“Em busca de Anselmo” e a gravidez de Soledad Barrett

Urariano Mota comenta a série “Em busca de Anselmo”, destacando o lugar de Soledad Barrett, de sua gravidez e de sua morte entre as atrocidades cometidas pelo agente duplo da ditadura.

Por Urariano Mota

Agora está disponível na HBO Max a série Em busca de Anselmo em sua totalidade de cinco episódios. Nela, a face do cabo Anselmo como assassino pago pela ditadura brasileira é provada com imagens, palavras e documentos. Pela primeira vez, um trabalho de investigação cinematográfica e reportagem se faz sem cair no jogo ardiloso do bandido Anselmo, que sempre enganou jornalistas ao ser entrevistado. A série, dirigida pelo documentarista Carlos Alberto Jr., é digna de ser conhecida por todos e todas como uma história da ditadura brasileira em imagens.

E para o retrato do cabo Anselmo é inescapável a ligação com a sua companheira, a brava Soledad Barrett, que ele entregou para a morte na ditadura. Tive a honra de escrever o livro pioneiro sobre esse crime na minha novela Soledad no Recife e depois, de modo mais amplo, no meu romance A mais longa duração da juventude onde ela e Anselmo aparecem como pessoas com seus nomes reais, ao lado de outros como Jarbas Marques, um dos modelos de personagem para o livro. Jarbas foi um dos 6 mortos na Chacina da Granja São Bento.   

Na série, no quarto e quinto episódios vemos as imagens raras do depoimento da advogada Mércia Albuquerque, imagens jamais vistas pelo grande público, no seu depoimento-denúncia na Secretaria da Justiça de Pernambuco. No quarto episódio, ao revê-la em seu papel de mulher corajosa, eu me levantei do sofá e gritei, porque era irreprimível: “Linda!!!”. Mas a sua beleza não vinha da estética do rosto. Vinha do heroico ato que a elevou para sempre nos corações de todos. Porque existe uma beleza que não é física, é uma qualidade moral, assim como vemos as soldadas do Exército Vermelho, assim como vemos aquele soldado maravilhoso que põe a bandeira comunista no alto do prédio nazista ao fim da guerra. Assim como é belo Cervantes, desdentado e maneta, ao construir o maior romance de todos os séculos. Linda, falei ali e repito aqui: Mércia era mais que linda, porque seus gestos e ações eram belos.

Nesse último episódio de Em busca de Anselmo, o cineasta Carlos Alberto Jr. consegue realizar um episódio tão bem realizado com olhos artísticos sobre a infâmia, que o episódio se destaca como um filme autônomo. Nele, desde o começo desse quinto de denúncia, ficamos em choque diante de um Anselmo à vontade em um sítio, tranquilo, feliz, vaidoso como um bom filho da pura, da pura canalhice. O assassino se exibe como um bondoso homem, daquele tipo de cidadão de bem. Poderia ser dito da cena: matou a bravura de patriotas e foi ao paraíso. Mais adiante, colado a seu depoimento de voz serena, vemos ex-policiais, no enterro de Fleury, contando que Anselmo, de fato, dava cursos a eles, treinava-os, que Anselmo era um sábio da pedagogia da ditadura. Corta para o depoimento e a infâmia continua: agora, Anselmo conta que deu palestras para oficiais fascistas no Chile, como profissional, que foi bem pago! E completa com ar de galhofa: eu bem que queria mais um dinheirinho desses.

Para concluir sobre as suas mentiras contra a esquerda e por seu trabalho de infiltração e entrega de militantes: “eu fiz um bom trabalho”. Como quem fala: “eu fui perfeito”.  

