A disputa pelo orçamento público em Pernambuco (I)

Victória Pinheiro e Jones Manoel analisam as prioridades orçamentárias do governo do PSB em Pernambuco, destacando os principais problemas e apontando a necessidade de um projeto político de esquerda, que enfrente radicalmente as desigualdades e fortaleça os serviços públicos.

Por Victória Pinheiro e Jones Manoel

É muito comum ouvirmos, sempre que tratamos de problemas relacionados às áreas públicas de interesse dos trabalhadores, que “falta dinheiro”. O que essa resposta não elucida é a política por trás do orçamento, as escolhas feitas pelos gestores de favorecer um ou outro setor em detrimento de outros, como são definidas as prioridades e a partir do quê.

O orçamento de um ente subnacional, como um estado, é composto de tributos, receitas de empresas estatais, transferências do Governo Federal, empréstimos e afins. A dinâmica do orçamento se completa com o gasto público. É necessário pensar o orçamento como um ser com duas almas: arrecadação e gasto. Nessas duas almas, é impossível ter uma perspectiva técnica acima de tudo. É necessária uma perspectiva estritamente política, que diz respeito a conflito redistributivo e luta de classes: quais classes e grupos sociais são os principais alvos da tributação na montagem do orçamento, e que classes e grupos sociais são os principais beneficiários do gasto público na execução do orçamento.

Questões como a qualidade do gasto público são importantes, mas operam numa lógica posterior às questões políticas centrais que elencamos acima. Os próprios mecanismos avaliativos do que é um bom gasto público não são neutros, técnicos, mas envolvem critérios políticos, éticos e de projeto de sociedade.

A partir dessas premissas, analisaremos as prioridades orçamentárias do Governo do PSB no estado de Pernambuco, fazendo o levantamento do orçamento do estado desde 2008, ainda no governo de Eduardo Campos, a partir da Lei Orçamentária Anual (LOA) de cada ano. Não pretendemos oferecer um balanço completo em todas as áreas, mas iniciar o debate. No decorrer do ano, lançaremos outros materiais complementando essa discussão.

É importante resgatar que Eduardo Campos foi eleito governador pela primeira vez em 2006, numa campanha eleitoral em que se posicionou como ferrenho crítico da política neoliberal do então governador Jarbas Vasconcelos, do PMDB. Eleito a partir de uma plataforma política de esquerda, que apresentava um plano de governo baseado em participação popular e reformas estruturais.

No entanto, é notório que nos seus governos nenhuma reforma estrutural ou questionamento aos pilares da política neoliberal do governo Jarbas Vasconcelos/Mendonça Filho foi realizada. Vejamos alguns dados importantes da Era PSB em Pernambuco.

Segurança Pública: o setor campeão de investimentos

O setor campeão de investimento do governo de Eduardo Campos foi a Segurança Pública, que de 2008 a 2014 recebeu mais de R$12,9 bilhões (LOAs 2008 a 2014), dos quais mais de R$9 bilhões foram destinados a policiamento, com R$4,8 bilhões aplicados na polícia ostensiva e especializada. Essa prioridade pôde ser vista, por exemplo, na implementação do programa Pacto pela Vida, ainda em 2007, primeiro ano de governo de Campos.

O programa foi implementado com o objetivo de combater o crescente número de homicídios no estado de Pernambuco, que estava entre os mais violentos do país. Entre os anos 2000 e 2005, Recife apresentou a maior taxa de homicídio de todas as capitais durante cinco anos. Só em 2006, ano que antecede a implementação do Pacto pela Vida, foram registrados no estado 4.478 homicídios. O perfil dessas vítimas era composto, em mais de 93%, de homens entre 20 e 29 anos. Outro grupo atingido pela violência crescente eram as mulheres: entre os anos de 2003 e 2006, a média do estado era de praticamente uma mulher assassinada por dia.

