Entre a destruição da natureza e a dilapidação do trabalho

Ricardo Antunes comenta “O solo movediço da globalização”, de Thiago Aguiar, destacando que o livro decifra alguns dos mecanismos de funcionamento da Vale: dilapidação da natureza, assolação do trabalho e vilipêndio da humanidade, tudo amalgamado na extração mineral.

BOMBEIRO DURANTE BUSCAS POR SOBREVIVENTES EM BRUMADINHO (MG) – FOTO: MAURO PIMENTEL/AFP

Por Ricardo Antunes

Quando fui pela primeira vez a Marabá, tive uma daquelas sensações que um sociólogo crítico jamais esquecerá. Algo similar ao que senti quando, anteriormente, estive em Criciúma, visitando uma mina de carvão. Na viagem ao Pará, ao sobrevoar a cidade e me aproximar dela, pude ver uma fotografia desoladora. Crateras imensas se esparramavam, desertificando completamente o espaço. Era a herança da horrorosa “era do ouro” da Serra de Carajás, tão cultuada pela ditadura militar.

Não são poucas as atividades econômicas que flertam com a predação e a exploração mineral, e assim enfeixam um trágico entrelaçamento entre a destruição da natureza e a devastação do trabalho.

Para melhor compreender esse complexo, o livro de Thiago Aguiar – apresentado originalmente como tese de doutorado (sociologia, USP) – é agora publicado pela coleção Mundo do Trabalho. O texto analisa a Vale desde sua origem estatal até sua conversão em corporação global.

Em 2007, uma década depois da privatização pelo governo FHC, a empresa modificou seu nome de Companhia Vale do Rio Doce para Vale. E muito rapidamente foi responsável pelas duas maiores tragédias ambientais de nossa história, em Mariana e Brumadinho. A dupla catástrofe resultou em quase 300 mortos, arrasando o rio Doce e seu lindo vale e soterrando a bela e pacata Brumadinho. Dilapidação da natureza, assolação do trabalho e vilipêndio da humanidade, tudo junto e amalgamado na extração mineral.

Decifrar alguns dos mecanismos de funcionamento da empresa, eis o objetivo central de O solo movediço da globalização: trabalho e extração mineral na Vale S.A. Como ela se relaciona com seus milhares de trabalhadores e trabalhadoras? Como age em relação aos sindicatos? Por que foi no solo dessa empresa – que se diz praticante da “responsabilidade social e ambiental” – que ocorreu a deflagração de uma das maiores greves do setor, no Canadá, onde a Vale também atua?

Num estudo meticuloso, o autor realizou pesquisas de campo com operários e sindicalistas (no Brasil, no Canadá e nos Estados Unidos) e ouviu também atuais (e antigos) gestores da empresa. Realizou várias incursões etnográficas em Carajás, onde se localizam as maiores minas de ferro a céu aberto do mundo, e em São Luís do Maranhão, onde estão situadas as suas principais instalações portuárias.

Dada a dimensão global da Vale, sua investigação o levou também à unidade canadense, em Ontário, onde realizou entrevistas. Lá mesmo, a corporação atuou para desorganizar uma antiga comunidade mineira e enfraquecer o importante sindicato dos mineiros (United Steelworkers), e assim impedir a deflagração de greves. Sabemos que é um princípio basilar dos CEOs que se esparramam pelo “mundo corporativo” agir obstinadamente para impedir ou isolar os sindicatos e dificultar a união e a organização dos operários e operárias.

Por fim, o livro apresenta também os resultados do estudo das relações entre a Vale e os governos (particularmente os de Lula e Dilma); o papel agudo dos fundos de pensão no processo de privatização; e a atuação “generosa” do BNDES, que incentivou a Vale a dar o salto que possibilitou a sua conversão em uma pujante corporação global.

