Organizar, mobilizar e fortalecer a consciência de classe (dialogando com a camarada Anita Prestes)
Em amistosa divergência com Anita Prestes, Mauro Iasi comenta o papel das esquerdas no apoio à campanha de Lula no primeiro turno.
Por Mauro Luis Iasi
A última coluna de nossa querida camarada Anita Prestes no Blog da Boitempo coloca o debate sobre o apoio ou não a Lula no primeiro turno em alto nível. Diante disso, nosso dever é defender nossa posição com argumentos que procurem sustentá-la da mesma forma. É necessário iniciar por uma consideração: em tempos obscuros como esse em que estamos, nos quais prevalece em nossos debates táticos um mecanicismo pouco dialético que leva ao contraponto simplista de posições certas e equivocadas, devemos lembrar que a complexidade da conjuntura e da luta de classes deveria nos conduzir à reflexão ponderada sobre as diversas leituras possíveis que derivam da variedade de determinações abertas pela conjuntura. Assim pensando, temos a convicção de que as diferenças táticas entre camaradas se devem à ênfase a certos aspectos do real que destacamos ou deixamos de dar ênfase em nossa análise, descartando, quando se trata de uma polêmica séria, o oportunismo ou a deformação interesseira a serviço de outros interesses que não os nossos.
Dito isto e diante da seriedade da camarada, devemos começar por afirmar que existe um enorme campo de concordância que nos une, não apenas agora, mas durante todo o período recente no qual cerramos fileiras na defesa da alternativa revolucionária e socialista contra o oportunismo e a conciliação de classes. Esta base sólida nos leva a um patamar de debate que descarta qualquer ilusão com a opção tática de apoio à candidatura petista já no primeiro turno, como diz Anita Prestes “os setores de esquerda não devem alimentar ilusões quanto ao progressismo de seu futuro governo. Como é sabido, os governos do PT (Partido dos Trabalhadores) puseram em prática políticas derivadas da opção ideológica reformista desse partido”. Completa afirmando que as ações que pudemos constatar em todo o longo período de governos petistas podem comprovar inequivocamente que esse partido opera a partir de uma concepção que é “voltada para a reforma do capitalismo, excluída uma perspectiva de transição ao socialismo”.
Não há problema em apoiar forças reformistas se considerarmos que, no contexto presente da luta de classes, tal ação representa um patamar mais favorável à luta da classe trabalhadora. Nos chama a atenção, no entanto, que segundo o juízo da autora – posição que também temos profunda concordância – os sucessivos governos petistas “nada fizeram para elevar o nível de organização e consciência política das massas trabalhadoras, não as prepararam para enfrentar a ofensiva do capital financeiro internacionalizado, que viria a partir de 2008 com a grave crise que abalou o sistema capitalista mundial”.
A grande questão é, portanto, por que apoiar uma força reformista que tudo indica se renderá às determinações e interesses do grande capital e produzirá uma queda no nível de organização e consciência da classe? Acreditamos que, neste ponto, também o debate se mantêm em alto nível, uma vez que não desemboca em justificativas ilusórias e manipulatórias que buscam mascarar o caráter da força política que por opção tática se propõe apoiar.
Podemos dizer que os argumentos principais poderiam ser resumidos da seguinte forma: primeiro, a necessidade de barrar a possível continuidade do governo Bolsonaro e tudo que ele representa de retrocesso, obscurantismo e ataque ao nosso país e aos trabalhadores; segundo não haveria nenhuma força política à esquerda capaz de, neste momento, desempenhar esse papel na disputa eleitoral, de forma que apenas Lula seria o único pré-candidato capaz de derrotar Bolsonaro nas eleições; em terceiro lugar, além da questão eleitoral, trata-se de se contrapor às claras intenções golpistas do miliciano fascista que ocupa a presidência.
Então vamos lá. Ressaltando que, apesar de discordar da conclusão que se tira de tais constatações, elas se mostram legítimas e justificam que forças políticas e personalidades que se opuseram ao período de conciliação de classes petistas agora optem por apoiar Lula nestas eleições. Todos são argumentos de peso e se fundamentam em uma leitura correta e possível da conjuntura, na qual temos que definir nossas táticas. Permita-nos, entretanto, enunciar nossos argumentos, que de certa forma estão enumerados em uma coluna anteriormente aqui divulgada.
