“Eu vou de carro, pô!”: mobilidade urbana em Pernambuco e a campanha eleitoral

Sobre mobilidade urbana em Pernambuco e a dupla moral da direita vai-pra-Cuba durante campanhas eleitorais.

Por Adelaide Ivánova

Toda eleição acontece a mesma coisa: um jornalista ou candidato (geralmente de direita) confronta outro candidato (geralmente de esquerda) com a seguinte pergunta: “Quando o senhor ficou doente, por que não fez o tratamento no SUS?”. Esse embate já aconteceu diante dos nossos olhos milhões de vezes – contra Lula, por ele ter tratado um câncer de laringe num hospital particular; contra Dilma, por ter sido num hospital particular que ela fez tratamento contra um câncer linfático; contra Ciro, que foi questionado por cabo Daciolo, na campanha de 2018, por ter feito uma cirurgia no mesmo hospital que Dilma e Lula etc. A lista é longa.

Durante uma corrida eleitoral, instauração de culpa cristã como ferramenta retórica não é nada de novo. Em vez de gerar debates úteis para as eleições e para o país, a tática apela para o constrangimento moral, desmantelando possibilidades de argumentação lógica em torno de qualquer assunto. Infelizmente, funciona. Quem esquece a campanha presidencial de 1989, quando um dos instrumentos usados por Collor foi “revelar” que Lula teria forçado uma ex-namorada a fazer um aborto?

Pior é que, se a tática não é nova, ela tampouco envelhece nem sai de moda, e reapareceu recentemente, durante a entrevista com Lula no Jornal Nacional. A sabatina se resumiu ao exercício daquilo que Fabiana Moraes chamou de “jornalismo do genuflexório” – que quer constranger o entrevistado a se ajoelhar diante do público, em vez de permitir que ele demonstre sua aptidão (ou inaptidão) para o cargo e apresente seu projeto de governo (ou ausência de projeto).

Curiosamente, esse mesmo estilo de pergunta não aparece no que tange o direito à cidade e mobilidade urbana. Pelo que eu me lembre, candidatos perguntando uns aos outros como eles se locomovem nas cidades que representam nem é pauta – parece que já se naturalizou o fato de que político não anda de ônibus; ou que se locomover numa cidade brasileira no século XXI é sinônimo de ter um carro. Até que uma fala de Jones Manoel, candidato ao governo de Pernambuco pelo PCB, deu uma guinada interessante na conversa.

Algumas semanas atrás, em entrevista à Rádio Jornal, o historiador declarou ser o único candidato que saberia voltar pra casa de ônibus se o largassem no centro de Recife só com um vale-transporte na mão. Poucos dias depois, no podcast Recife Ordinário, Anderson Ferreira, atual prefeito de Jaboatão dos Guararapes e postulante a governador pelo PL, foi questionado se saberia qual ônibus pegar para ir de Prazeres, em Jaboatão, até a cidade de Igarassu (um trajeto de mais ou menos 40km). Ele debochou da pergunta e respondeu, num tom de e-eu-vou-lá-saber: “Eu vou de carro, pô! Não vou de ônibus!”.

Nas redes sociais, o fato de Jones se assumir como homem negro, trabalhador e usuário de transporte público pareceu causar mais choque (e até mesmo revolta, do tipo “quem esse pobretão pensa que é para querer ser governador?”), do que o prefeito de Jaboatão assumir que não conhece a rede de transporte da cidade que ele mesmo administra.

Eu aproveitei o quiprocó para ir ler os programas de governo dos dois candidatos, com interesse especial na questão do transporte público. Enquanto o de Jones Manoel propõe restaurar a malha ferroviária, as estradas vicinais do interior e a malha metroviária na Região Metropolitana de Recife – medidas urgentes não somente do ponto de vista da mobilidade, mas também do ecológico – o programa de Anderson Ferreira propõe unicamente requalificação da malha rodoviária e congelamento do IPVA.

Não é de se admirar que um candidato carrocrata faça propostas carrocratas. Mas aqui uma coisa é digna de nota: enquanto são os comunistas que são taxados de “utópicos”,1 é o programa do PL, na sua superficialidade quase abilolada, que é descolado da realidade. Com frases vazias, o projeto de governo do bolsonarista deixa explícito não aquilo que pretende fazer, mas sim aquilo que não pretende consertar. Enquanto o programa do PCB reserva três páginas para propor projetos de melhoria da mobilidade, o texto do PL dedica apenas duas frases ao assunto, sendo que Recife é a cidade mais congestionada do país.