De acordo com o projeto, o objetivo do Pacto pela Vida era reduzir em 12% ao ano as taxas de mortalidade violenta intencional em Pernambuco, a fim de atingir em oito anos a média dos demais estados, que era de 27 mortes por agressão por 100.000 habitantes. Seguindo os passos do seu antecessor, Paulo Câmara manteve a tendência e dobrou os investimentos no setor de segurança pública, somando ao longo de seus governos uma despesa de R$24,58 bilhões só com esse setor (LOAs 2015 a 2022).

É importante destacar que todo esse dinheiro despendido com o setor não se materializou em segurança para a população ou redução da violência estatal contra a classe trabalhadora, pelo contrário. Entre 2008 e 2013, a redução no número de homicídios foi de apenas 1534 casos, quando o Pacto pela Vida atingiu seu melhor resultado. Daí em diante, os números de homicídios no estado apenas cresceram, atingindo taxas como 75% de crescimento no período de 2013 a 2017.

Os índices de violência no estado são tão altos que mesmo com uma redução de 10% no número de homicídios em 2021, ainda fomos o 3º estado com maior número de assassinatos por ano. Outro elemento que chama atenção a partir da implementação do Pacto pela Vida é o aumento da população carcerária, que graças a políticas como a Gratificação Pacto pela Vida, ofertada aos policiais por apreensões, saiu de um total de mais de 17 mil em 2004 para uma situação atual de mais de 40 mil presos. Além disso, em 2019, o estado foi campeão nacional em superlotação penitenciária, com um excedente de mais de 176% da capacidade das vagas disponíveis nas unidades.

Hoje contamos com uma das polícias mais letais do país. Só no intervalo de 2019 e 2020, o número de mortos pela polícia em Pernambuco cresceu 58%, sendo essa a segunda maior variação do país, na contramão da média nacional, que diminuiu no período. Do total de pessoas mortas nas ações policiais em 2020, 97% eram negras.

O Pacto pela Vida é nada mais que uma política de estado fracassada, que financia o aumento da violência, da população carcerária e a morte da juventude negra e periférica. Cabe questionar ao PSB: como o segmento com maior investimento orçamentário do estado apresenta resultados tão ruins, a ponto de vivermos num dos estados mais violentos do país?

Uma das respostas é que o modelo e a concepção de política de segurança do PSB não diferem, no essencial, do período anterior do Governo Jarbas. Chama atenção, por exemplo, que em nenhum momento da história do PSB tenha sido uma prioridade o combate à violência policial, a redução da letalidade do estado e o enquadramento da polícia na Constituição (fazendo com que a ação da polícia nas favelas não seja a partir da lógica de “terra sem lei”).

Outro dado significativo é que, nos 16 anos de PSB no governo, não temos nenhuma política direcionada à redução da mortalidade entre a população negra. Todas as estatísticas apontam a população negra como os sujeitos mais “matáveis” nos índices de violência. É inútil procurar, no acervo das políticas do PSB, qualquer política de segurança que busque reduzir a mortalidade contra esse segmento específico da população.

O outro lado da moeda: assistência social desfinanciada em favor das comunidades terapêuticas

Do outro lado da moeda, a assistência social se encontra como um dos segmentos de orçamentos mais baixos na Era PSB. Ao longo dos dois governos de Eduardo Campos, avaliando os orçamentos anuais, tudo que foi investido em assistência social girou na casa dos R$437 milhões. O governo Paulo Câmara representou um aumento no setor, investindo, de 2015 a 2022, pouco mais de R$1 bilhão na assistência social. Contudo, ao longo de 16 anos, não temos no orçamento nem R$2 bilhões voltados ao segmento.

Além disso, não é incomum vermos os trabalhadores da área se manifestando sobre a ausência de repasses do governo de Pernambuco para os municípios. Ainda em 2020 o Conselho Estadual de Assistência Social de Pernambuco (CEAS-PE) denunciou que 54 unidades dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), de diversos municípios, poderiam fechar devido à falta de repasses financeiros que deveriam ser feitos pelo governo do estado.