Primeiramente, todos compreendemos a necessidade de derrotar o governo Bolsonaro e o bolsonarismo (que não são a mesma coisa) e, coerentemente com tal constatação, estivemos presentes em todos os momentos das lutas pelo impeachment do miliciano nas ruas e nas mobilizações unitárias. Como afirmamos, este risco deveria e poderia ter sido barrado antes não fosse a prevaricação dos poderes da República e o recuo das forças de centro-esquerda que optaram por enfrentá-lo na arena eleitoral.
Concordamos, no entanto, que no cenário conjuntural que se apresenta, a polarização foi desviada para a arena eleitoral na qual o pré-candidato do PT é aquele que representa a melhor possibilidade de derrotar nas urnas o candidato das trevas. Diante deste fato, a autora aponta para uma orientação um tanto quanto peremptória que destoa da profundidade do restante do texto. Anita Prestes nos diz, então, que, diante de qualquer perspectiva realista de êxito: “as forças progressistas e de esquerda têm a responsabilidade de considerar a retirada das candidaturas alternativas à presidência da República, unificando todos os esforços para garantir a eleição de Lula”.
Quanto a essa afirmação, que por óbvio discordamos, temos que argumentar o seguinte. Uma candidatura de esquerda não deve se pautar por uma “perspectiva realista de êxito” – se assim fosse Lula não deveria ter se lançado candidato em 1982. Como nos dizem Marx e Engels, ao tratar de um contexto histórico no qual as forças proletárias se viam obrigadas ainda a lutar contra os adversários de seus adversários, que diante da possibilidade de uma eleição os trabalhadores deveriam lançar candidatos contra a burguesia democrática (sua aliada na luta contra a grande burguesia e as camadas feudais) em toda a parte, agregando que “mesmo que não exista esperança alguma de triunfo, os operários devem apresentar candidatos próprios para conservar sua independência” (p.89-90).
Ao meu ver, há uma linha que cruza transversalmente os argumentos que se levantam contra aquelas forças que optaram taticamente por oferecer candidaturas próprias à esquerda. . O centro deste argumento procura se embasar na afirmação de que dessa maneira enfraquecem a candidatura que pode derrotar a extrema direita e, indiretamente, fortalecem essa última. No mesmo texto de Marx e Engels citado, os autores nos lembram que “ao mesmo tempo, os operários não devem deixar-se enganar pelas alegações dos democratas de que, por exemplo, tal atitude cinde o partido democrático e facilita o triunfo da reação” (p. 90), uma vez que tal procedimento visa apenas iludir os trabalhadores. Estamos convencidos que nossas candidaturas não impedem que a centro-esquerda cumpra seu papel e, mais do que isto, não podemos aceitar que lutando pela autonomia e independência de classe estaríamos fortalecendo o campo de direita e extrema direita, não apenas pelo nossa firme opção por combatê-los mas por tudo que demonstramos em nossa história de 100 anos. Se neste momento, no primeiro turno, não podemos apoiar a candidatura da centro-esquerda democrática é exatamente por esta convicção, uma vez que o lulismo se aliou à direita e aponta um programa de compromisso com o grande capital, como bem sabe e destaca a própria Anita Prestes.
Todos os argumentos apresentados por Anita Prestes e, por exemplo, pelos nossos companheiros do PSOL, são plenamente justificáveis, mas não explicam a razão deste apoio se precipitar já no primeiro turno. É neste ponto que, acredito eu, apresenta-se o argumento mais problemático: o risco do golpe.
A camarada Anita Prestes coloca assim a questão: “A presença de numerosas candidaturas presidenciais, privadas na atual conjuntura política de qualquer perspectiva realista de êxito, contribui para dificultar a vitória de Lula no primeiro turno e facilitar a atividade golpista de Bolsonaro e seus asseclas”, e completa “pois um intervalo de quatro semanas entre o primeiro e o segundo turnos (de 2 a 30 de outubro) poderá constituir uma oportunidade propícia à mobilização e à intensificação do desencadeamento de ações dirigidas contra o resultado das urnas”.
