Alienígenas e o antropocentrismo
Quando algum dia nosso sol morrer ou destruirmos nosso planeta e todos que nele habitam, em algum lugar, talvez em um sistema muito distante, uma forma de vida muito diferente da nossa poderia resumir nossa odisseia nestes termos: pequena forma de vida entre 8,7 milhões de espécies, num pequeno planeta, desenvolveu por um curto espaço de tempo incríveis habilidades, contou as estrelas de parte do universo e destruiu o precário equilíbrio que permitia sua existência, foi o que nos contaram os polvos.
Tardígrado, o animal mais resistente do mundo.
Por Mauro Luis Iasi
“Somos como borboletas que voam por um dia e acham que é para sempre.”
Carl Sagan
Umas das coisas que sempre me causou um certo estranhamento é a obsessão dos seres humanos na busca por formas de vida alienígena, normalmente voltando sua curiosidade para as estrelas, outros planetas e o espaço profundo. Talvez seja a expressão de um certo dilema existencial, um receio imenso de não estarmos sozinhos, um medo causado diante da constatação de nossa enorme insignificância na ordem das coisas e da dimensão do universo.
No entanto, tendo a acreditar que possa ser em um sentido contrário, isto é, a busca movida pela arrogância de acreditar-se uma espécie de seres superiores e únicos. Nesta direção, a busca presta-se ao seu objetivo quando mais desmente a possibilidade de vida em outros planetas, ainda que matematicamente seja um fato provável. Um dos aspectos mais eficazes da ideologia é sua função de encobrimento, processo em que busca esconder as determinações daquilo sobre o qual lança seu discurso.
Não se trata, todavia, de um mero esconder, mas um mostrar ocultando, de modo que a luz lançada naquilo que se quer dar ênfase acaba por ofuscar aquilo que não quer que seja visto. A obsessão por encontrar outras formas de vida lá fora encobre um fato óbvio: existe uma profusão de outras formas de vida aqui mesmo.
Estima-se que no nosso planeta existam cerca de 8,7 milhões de espécies, sendo 6,5 milhões delas na terra e 2,5 milhões no mar. No caso dos oceanos, isto é ainda mais curioso diante do fato de que conhecemos pouquíssimo da enorme massa de água que cobre o planeta arrogantemente chamado de Terra. Segundo a bióloga Lúcia Campos, da UFRJ, considerando o tamanho do oceano, as áreas abissais de difícil acesso, devemos conhecer não mais que 1% dos oceanos. As novas espécies ainda não conhecidas, segundo o pesquisador canadense Ronald O’Dor, da Universidade de Dalhousie, podem variar de 1 milhão a 9 milhões.
Um exemplo desta explosão de vida nos oceanos é o arenque da Noruega. Calcula-se que o número de arenques que passeiam pelos fiordes supere em muito a população de humanos na Terra, que hoje alcança o número de 7,8 bilhões de pessoas. Mas, em termos numéricos, ninguém supera os insetos, que têm algo em torno de 800 mil espécies conhecidas. A campeã é, sem dúvida, a formiga. Um cálculo por baixo indica uma população de formigas seria de 10 quatrilhões, mas pode chegar até 1 septilhão de formigas no mundo.
Considerando como critérios aceitos pela ciência que a vida se define por quatro aspectos principais, quais sejam, a reprodução, a evolução, o metabolismo e a resposta ao estímulo, devemos lançar nosso olhar na direção daquilo que não é visto, ou seja, formas de vida presentes nos micro-organismos, mesmo aqueles que são unicelulares e que se dividem em três domínios: Bacteria, Eukarya e Archaea (que se supõe seja a forma de vida mais antiga). Em cada corpo humano vivem cerca de 40 trilhões de micróbios e em um grama de solo cerca de 2,5 bilhões de bactérias.
Podemos concluir, portanto, que certamente não estamos sozinhos e nem somos uma espécie de seres eleitos como única forma de vida. Devemos destacar, no entanto, que há uma coisa em comum nesta vasta variedade de formas de vida: nenhuma delas é parecida, na forma, com um ser humano. Isto não impede que nossa fantasia ao buscar vida inteligente, consciente ou qualquer outra característica que supostamente atribuiria à nossa espécie qualquer tipo de superioridade, acabe sempre assumindo formas humanóides, ainda que distorcida em certos aspectos. É como se disséssemos: “já que são inteligentes, produziram algum tipo de civilização, têm que ser iguais a nós”.
Isso me leva a ressaltar a hipótese da arrogância. O traço distintivo da espécie humana não é a vida, nem abstratamente considerada qualquer faculdade da razão ou do que se chama de inteligência, principalmente a julgar pelo tipo precário de civilização em que nos metemos.
Como já afirmou Marx há muito tempo, o traço distintivo de nossa espécie é o trabalho. Nesta incrível variedade de formas de vida que se reproduzem, evoluem, metabolizam e reagem a estímulos, nenhuma delas produz instrumentos que completam sua anatomia, alterando as formas naturais de acordo com suas necessidades. Ainda que algumas delas estabeleçam relações, desenvolvam formas de comunicação ou mesmo linguagens, só o ser humano através do trabalho cria instrumentos e age de forma particular na natureza da qual faz parte, alterando-a e produzindo ao lado de sua história natural uma história propriamente humana, tornando-se um ser social.
Isto não nos faz seres superiores ou escolhidos para reinar sobre todas as coisas, podendo, inclusive ser uma maldição que nos leva ao reino das coisas que nos governam, submetidos ao próprio mecanismo social fetichizado que nós criamos e que se levanta como uma força hostil que nos controla.
Na ordem das coisas do universo somos insignificantes, como nos ensinou Carl Sagan. Existem 10 bilhões de galáxias conhecidas, algo em torno de 10 sextilhões de estrelas no universo, em nossa galáxia – a Via Láctea – algo entre 200 a 400 bilhões de estrelas, uns 3779 sistemas planetários observáveis, com seus planetas girando ao redor de suas estrelas. Nós somos uma espécie de carbono e hidrogênio metida a besta, é verdade, mas nenhuma outra espécie de vida sabe quantas formas de vida povoam a terra e os oceanos, ninguém mais contou as estrelas.
Quando algum dia nosso sol morrer ou destruirmos nosso planeta e todos que nele habitam, em algum lugar, talvez em um sistema muito distante, uma forma de vida muito diferente da nossa poderia resumir nossa odisseia nestes termos: pequena forma de vida entre 8,7 milhões de espécies, num pequeno planeta, desenvolveu por um curto espaço de tempo incríveis habilidades, contou as estrelas de parte do universo e destruiu o precário equilíbrio que permitia sua existência, foi o que nos contaram os polvos.
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Confira o Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo, em que nosso querido colunista recebe Filipe Bezerra, da Ocupação Carlos Marighella, em Santa Catarina, para falar sobre a crise urbana e a luta por moradia. Filipe comenta sobre a história da Ocupação e destaca a importância da resistência e organização dos trabalhadores.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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