Plataformas e trabalho (in)decente no Brasil
Os resultados das avaliações das plataformas no Brasil demonstram a fragilidade na comprovação dos itens mais básicos em relação à dignidade de trabalhadoras e trabalhadores. Além disso, mostram que há muito o que fazer em termos de políticas públicas e regulação do trabalho por plataformas para assegurar esses princípios.
Por Rafael Grohmann, Claudia Nociolini Rebechi, Julice Salvagni e Roseli Figaro
Hoje o projeto Fairwork lançou seu primeiro relatório no Brasil analisando como as principais plataformas digitais de trabalho relacionam-se a princípios de trabalho decente. Em uma escala de 0 a 10, a pesquisa mostra iFood e 99 com 2, Uber com 1, e as outras plataformas (Rappi, GetNinjas e UberEats) com 0.
O projeto é sediado na Universidade de Oxford e presente em 27 países. No Brasil, a equipe é constituída por pesquisadores e pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A metodologia envolve entrevistas com trabalhadores, pesquisa documental e reuniões com gestores de plataformas. Tal projeto é um ponto de partida para que se possa mapear informações sobre um território potencialmente móvel e obscuro, como é o da plataformização do trabalho, que cria disfarces para seguir aumentando a exploração trabalhista. É o início para criar mecanismos de pressão junto às plataformas.
Os cinco princípios de trabalho decente que norteiam a avaliação das plataformas são: remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. No que diz respeito à remuneração, é problemático o fato de as plataformas imporem aos trabalhadores os custos para realização das suas atividades, o que envolve a aquisição e manutenção dos equipamentos, por exemplo. Ainda, a lógica do trabalho por demanda sugere ampla disponibilidade, o que leva a jornadas que muitas vezes ultrapassam as 40 horas semanais, sem que o trabalhador receba pelo tempo de espera entre uma chamada e outra. Por fim, sublinhamos o fato de as plataformas repassarem apenas uma parcela do que o cliente pagou pelo serviço. Sem ter transparência em relação a estes valores, o que inclui o comércio dos dados dos trabalhadores e clientes das plataformas, tem-se a intensificação da jornada com redução da remuneração.
Sobre as condições de trabalho, sublinhamos os múltiplos riscos aos quais os trabalhadores estão expostos, sem que as plataformas os assegurem em caso de acidentes, furtos ou doenças. Além disso, mesmo as plataformas que oferecem equipamentos de proteção individual (EPIs) aos trabalhadores, eles não conseguem ter acesso ao material, pois estão em lugares muito distantes. Já os contratos muitas vezes resumem-se a termos e condições em letras minúsculas, que o trabalhador na maior parte das vezes aceita sem ao menos ler. Há também mudanças nos termos que não são notificadas com um período razoável de antecedência.
No que diz respeito ao modelo de gestão das plataformas, não há políticas claras em relação aos processos de desativação ou bloqueio nas plataformas, resultando em trabalhadores bloqueados injustamente e que não conseguem recorrer de forma satisfatória às decisões das plataformas. Os trabalhadores relatam: “eu só falo com robôs, não com seres humanos”. O gerenciamento algorítmico acentua opacidades na relação com os trabalhadores em relação a sistemas de classificação e coleta de dados. Além disso, desde o design das plataformas, há um aprofundamento de desigualdades de gênero, raça, entre outros, no âmbito da própria gestão.
Por fim, em relação à representação, os princípios destacam a importância de as plataformas assegurarem a liberdade de associação e a voz de trabalhadores como algo básico. Ou seja, a comunicação das insatisfações acerca das condições de trabalho não poderia ser inibida ou penalizada. Porém, muitos trabalhadores afirmam que já foram bloqueados por participar de manifestações e protestos.
Os resultados das avaliações das plataformas no Brasil demonstram a fragilidade na comprovação dos itens mais básicos em relação à dignidade de trabalhadoras e trabalhadores. Além disso, mostram que há muito o que fazer em termos de políticas públicas e regulação do trabalho por plataformas para assegurar esses princípios. Tendo por base os relatórios já divulgados pelo Fairwork em outros países, o Brasil posiciona-se como uma das piores avaliações. Em países como Gana, Índia, Indonésia e África do Sul, por exemplo, há plataformas com pontuações maiores em relação aos mesmos princípios. Mesmo na América do Sul – o continente com as piores classificações até o momento no mundo – o Brasil apresenta um cenário semelhante, mas pior, pois o máximo de pontuação no Chile e no Equador foi 3, enquanto no Brasil foi 2.