Pareça haver aqui um estranho argumento de que as intenções golpistas do famigerado miliciano se esmaeceriam caso o petista ganhasse no primeiro turno. De todos os argumentos daqueles que defendem o voto em Lula no primeiro turno este é, de longe, o mais frágil. O miliciano fascista tentou, várias vezes, um golpe no exercício de seu mandato, questionou a validade das urnas na eleição que o elegeu e conspirou contra as instituições da República que se esforçavam em mantê-lo. Não nos parece razoável que diante de uma vitória no primeiro turno ele e seus apoiadores se rendessem a argumentos de legitimidade ou por qualquer outra razão fundada no bom senso.
O que provoca a ira golpista do desqualificado fascista é a possibilidade de perder e ir para cadeia junto com seus filhos e boa parte de seus ministros. Acreditamos, tal como afirmamos, que lhe falta o tripé necessário para consolidar o golpe (apoio do grande capital e do imperialismo, a anuência das Forças Armadas e o beneplácito da grande mídia), mas isto não o impede de tentar com apoio de seus esquemas armados (parte das Forças Armadas, Polícias Militares e milícias) e de sua sustentação em segmentos de massa e dos setores médios que alimentam a rejeição ao petista (algo entorno de 45%).
Argumentar que o hiato de tempo entre o primeiro e o segundo turno (2 a 30 de outubro) seria o grande perigo é, no mínimo, ingênuo. Ao nosso ver, o gatilho para a aventura golpista é a certeza da possibilidade da derrota e isto pode se apresentar antes mesmo de se encerrar o primeiro turno, alguns apostam em 7 de setembro. Caso consideremos o intervalo de 28 dias entre o fim do primeiro turno e o segundo turno (com a possibilidade evidente de vitória de Lula no segundo turno), o que dizer do intervalo entre outubro de 2022 e janeiro de 2023? O miliciano e as hostes bolsanaristas aceitarão o resultado das urnas?
Nos parece que não. O pretexto é o que menos importa nesta situação. A grande questão é se estamos preparados para esta tentativa e a resposta é, inequivocamente, não. A razão para isto é muito bem detectada pela camarada Anita Prestes: o longo ciclo de conciliação de classes desarmou política e organizativamente os trabalhadores e reverteu o processo de consciência de classe ferindo sua independência e autonomia, privando-a de seus recursos essenciais para enfrentar a luta de classes contra seus inimigos.
Hoje, o que parece mais provável, é que a eleição se resolva no primeiro turno como indicam as pesquisas, diferentemente do que me parecia um tempo atrás e que pode mudar no andar da campanha que em breve se iniciará. Não acreditamos que isto inibirá a aventura golpista de extrema direita, nem alterará o caráter conciliador do programa lulista e sua convicção de que a governabilidade só pode se dar se rendendo aos interesses do grande capital.
Diante disso, ainda que com opções táticas diferentes, acredito que devemos estar juntos, nós à esquerda, nas tarefas que Anita Prestes nos aponta ao afirmar que “a única possibilidade de uma verdadeira emancipação social e de uma democracia inclusiva para a grande maioria do nosso povo está na luta pela transformação socialista da sociedade, ou seja, na via revolucionária que abra caminho para o socialismo”. Da mesma forma, concordamos que “só a organização popular, acompanhada de um trabalho cotidiano de mobilização e conscientização, será capaz de garantir a consolidação e o avanço de um processo que contemple os genuínos interesses populares”.
É o que estamos fazendo cotidianamente e agora com a pré-candidatura apresentada pelo PCB em nossa difícil trajetória de reconstrução revolucionária antes, durante e depois das eleições.
Referência bibliográfica
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (1850). Obras Escolhidas (v. 1). São Paulo: Alfâ Ômega, s/d.