A dívida do estado estava acumulada em cerca de 10 milhões de reais referente aos anos de 2018 e 2019, o que atingia diretamente os serviços prestados à população em situação de vulnerabilidade social e negação de direitos. Para o ano de 2020, foram orçados 3 milhões de reais, mas o conselho já apontava a insuficiência de recursos para financiamento dos serviços, que careciam de 14 milhões de reais para o pleno funcionamento.

É importante destacar que nas mãos do PSB as políticas de assistência social vêm sendo desfinanciadas em favor das Comunidades Terapêuticas (CTs), que podem ser caracterizadas como manicômios modernos. Ainda em 2018, a fim de fortalecer a atuação das CTs no estado, Paulo Câmara instaurou o programa de apoio às comunidades terapêuticas, destacando o quanto o seu governo acredita nas CTs como política de estado para atuar com usuários de álcool e outras drogas.

As Comunidades Terapêuticas violam todos os avanços políticos e científicos proporcionados pela reforma psiquiátrica no Brasil, promovendo o isolamento, a prática religiosa, a abstinência e o trabalho forçado como métodos de tratamento de pessoas em vulnerabilidade pelo abuso de substâncias químicas. O setor vem se mostrando cada vez mais lucrativo e a relação de políticos de direita do estado com essas comunidades é comprovada. Exemplo disso é a família Colins, que usa de seus mandatos para favorecer seu interesse pessoal na regulamentação das CTs.

O financiamento público dessas comunidades está diretamente associado ao desfinanciamento das políticas públicas de atenção à saúde mental, comprometendo a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que apesar de suas limitações, atua na perspectiva da redução de danos, promoção de direitos, desospitalização, sociabilidade e autonomia do indivíduo e conta com equipamentos como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que oferecem atendimento interdisciplinar a partir de uma equipe multiprofissional.

Essa sustentação das comunidades terapêuticas pelo governo do estado diz muito sobre a política de alianças estabelecida pelo PSB tanto na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), quanto nas prefeituras e câmaras de vereadores. Exemplo disso foi a Reforma Administrativa realizada por Paulo Câmara em 2019, que inaugurou a Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas, com um orçamento de R$37,6 milhões. A pasta foi entregue a Cloves Benevides (PP), que quando atuou na Subsecretaria de Políticas sobre Drogas de Minas Gerais nas gestões de Aécio Neves, entre 2003 e 2015, foi o responsável por possibilitar o financiamento estadual das CTs.

A educação pública

O primeiro elemento identificado quando olhamos para os recursos orçados para a educação no estado de Pernambuco é que os valores estão longe do que poderiam ser e vêm crescendo abaixo da inflação. Se considerarmos o período entre 2014 até 2022, saímos de um orçamento de pouco mais de R$3,6 bilhões para um orçamento de R$4,7 bilhões. O que significa um investimento de apenas pouco mais de R$1 bilhão em 8 anos de governo de Paulo Câmara, acréscimo que corresponde a pouco mais de 29%.

Durante a pandemia, nenhuma política efetiva foi levada adiante por parte do governo do estado para prestar auxílio aos estudantes e suas famílias diante da suspensão das atividades presenciais nas escolas. A política tímida de subsídio à alimentação dos alunos que ficaram sem merenda foi um auxílio de R$50 mensais por estudante, o que não alimenta nenhuma criança ou adolescente de forma digna.

Segundo relato das famílias, o valor do auxílio só era suficiente para alimentação de 10 dias no mês, sem contar o acesso a carne, que é impossível de ser comprada com frequência. Mas as questões sobre a desvalorização da merenda escolar no estado de Pernambuco não são referentes apenas à pandemia. Pelo menos desde 2017 existem investigações sobre corrupção nos contratos das empresas privadas que fornecem merenda às escolas, além disso, as denúncias sobre alimentos vencidos e de má qualidade também não são raras.

Em 2018 o Tribunal de Contas do Estado investigava os contratos na capital pernambucana com a Casa de Farinha, na época responsável por 100% da merenda escolar na rede municipal do Recife, também governada pelo PSB. A denúncia era de que a empresa não tinha vencido nenhuma licitação no pregão eletrônico da prefeitura. Só no intervalo de 2014 a 2018, a empresa já tinha recebido mais de R$78 milhões da prefeitura.

