Klaus Dörre e a centralidade do precariado nas formas contemporâneas de expropriação capitalista
Fiel à tradição da teoria crítica, Klaus Dörre nos oferece uma chave analítica para entender que o capitalismo, qualquer que seja seu regime de acumulação, se sustenta em dinâmicas expropriatórias.
Por Lena Lavinas
A superação do neoliberalismo está na ordem do dia. Não se trata, como sugeriria a conjuntura turbulenta que nos assola, de palavra de ordem brandida por forças progressistas radicais, comprometidas com a defesa da democracia econômica, da justiça social e hoje também com a preservação da vida e da biodiversidade que a sustenta. Diante da simultaneidade e da interação de tantas crises que sinalizam o colapso da ordem global capitalista, o debate já foi inaugurado. Dele participam os detentores do grande capital, que entram na disputa para se manter como as forças hegemônicas no comando de uma transição inexorável. Sem mea culpa, engajam-se na reforma urgente da vertente neoliberal do capitalismo em busca de um paradigma que torne a acumulação capitalista palatável e legítima, porque seria, enfim, inclusiva e ambientalmente sustentável, além de promotora de soluções coletivas em ruptura com o modelo falido (desde sua origem) de maximização do bem-estar individual.
Mas, afinal, o que está em jogo são alternativas ao capitalismo ou alternativas no âmbito do capitalismo? É isso que indaga o sociólogo alemão Klaus Dörre em Teorema da expropriação capitalista, enfim traduzido para o português. Seu posicionamento é sem ambiguidades: “Claramente deve haver uma transformação social de longo alcance que questione o crescimento moderno como um fim econômico em si mesmo. O desenvolvimento social, que é indispensável, deve ser desvinculado do crescimento material contínuo e forçado”.
Trata-se, portanto, de enfrentar criticamente a gênese do que se pretende uma nova racionalidade do capital, agora livre da ideologia neoliberal e entronizada em seus próprios termos, para ensejar as transformações estruturais que a crise climática exige. Fiel à tradição da teoria crítica, Klaus Dörre nos oferece uma chave analítica para entender que o capitalismo, qualquer que seja seu regime de acumulação, se sustenta em dinâmicas expropriatórias.
Bebendo na tradição luxemburguista que vincula a expansão do capital e sua reprodução ampliada à incorporação incessante de circuitos não capitalistas – isto é, espaços desmercantilizados, periféricos –, Dörre formula o teorema da expropriação capitalista. Seu foco é o regime de expropriação do capitalismo financeiro, que tem no endividamento de massa recorrente seu principal motor. A expropriação, contudo, se dá também pela constante incorporação ao ciclo do capital de tudo o que lhe é estranho e resiste à produção de mais-valor, como os recursos naturais, a essência da provisão pública desmercantilizada e a esfera das relações e das trocas domésticas, onde a racionalização do trabalho e a acumulação financeirizada encontram obstáculos.
Assim, se a meta é a superação do capitalismo expansionista, que subsume à sua lógica o que é externo à relação salarial padrão e à produção de valor, então a transição, ainda que sob a regência do capitalismo, tem de começar por romper com a reprodução dessas fronteiras internas e externas e restaurar suas dinâmicas próprias, inibindo a compulsão expansiva do capital, implodindo os ciclos de expropriação. É no capítulo final que Dörre detalha como, pela “internalização dos externos”, se reproduzem e se processam mecanismos de acumulação primitiva, marcados pela violência material e simbólica. Nada mais oportunamente instrutivo num momento em que, no Sul Global, a exigência de uma “transição justa” coloca no centro do novo paradigma em disputa a esfera da reprodução social, esfera não capitalista por excelência, espaço de relações afetivas, de solidariedade e compartilhamento.
Num diálogo com David Harvey, Burkart Lutz, passando por Robert Castel e outros expoentes da sociologia francesa, Klaus Dörre disseca a centralidade do precariado nas formas contemporâneas de expropriação. Nessa troca, traz elementos para uma plataforma de luta e resistência pelo controle da transição em curso no âmago do capitalismo.