Descortinando, passo a passo, o modus operandi corporativo, O solo movediço da globalização é uma obra atual, forte e original, que nos ajuda a entender a nefasta imbricação entre a destruição da natureza e a dilapidação do trabalho no mundo da extração mineral.

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De Mariana a Brumadinho, os últimos anos foram marcados por “acidentes” ambientais promovidos pela mineradora Vale S.A. O solo movediço da globalização, do sociólogo Thiago Aguiar, é resultado de uma ampla pesquisa sociológica, econômica e etnográfica, conduzida em dois países com forte presença da gigante mineradora, Brasil e Canadá. O autor foi a campo e conversou com trabalhadores, dirigentes sindicais, gestores e ex-gestores da empresa para mostrar as mudanças nas relações de trabalho ao longo dos anos, a reestruturação das operações da Vale no Canadá, após a compra da Inco em 2006, que levou à maior greve no setor privado daquele país em trinta anos, além das recentes transformações na estrutura de propriedade e na “governança corporativa” da Vale.

Com consequências devastadoras para trabalhadores, comunidades e meio ambiente, o caso da Vale S.A. é um exemplo da desastrosa integração da economia brasileira ao capitalismo global nas primeiras décadas do século XXI. No livro, o autor narra em detalhes a complexa transformação da Vale, uma tradicional empresa estatal umbilicalmente associada ao ciclo industrializante do país, em uma grande corporação mundial na liderança da produção de minério de ferro e de níquel.

“Os trabalhadores de Sudbury responderam com força à chegada da Vale ao Canadá e a suas tentativas de impor ‘salários e condições de trabalho do Terceiro Mundo’. Mas estaria a Vale atuando como uma mineradora ‘brasileira’ ou apenas seguindo o padrão da indústria extrativa global sob o neoliberalismo? O solo movediço da globalização, de Thiago Aguiar, é uma importante contribuição para a compreensão da mineração globalizada.”
JUDITH MARSHALL – Centre for Research on Latin America and the Caribbean (CERLAC – York University, Canadá)

O solo movediço da globalização não é um livro sobre a Vale, mas sobre as relações sociais por detrás de uma grande empresa no capitalismo globalizado. Sua relevância pública é evidente, diante de um cenário de mudanças em que uma transnacional brasileira joga o jogo do capital global. O emprego da etnografia e o olhar comparativo sistemático demonstram o potencial das ciências sociais para entender o mundo em que vivemos.”
LEONARDO MELLO E SILVA – Professor da Universidade de São Paulo

“O livro apresenta uma primorosa pesquisa orientada pelo que há de mais interessante na sociologia do trabalho: a compreensão de como microprocessos determinam e são determinados pelas macrorrelações sociais. Nele, vemos como o trabalho na Vale reflete e, ao mesmo tempo, alimenta as características da gestão de corporações transnacionais num texto forte e comprometido com a luta dos trabalhadores.”
PAULA MARCELINO – Professora da Universidade de São Paulo

O livro de Thiago Aguiar tem prefácio de Ruy Braga, texto de orelha de Ricardo Antunes, quarta capa de Judith Marshall, Leonardo Mello e Silva e Paula Marcelino e capa de Romerito Pontes.

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Disponível em nossa loja virtual e e-book à venda nas principais lojas do ramo:


Não perca a live de lançamento de O solo movediço da globalização no dia 29 de abril às 15h, com Thiago Aguiar, Ricardo Antunes, Ruy Braga e Daniela Costanzo (mediação), na TV Boitempo:

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Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo. Organizou os livros Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (2007) e Infoproletários: a degradação real do trabalho virtual (2009), ambos publicados pela Boitempo. É autor, entre outros, de Os sentidos do trabalho (1999, também publicado nos EUA, Inglaterra/Holanda, Itália, Portugal, Índia e Argentina), O caracol e sua concha (2005), O continente do labor, (2011), O privilégio da servidão (2020, edição revista e ampliada) e Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (2020, publicado também na Itália). É também organizador de Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (Boitempo, 2020). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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