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Confira o Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo, em que o autor comenta as divergências táticas da esquerda brasileira diante das eleições de 2022, destacando que a existência ou não de um segundo turno não depende apenas de nossos desejos e vontades.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
“por que apoiar uma força reformista que tudo indica se renderá às determinações e interesses do grande capital?” a própria anita esclarece isso em seu texto. no entanto, com todo respeito, o seu complemento a essa questão puramente retórica mostra que o senhor não entendeu, quando anita diz que a responsabilidade de “de organização e consciência da classe” é de todo o campo das esquerdas. ou seja, o pt, enquanto partido de esquerda que conseguiu chegar ao poder e que representa a única chance de derrota contra bolsonaro, ganha as eleições e as esquerdas que têm a liberdade de ser mais radicais e defender bandeiras socialistas organizam as massas. a tal “queda no nível de organização e consciência da classe” não é e nunca foi de responsabilidade exclusiva do partido dos trabalhadores.
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A tática eleitoral, se analisarmos o comportamento prático da centro-esquerda e mesmo da esquerda ou “extrema-esquerda” brasileira, parece ter um grande peso para a maioria dos partidos e organizações.
Na centro-esquerda isso fica nítido quando toda atuação de base se subordina ao pleito eleitoral, que se torna um fim em si para a gestão do Estado e da ordem vigente, sem nunca apontar sequer para reformas estruturais que possam se chocar com o poder do grande capital.
Em boa parte da chamada “extrema-esquerda” essa supervalorização da tática eleitoral também se faz presente, e fica evidente quando vemos expoentes destes setores fazendo analogias que comparam, por exemplo, uma posição de Lênin sobre a construção de um bloco proletário camponês permanente com a sua posição sobre tática eleitoral nas eleições burguesas brasileiras, quando é evidente que se tratam de duas coisas diferentes.
O bloco proletário camponês como um instrumento em processo de construção permanente não era para Lênin uma tática ou uma coligação eleitoral, mas um instrumento de massas vinculado ao movimento real da classe. Não atoa as táticas dos bolcheviques oscilaram, por exemplo, apoiando o governo provisório num primeiro momento, e depois deixando de apoiá-lo e executando o desfecho de sua estratégia revolucionária. Essa oscilação tática não negou a permanente construção do bloco proletário camponês e nem desfez o caráter de classe deste bloco.
Isso não significa negar que a tática eleitoral tem sua importância e pode até ser decisiva em determinadas conjunturas. A questão é compreender que bloco histórico, estratégia da revolução e tática eleitoral nas eleições burguesas são coisas distintas, mesmo que possam interagir por uma série de mediações.
O exemplo da Unidade Popular no Chile, mesmo que derrotada pela contrarrevolução e considerando os limites de Allende ao confiar na institucionalidade democrática chilena, mostra que a tática eleitoral pode sim ter um peso decisivo para a estratégia socialista. Não atoa Fidel Castro afirmou que “se cada trabalhador chileno tivesse um fuzil, Allende não teria sido derrubado”.
A partir desse exemplo, consideremos os resultados eleitorais de Salvador Allende nas quatro vezes em que se postulou para presidente (lembrando que no Chile não havia segundo turno):
1952: 5,45%
1958: 28,8% (Segundo colocado)
1964: 38,92% (Segundo colocado)
1970: 36,6% (Eleito)
Qual frente, setor da esquerda ou “extrema-esquerda” brasileira, de 2006 para cá, tem resultados no pleito nacional que possam pelo menos significar um acúmulo ou crescimento de forças ao longo de suas postulações?
Das duas uma: ou a tática eleitoral não tem importância nenhuma para estes setores, e portanto ela não pode ser comparada ao ‘bloco’ do Lênin, ou ela tem importância e a prática da vida está demonstrando, pleito após pleito, um acumulo sucessivo de erros.
A ausência deste ‘bloco permanente’ (que transcende um único partido) fruto do movimento real da classe e as táticas eleitorais sendo uma consequência legítima do acúmulo deste bloco tem nos levado à essa situação. Isso expressa os limites de todos nós e de fato não há uma receita para superar esses limites de imediato.
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