Desenvolvido pelo autor ao longo dos anos e, hoje, amplamente discutido no mundo de língua alemã e inglesa, o teorema do “regime de expropriação capitalista” é ancorado nas contribuições de Rosa Luxemburgo e sua discussão acerca do estatuto da “assim chamada acumulação primitiva” em O capital, de Karl Marx. O autor formulou tal teorema para abordar como a expansão do modo de produção capitalista traz impactos notáveis para as reflexões que envolvem classes sociais, Estado e precarização.
Sua premissa é a de que o capitalismo é “uma economia de mercado que se autonega continuamente”. Para Dörre, o pensamento econômico liberal, baseado na ideia de concorrência e eficiência como ausência de coação e regulação, mascara tanto a dinâmica capitalista quanto a dimensão político-estatal de seu projeto. Se, de um lado, a própria economia ortodoxa reivindica o Estado como fórum que determina as regras do jogo, de outro, Dörre mostra que os atores de mercado operam com base em mecanismos de cooperação. Nesse sentido, o autor sustenta que a tese da economia pura de mercado desempenha função ideológica e estratégica (pois, em situações de crise, pode sempre atribuir a culpa ao erro da regulação existente e se manter eternamente válida). A partir desta crítica, Dörre conclui que a intervenção estatal é uma constante no desenvolvimento do capitalismo.
A obra é um conjunto de textos escritos pelo autor ao longo dos anos e apresenta uma chave de leitura sociológica para compreender os atuais fenômenos do capitalismo, notadamente em sua configuração financeira. Primeira compilação de Dörre lançada no Brasil, trata-se de uma análise inovadora, fundada em interpretações consistentes do marxismo e em pesquisas rigorosas, o que justifica seu amplo impacto internacional.
Teorema da expropriação capitalista, de Klaus Dörre, tem tradução de César Mortari Barreira e Iasmin Goes, apresentação e revisão técnica de Guilherme Leite Gonçalves, texto de orelha de Lena Lavinas, quarta-capa de Ruy Braga e Virgínia Fontes, capa de Antonio Kehl e apoio da DFG-Kolleg Postwachstumsgesellschaften.
“Elaboração teórica original, este livro contribui para a importante polêmica sobre as expropriações e as características das classes trabalhadoras no capitalismo contemporâneo. Liga-se à rica tradição originada em Rosa Luxemburgo e abrange temas cruciais que se conectam estreitamente com o processo de expansão do capital-imperialismo, como as crises econômicas, sociais, políticas e ambientais.”
– Virgínia Fontes
“Ao avançar nas trilhas abertas por Rosa Luxemburgo, Klaus Dörre criou uma teoria do regime de expropriação capitalista original e fascinante. Para tanto, debruçou-se sobre a dialética existente entre os regimes hegemonizados pela troca de equivalentes, caso do fordismo, e os regimes dominados pela troca de não equivalentes, como o neoliberalismo. Assim, o sociólogo marxista expôs a substância econômica da recente onda de violência política que ameaça democracias tanto no Norte quanto no Sul globais: a expansão desmedida da precariedade laboral.”
– Ruy Braga
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Disponível em nossa loja virtual, nas livrarias de todo o Brasil e e-book à venda nas principais lojas do ramo:
Hoje, às 15h, teremos lançamento de Teorema da expropriação capitalista, de Klaus Dörre, com debate entre Eleutério Prado, Guilherme Leite Gonçalves, Virgínia Fontes e mediação de Ricardo Antunes, na TV Boitempo:
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Lena Lavinas é graduada em Economia pelo Institut d`Etudes pour le Développement Economique (França). É mestre e doutora em Estudos sobre a América Latina pelo Institut de Hautes Etudes d`Amérique Latine (França). Realizou o pós-doutorado no Centre de Sociologie Urbaine. É membro do comitê editorial do Feminist Economics (EUA) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Entre seus livros estão Programas sociais de combate à fome: o legado dos anos de estabilização econômica (Editora UFRJ, 2004) e Emprego feminino no brasil: mudanças institucionais e novas inserções no mercado de trabalho (Cepal, 2002). Pela Boitempo, contribuiu com os livros Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais (2016), organizado por Alice Rangel de Paiva Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi e Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para onde vão?) (2007), organizado por João Sicsú.
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