala baixinho, de Janaina Tokitaka

No parque, dois garotos se divertem jogando futebol, até que um deles chuta a bola para longe, fora do campo de visão. Ambos, então, começam a discutir e se acusar, aos berros e sem descobrir onde a bola caiu. Ali perto, uma menina que lê um livro tranquila acompanha tudo e tenta ajudá-los, mas sua voz, baixinha, acaba soterrada por acusações e gritarias. É na ausência dos berros que o falar baixinho da menina se faz ouvir: a bola está ali! Um livro delicado sobre as sutilezas da comunicação, sobre a voz e a escuta. 

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Janaina Tokitaka é bacharel em artes visuais pela Universidade de São Paulo (USP), escritora e roteirista. Começou sua carreira como escritora quando publicou seu primeiro álbum ilustrado, Tem um monstro no meu jardim (Escrita Fina, 2010). Desde então, publicou quarenta outras obras para o público infantojuvenil. Pela Boitempo, lançou Pode pegar! (2017) e Fala baixinho (2020).

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