No final de 2020 foi a vez do Governo Estadual ser notificado pelo Ministério Público de Contas de Pernambuco (MPCO), que apontava indícios de irregularidades nos contratos assinados em outubro daquele ano pela Secretaria de Educação, depois de duas dispensas de licitação para o fornecimento da merenda escolar para a rede estadual de ensino. Esses acordos totalizavam R$14 milhões.

Uma das empresas envolvidas já era monitorada por receber diversas dispensas emergenciais milionárias da secretaria de educação, mas o endereço oficial da mesma era o da residência privada da pessoa que dava nome à empresa. A segunda empresa contratada tinha histórico longo de denúncias sobre a má qualidade da alimentação servida, já tendo sido interditada por servir comida contaminada com coliformes fecais na região de Garanhuns.

O caso mais recente de denúncias envolvendo merenda escolar foi da Escola Técnica Estadual Luiz Alves Lacerda, no Cabo de Santo Agostinho, onde 60 alunos sofreram com uma intoxicação alimentar após comer a merenda servida na escola e outros 10 foram hospitalizados. É importante destacar que a empresa responsável pela merenda na escola já esteve sob investigação em Olinda no ano de 2017.

Além de todos os problemas relatados acima, cabe destacar o desprezo pela agricultura camponesa e como o governo do PSB não utiliza o instrumento de compras governamentais de alimentos para merenda escolar como forma de impulsionar a pequena produção e dinâmicas produtivas sem veneno, mais respeitosas com a natureza.

Maria Lígia Barros, em reportagem ao Brasil de Fato Pernambuco, relata como o Programa Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PEAAF), de 2020, nunca saiu do papel e destaca a negligência do PSB com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Vale a pena citar um longo trecho da reportagem:

Para além da pandemia, a execução do programa [PNAE] ainda está aquém do patamar ideal. A aplicação da lei não vinha sendo seguida à risca, segundo dados abertos disponibilizados pelo Governo Federal. A verba federal do PNAE vem do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação (MEC), e é repassada diretamente para estados e municípios, que complementam os valores para atender todas as redes estaduais e municipais de ensino. A porcentagem dos 30% é calculada apenas sobre a parte proveniente do FNDE, mas Pernambuco não conseguiu nem chegar perto desse índice até 2017 (dado aberto mais recente do PNAE). O maior investimento da série histórica foi em 2014, quando o Estado destinou 16% do recurso para a agricultura familiar. Nos anos seguintes, esse percentual passou para 11% (2015), 7,52% (2016) e 14,78% (2017). O Brasil de Fato Pernambuco procurou a Secretaria de Educação e Esportes (SEE) de Pernambuco para perguntar se há números mais recentes relativos ao PNAE, o que explica o baixo percentual em desacordo com a lei e se o Estado tem empenhado esforços para ampliar as compras de agricultores familiares. A pasta não se posicionou. O espaço segue aberto para um pronunciamento. Quanto aos municípios pernambucanos, só 60 conseguiram atingir ou ultrapassar a meta dos 30% no ano de 2017.  ‘O PNAE é um programa que é muito importante, mas tem seus altos e baixos porque depende da decisão política do gestor. A gente pôde identificar como a partir de uma posição política de um gestor aberto, que dialogasse, como isso fluía do ponto de vista da produção e também da compra’, avalia.

Ainda no âmbito da política educacional, cabe destacar que metade dos quase 40 mil professores da rede estadual estão em contratos precários, sem concursos públicos – para a área de ciências humanas, essa é a realidade há 10 anos. O desprezo por concursos públicos com bons planos de cargos e carreiras, prestigiando contratos precários e de curta duração, faz parte de uma lógica maior de enfraquecimento das carreiras públicas na educação. O Governo Paulo Câmara, até o começo deste ano, não pagava o piso nacional da categoria. Só agora, em 2022, no ano da eleição, é que tivemos um aumento de 35% nos salários, atingindo o piso nacional da categoria.