O programa de governo de Jones Manoel apresenta dados, cita referências e fontes, e faz propostas concretas. Tá certo que o capítulo de mobilidade tem alguns eclipses, como a ausência de um projeto para transporte fluvial e a adoção acrítica das motonetas elétricas (que têm sido cada vez mais alvo de escrutínio, já que, além de inchar ciclovias e calçadas, tomando espaço de ciclistas e pedestres, sua cadeia produtiva é extremamente danosa ao meio-ambiente). Mas, mesmo com as ausências, ele é infinitamente superior ao programa do PL, e é uma brisa de ar fresco pela forma abrangente como aborda mobilidade. Dois exemplos desse frescor são o fato de o programa tratar como urgente a melhoria da mobilidade intermunicipal e considerar skatistas e caminhantes como sujeitos políticos na luta por direito à cidade (até mesmo a ONU recomenda que sistemas de mobilidade devem ser concebidos de forma a encorajar a caminhada não-esportiva).

Segundo o IBGE, Pernambuco tem uma frota de cerca de 1,5 milhão de carros e 21 mil ônibus, num Estado com 8,7 milhões de habitantes. Em Recife, mais de um milhão de carros circulam todos os dias, numa cidade onde moram 1,6 milhões de pessoas, mas que dispõe de menos de 5 mil ônibus. O excesso de carros e déficit de ônibus é escandaloso. E nesse contexto, quem mais sofre não é quem fica parado no trânsito dentro do seu carro com ar-condicionado, é quem tá em pé no busão lotado. Quando chove então, aí é que fodeu.

E é aqui gostaria de voltar ao começo do texto: por que um governante de direita pode assumir que não usa transporte público, sem nenhum constrangimento, mas um de esquerda tem que pedir desculpas porque operou um câncer num hospital particular? Por outro lado, posso argumentar que, do mesmo jeito que ninguém tem nada a ver com como uma pessoa fez um tratamento de saúde, ninguém também tem nada a ver com como Anderson Ferreira decide ir pra Igarassu. E é nesse giro de perspectiva que a gente vê como esse tipo de argumentação gera cliques, mas não leva nosso debate e nossa luta por um mundo melhor a lugar nenhum.

A direita vai-pra-Cuba usa com frequência empoeiradas falácias comunistas pra desconcertar um interlocutor de esquerda, usando de falsas polêmicas como pretenso indicador de inaptidão política (do tipo: se você é de esquerda, você não poder ter iPhone, não pode andar de avião, não pode fazer as unhas, não pode usar hospital particular; e, se você tem iPhone, anda de avião e faz as unhas, você não é de esquerda… blablablabla). Para fugir do imbróglio, é preciso abrir mão do moralismo também do lado de cá das trincheiras.

Na mesma entrevista, Jones Manoel disse: “Eu não sou filho de político, não sou rico, não tenho sobrenome chique, sou um trabalhador, filho da classe trabalhadora”. É um avanço democrático importantíssimo termos cada vez mais candidatos assim, e precisamos de muitos mais. Mas se engana quem acha que a preocupação dele e de seu programa com temas que afetam a classe trabalhadora vem exclusivamente do fato dele vir da classe trabalhadora também. Essas pautas ganharam destaque no seu programa de governo porque têm destaque na vida de quem trabalha – e é a vida de quem trabalha que tem o destaque no projeto de sociedade dos comunistas. Ainda que vivência seja uma importante fonte de conhecimento, não podemos reduzir nossos projetos de governo como se fossem fruto da sensibilidade pessoal de indivíduos. Isso esvazia o debate político e trata a realidade como se ela não fosse complexa, cheia de contradições cabeludas pra gente navegar.

Uma coisa é fato: quanto menos carro nas ruas, e quanto melhor o transporte público, e quanto melhores as calçadas, e quanto mais vastas as ciclovias, melhor a mobilidade e melhor a qualidade do ar para todo mundo. Ter candidatos e candidatas que sabem como é andar de ônibus nas nossas cidades, é gostoso demais. E quando eles não somente têm experiência de vida, mas também estão comprometidos com um projeto de governo à esquerda, aí é mais gostoso ainda. Pernambuco, a meu ver, só tem um postulante que une as duas características, e certamente não é Anderson Ferreira.


Nota
1 Aqui me refiro ao significado da palavra no senso comum, como sinônimo de algo que não é realista.

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Adelaide Ivánova é pernambucana, poeta e organizadora comunitária da campanha Deutsche Wohnen und Co. Enteignen, que luta pela expropriação de grandes empresas do aluguel, em Berlim, onde mora desde 2011. Em 2017, publicou o livro de poesia documental “o martelo”, que investiga a re-traumatização causada por um processo judicial por estupro. Em 2018 o livro venceu o prêmio Rio de Literatura na categoria poesia.

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