Mas há um outro momento no episódio que devo destacar. É quando Ñasaindy, a filha única de Soledad Barrett, é entrevistada na altura do ano de 2017. Ao responder a uma pergunta sobre a gravidez de Soledad, que Jorge Barrett (seu tio) nega, ela deixou em aberto. Ela não põe em dúvida a existência do depoimento da advogada Mércia Albuquerque. Ñasaindu até discorda de Jorge, irmão de Soledad, sem mencioná-lo, ao dizer que nem sempre o corpo da mulher grávida se modifica a ponto de outras pessoas perceberem no início. E Soledad poderia não ter contado da gravidez para Jorge. Mas a esta altura, a gravidez de Soledad Barrett não pode mais ser posta em dúvida, porque recupero inquestionáveis depoimentos a seguir.

Leiam-se as palavras de Genivalda Silva, viúva de José Manoel, um dos executados pela delação do Cabo Anselmo na matança da Granja São Bento. Na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, ela declarou:

“Poucos meses antes de matarem José Manoel. Então Soledad estava grávida e Anselmo me perguntou se eu conhecia alguém pra fazer um aborto em Soledad. Isso eu digo a vocês de coração, não estou mentindo nem levantando falso ao Anselmo. E eu falei pra ele: ‘Anselmo’, que eu nem sabia que ela era a esposa dele, eu disse ‘olhe, jamais, se eu soubesse te indicaria alguém pra fazer um aborto por que só quem tem que tirar a vida de um ser humano é Jesus, e mais ninguém. Por isso eu não lhe ensino’. E ele saiu com José Manoel, com o meu marido, com Zezinho, e a Soledad ficou dois dias comigo na minha casa. Mas ela era assim, uma pessoa muito calma, falava uma linguagem que eu não entendia quase nada, até que eu gostei da maneira dela, mas ela era assim no canto dela. Eu preparava o almoço ela comia, eu preparava a janta ela comia, mas era uma pessoa assim que não abria a boca pra mim pra comentar nada. Só foi uma coisa que eu perguntei pra ela assim: ‘Você quer perder realmente seu filho? Ela balançou a cabeça, disse ‘não’, e as lágrimas desceram’ ”.

Na mesma direção que confirma a gravidez de Soledad Barrett, o militante pernambucano, de nome Karl Marx, falou estas palavras na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara:

“Sempre que a gente estava conversando com o marido, o pseudomarido, pseudocompanheiro, que era o Daniel, sempre que ele estava conversando com a gente, ela estava com minha mãe e com minha cunhada lá na cozinha. E minha cunhada soube que ela estava grávida… Aí foi quando ela disse que estava grávida. Isso eu tenho certeza absoluta. Ela estava grávida”.

Aos depoimentos públicos acima, junta-se de modo mais eloquente a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife. Hoje, Nadejda  Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Nos dias do carnaval de 2018, conversei com ela. E pude ver o que não queria, nem imaginava. Aqui vai resumido, nos limites permitidos, o seu depoimento:

“Soledad se queixou da gravidez à minha mãe. Tanto minha mãe quanto minha avó viram o casal, mais de uma vez. Por exemplo, em um encontro, Soledad estava enjoada e vomitava por causa da gravidez. Estavam presentes minha mãe, tia, Soledad e Pauline… Minha mãe me falou que ela e Soledad iam à praia juntas, que Soledad parecia feliz com a gravidez, que era bonita e elegante. Soledad Barrett me presenteou uma roupinha de bebê. Ela era uma pessoa doce e amável”.

Agora vem a crueldade que a memória não sepulta:

“A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério com Mércia. Dona Rosália, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”.

Em resumo, tanto quiseram desmerecer a denúncia da advogada Mércia Albuquerque, mas a história afinal lhe dá razão e comprova o que ela uma vez falou: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

Em relação a Soledad Barrett, a história ainda está rolando os dados.   

Publicado originalmente no site Vermelho.


Soledad no Recife, de Urariano Mota

O livro Soledad no Recife percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar. Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de candidatos a guerrilheiros, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se mais um extermínio do que um confronto armado. A trama real inspira o romance em que Urariano Mota – com a propriedade de que viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 – resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o país naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem volta ao passado. 


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Urariano Mota  é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

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