A saúde em Pernambuco

A saúde em Pernambuco é outro setor que reflete a política de caráter privatista do PSB. Historicamente, os trabalhadores da saúde enfrentam condições de trabalho adoecedoras e os usuários sofrem com a decadência estrutural das unidades de saúde.

Com a pandemia da covid-19, a precarização no setor se aprofundou com repercussão mais direta em categorias como a enfermagem, que foi a que mais sofreu com o agravamento do risco de contaminação com o coronavírus, com falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) ou de baixa qualidade, além da falta de orientação quanto ao uso e descarte destes.

De acordo com dados do Observatório da Enfermagem, organizados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), no estado de Pernambuco foram registrados 1731 possíveis casos de covid-19 entre trabalhadores da enfermagem, com 37 óbitos confirmados, sendo o estado do Nordeste com maior número de óbitos entre essa categoria e com taxa de letalidade quase duas vezes superior à taxa nacional.

Pelo menos desde 2019 a categoria vem se manifestando por melhores condições de trabalho e remuneração justa. O governo do PSB não apenas segue omisso, como permite que os trabalhadores sejam agredidos nas ações truculentas do Batalhão de Choque da Polícia Militar, como aconteceu em 2020, com repressão da manifestação legítima de trabalhadoras/es e prisão do presidente do Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem de Pernambuco (SATENPE).

A greve deflagrada em 2020 foi considerada ilegal pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco e representantes do Estado à época alegaram que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impede as resoluções reivindicadas. O PSB, tanto em Pernambuco como no âmbito nacional, está totalmente adaptado à lógica neoliberal da LRF e não contesta esse modelo institucional de ataque ao funcionalismo público.

As mudanças radicais nas condições de trabalho, salário e dignidade dos profissionais de saúde e das unidades de atendimento passam por uma mudança substancial na política de saúde do estado. Ao olharmos para o orçamento estadual é evidente que hoje grande parte do valor destinado à saúde é direcionado para as Organizações Sociais em Saúde (OSS). Vejamos o comparativo na tabela abaixo:

ANOORÇAMENTO GERALOSS
2019R$ 5.973.329.600R$ 1.826.805.223,65
2020R$ 6.330.921.400R$ 2.190.966.979,57
2021R$ 6.764.424.615R$ 2.126.785.565,86

Esse modelo de gestão privatizado implica, dentre outras coisas, a baixa transparência nos números e padrões de custos. O que fica evidente ao observar os números é que todos os anos quase um terço do orçamento da saúde é repassado às OSS, valores na casa dos bilhões de reais, enquanto as políticas estruturantes, como é o caso da atenção básica, não são prioridade nem de longe.

Nesse mesmo intervalo de tempo em que as OSS receberam mais de R$6 bilhões, apenas R$76 milhões foram destinados à atenção básica de todo o estado, evidenciando o investimento num modelo de saúde hospitalocêntrico, focado na perspectiva da queixa-conduta, ignorando os avanços que podem ser proporcionados por uma política de saúde integral, com atenção básica fortalecida, acompanhamento comunitário e condições adequadas de vida e trabalho para o povo.

Entretanto, mesmo os hospitais, tão evidenciados nas propagandas eleitorais como referências no Nordeste, sofrem com o descaso e o subfinanciamento. Exemplo disso foi o acidente no Hospital da Restauração, o maior hospital do estado, onde o teto desabou sobre a ala de emergência após um cano estourar. As imagens são assustadoras, com pacientes acamados em clara situação de sofrimento sendo atingidos pela água que cai do teto e profissionais desesperados tentando amenizar a situação.

Esse é apenas um dos diversos exemplos que podemos citar aqui de descaso no cuidado com a pessoa adoecida. Mas, na verdade, se nos aprofundarmos encontraremos problemas desde as necessidades mais básicas, como a política de saneamento básico do estado de Pernambuco, que vem sendo desfinanciada.

