Astrojildo Pereira: crítica alerta e recusa a esquematismos fáceis

Pedro Meira Monteiro comenta “Interpretações”, de Astrojildo Pereira, destacando a sensibilidade aguda de um crítico que mergulha nos textos, buscando neles a malha tensa do social em suas contradições mais fundamentais.

Por Pedro Meira Monteiro

Se alguém abrir Interpretações em busca de uma análise dura da realidade, vista pelo filtro da literatura, logo verá que se engana. O que temos na obra é a sensibilidade aguda de um crítico que mergulha nos textos, buscando neles a malha tensa do social, em suas contradições mais fundamentais.

De luta de classes se trata, sempre, mas nem por isso a pena de Astrojildo Pereira se rende aos esquematismos fáceis, tão comuns quando a crítica vê no texto apenas a realidade reflexa do mundo histórico.

No centenário de Machado de Assis, o crítico busca entender as contradições históricas em que se sustenta a obra do autor, sem contudo perdoar-lhe as reticências de homem público recatado. Os retratos produzidos por Manuel Antônio de Almeida são comparados aos de Debret, enquanto Joaquim Manuel de Macedo não passa de mau pintor. Já Lima Barreto, genial romancista suburbano, às vezes se perdia no “intencional”, mas deixava vazar em sua ficção a lenta ascensão social da mulher. Astrojildo, que conheceu Lima e notou suas mãos finas e as “unhas sujas” de boêmio, o aproxima de André Rebouças, também “mulato” e totalmente desconfiado das promessas republicanas.

Temos, ainda, a análise da vida burguesa e sua moral laxa em Gastão Cruls, bem como a desabrida admiração de Astrojildo pela luta abolicionista de Rui Barbosa, que associara o mal da escravidão àquele mesmo latifúndio que, décadas depois, imprimiria nos personagens de Graciliano uma psicologia “curta e espessa”.

Escrevendo durante o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial, Astrojildo sonda o fundo sem fundo dos totalitarismos e sonha romper os laços de dependência que unem o intelectual ao privilégio. Na Semana de 22, vê o mesmo fermento que fez crescer a revolta dos tenentes no Rio.

Há em sua crítica gestos que sabem a profecia, ecoando certa sensibilidade contemporânea, como quando enaltece Zumbi e supõe que os historiadores do futuro hão de colocá-lo muito acima dos “Domingos Jorges”. A mensagem é clara: abandonemos o excepcionalismo da brandura brasileira e queimemos a efígie dos bandeirantes antes que eles vençam a batalha e roubem das massas o pleno acesso aos “benefícios da cultura”.

Para chegar lá, nada melhor que o “chão batido e liso” da crítica alerta de quem acusa a neutralidade cúmplice que embota a inteligência.

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No ano do centenário de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Boitempo e a Fundação Astrojildo Pereira relançam um autor fundamental da nossa cultura: Astrojildo Pereira (1890-1965). Interpretações foi lançado em 1944 e inclui textos redigidos entre 1929 e 1944. Com positiva repercussão pela crítica e pelas instituições culturais, o livro foi incluído no Summary of the History of Brazilian Literature, programa de divulgação cultural que colocava Astrojildo ao lado de autores consagrados como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.
 
Interpretações está dividido em três partes: “Romances Brasileiros”, “História política e social” e “Guerra Após Guerra”. A primeira parte aborda a obra de diversos romancistas nacionais como Machado de Assis, Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Lima Barreto e Graciliano Ramos. A segunda parte analisa as vicissitudes históricas da formação brasileira, incluindo o debate sobre a abolição da escravatura, durante o Segundo Reinado. Já na terceira e última parte, Astrojildo analisa as questões internacionais, como a ascensão do nazismo, a Segunda Guerra Mundial e faz uma importante reflexão sobre os deveres do intelectual brasileiro diante do conflito mundial. 


“Com agudeza e lucidez admiráveis, Astrojildo Pereira mostrou e demonstrou em Interpretações a existência de uma consciência íntima e profunda entre o labor literário de Machado de Assis e o sentido da evolução política e social do Brasil.”
Franklin de Oliveira

“Interpretar as coisas é uma espécie de doença dos intelectuais. Astrojildo Pereira reuniu em Interpretações alguns de seus ensaios mantendo um equilíbrio saudável entre esses dois extremos: revela a capacidade por excelência do intelectual – aquela faculdade de pensar as coisas, de filtrar o mundo exterior por processos racionais – e ao mesmo tempo ficar no terra-a-terra, gozando a impressão que todos sentimos ao pisar o ‘chão batido e lido’”.
Florestan Fernandes

Interpretações, de Astrojildo Pereira, tem prefácio de Flávio Aguiar, texto de orelha de Pedro Meira Monteiro, além de dois textos anexos: um de Nelson Werneck Sodré, “Meu Amigo Astrojildo”, e um de Florestan Fernandes, intitulado “As tarefas da inteligência”. A capa é de Maikon Nery

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Confira a aula Intérprete do Brasil, do curso 100 anos do PCB: vida e obra de Astrojildo Pereira, com André Kaysel, Marcos Del Roio e mediação de Renata Cotrim, na TV Boitempo:

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Pedro Meira Monteiro é doutor em teoria literária pela Unicamp, professor na Universidade de Princeton, onde fundou, com João Biehl, o Brazil LAB (Luso-Afro-Brazilian Studies), que congrega pesquisadores de diversas áreas e inúmeros países. É autor, tradutor e organizador de diversos livros e foi pesquisador-visitante e palestrante em universidades no Brasil e no mundo. É um dos curadores da 20ª edição da Flip. Pela Boitempo, publicou Um moralista nos trópicos: o Visconde de Cairu e o Duque de La Rochefoucauld (2004).

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