Segundo as LOAs, o orçamento estadual para o saneamento básico saiu de R$1,19 bilhões em 2013 para R$244 milhões em 2021. Como resultado, os padrões de saneamento básico e acesso à água potável no estado são extremamente baixos, com uma parcela muito pequena da população que acessa tais serviços de forma satisfatória.

No dia 22 de março, o Instituto Trata Brasil divulgou o ranking do serviço de saneamento básico das 100 maiores cidades brasileiras. O que chamou atenção foi que as cidades pernambucanas, Recife e Jaboatão, estavam entre os 20 piores serviços.

De acordo com os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2020, a capital de Pernambuco conta com quase 20% da sua população sem acesso a água tratada e apenas 30,8% têm serviço de esgoto. Nos governos do PSB, o saneamento não foi de longe um serviço prioritário. Desde 2014, quando o orçamento para o setor sofreu um corte de cerca de 50%, os serviços vinham funcionando com valores na casa dos 300 a 200 milhões de reais.

Conclusão

A conclusão que podemos chegar é inescapável. A política orçamentária na saúde, educação, segurança e assistência social indica uma prevalência de um modelo de funcionalismo “público” precário, sem concurso, dominado por Organizações Sociais e funcionado a partir de critérios de qualidade totalmente orientados por uma lógica neoliberal e marqueteira.

Essa dinâmica se reflete também na escolha dos gastos prioritários. A política de segurança se resume à repressão e encarceramento em massa e conta com orçamento privilegiado. A política de assistência social, por sua vez, está desfinanciada e precarizada. A segurança e a assistência social são pensadas como áreas totalmente separadas, quase antagônicas.

Os aumentos de gasto orçamentário em saúde e educação, se comparados com o Governo Jarbas, existem, mas acabam sendo devorados pela privatização da gestão – especialmente com as OSSs, no caso da saúde –, terceirização e parcerias público-privadas que não representam nenhuma melhora no serviço quando avaliado globalmente. A lógica de gestão do PSB, nada diferente do PSDB ou outro agrupamento partidário neoliberal, é, por exemplo, construir um grande hospital e entregar a gestão para uma OSS, destinando para isso milhões do orçamento público. O usuário do hospital, sem conhecimento de todo modelo da política de saúde, pode até gostar do atendimento, considerá-lo qualificado, mas esse atendimento feito via OSS significa uma política “médico-hospitalocêntrica” com abandono da atenção básica e de uma política de saúde integral1, fazendo da gestão do hospital uma inesgotável fonte de lucro para a iniciativa privada.

O governo do PSB é a negação quase completa de um importante lema histórico das esquerdas: “público, gratuito, universal e de qualidade”. A falsa esquerda de Pernambuco ressignificou o lema para “terceirizado, caro, seletivo e ruim”. Não estranha que com essa atuação, depois de 16 anos de “Governo Progressista”, a disposição do povo trabalhador de Pernambuco para defender serviços públicos e uma gestão estatal de riquezas seja a mesma que em qualquer estado governado há anos pela direita.

Essa eleição, dentre outras coisas, precisa servir para fazer um debate profundo com o povo trabalhador e a juventude sobre o modelo de governança em Pernambuco, mostrando que nesses anos nosso estado não conheceu um projeto político de esquerda, popular, voltado para um enfrentamento radical das desigualdades e um fortalecimento robusto dos serviços públicos.


Nota
1 Para uma discussão qualificada sobre política de saúde, conferir o documento: https://pcb.org.br/portal2/28703

***
Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo.

Victória Pinheiro é diretora de políticas educacionais da UNE, secretaria de movimento estudantil da UJC-PE, membra da coordenação nacional da UJC e pré-candidata à deputada federal pelo PCB-PE.

1 comentário em A disputa pelo orçamento público em Pernambuco (I)

  1. Texto fundamental. É importantes desfazer o mito de que falta dinheiro para investir na promoção da dignidade de quem paga a conta: As trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Já que os trabalhadores financiam as contas, a prioridade deve ser o setor público e não meia dúzia de oligarquias engravatadas.

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