É preciso que o capitalismo reconheça o mínimo de dignidade no trabalho. Com isso, não estamos propondo que os princípios que alicerçam o conceito do trabalho decente devam encerrar o debate sobre as condições de produção no modo capitalista. Trata-se justamente do contrário: reivindicar os direitos dos trabalhadores é apenas a pedra fundante de um sistema de injustiças que pretendemos ver paulatinamente sendo destruído. Isto é, o Fairwork e seus princípios são o início da conversa – até porque exigem o básico do básico – não o seu final. O projeto joga luz para uma problemática que tende a ser regra para o futuro do trabalho.
Não podemos perder de vista que os mecanismos do atual estágio do capitalismo, fundamentados pela financeirização, pelo neoliberalismo e pela reestruturação produtiva – já em curso desde a segunda metade do século XX – proporcionam condições ideais à atuação econômica das plataformas e ao modelo de trabalho que elas impõem para uma população de trabalhadores que está tentando encontrar formas de sobrevivência, com subordinação às infraestruturas e tecnologias que controlam. Ao mesmo tempo, a barbárie e a incivilidade promovidas pelo modelo de negócios dessas empresas aprofundam ainda mais o caráter perverso do capitalismo que, por um lado, fortalece a si próprio e, por outro, enfraquece as lutas e as resistências em prol do trabalho decente.
Temos observado, inclusive no Brasil, que plataformas estão se valendo dos princípios do Fairwork em suas estratégias de comunicação institucional para tentar convencer pessoas e instituições quanto à sua suposta atuação em prol do trabalho decente. Essa prática é chamada de “fairwashing” e procura confundir a opinião pública no que diz respeito aos padrões éticos que deveriam ser seguidos e, também, intenciona evitar modificações significativas que possam, de fato, assegurar condições dignas de trabalho. As plataformas, assim, tentam cooptar discursos que seriam em prol do bem comum para dentro das lógicas de seus modelos de negócios – inclusive com ajuda de think tanks para ajudá-las a posicionarem-se melhor no mercado em relação a “causas” como essas, ou mesmo tentar criar versões rebaixadas de indicadores sérios que visam assegurar direitos de trabalhadores.
Isso não é algo novo. Está na base da ideologia californiana (ou do Vale do Silício) desde a década de 1990. Palavras como “abertura”, “democracia”, “participação” e “colaboração” foram cooptadas ao longo das décadas em prol dos discursos das empresas – que se afirmam como cidadãs, inovadoras e comprometidas com o bem comum. As plataformas, então, vendem-se como abertas ao diálogo e – agora – comprometidas com o trabalho decente. Elas estão sendo pressionadas a responder muitos questionamentos e a enfrentar resistências de trabalhadores e de outros agentes da sociedade quanto à lógica cruel estabelecida por seu modelo de negócios constitutivo da economia de plataformas. Mas não podemos permitir que as empresas que lucram com a violação dos direitos trabalhistas definam os parâmetros do que seria trabalho decente. Tendo isso em vista, iniciativas como a do projeto Fairwork de trazer à tona a realidade das condições de trabalho no contexto das plataformas e responsabilizar essas empresas são necessárias e urgentes para, especialmente, garantirmos um futuro do trabalho digno.
Para aqueles que defendem dignas condições de vida para trabalhadores e trabalhadoras, só há um futuro possível: a organização. No contexto do capitalismo plataformizado, precisamos aprender a construir outras estratégias para a conquista do objetivo da emancipação do trabalho. Considerar outras estratégias é compreender profundamente as formas como as pessoas trabalham e como elas vão encontrando brechas e fissuras para se manterem vivas e humanas frente à barbárie das condições de trabalho na atualidade. A comunicação e a sociabilidade sempre foram caminhos para a construção de redes de confiança e solidariedade, fundamentos de toda a luta emancipacionista. É preciso considerar ainda o papel de experimentações e prototipações para vislumbrar outros mundos possíveis em relação ao trabalho e às plataformas. O trabalho decente é uma pequena chama que começa para acender a grande fogueira da luta por emancipação de trabalhadores e trabalhadoras.
As autoras deste texto agradecem a toda a equipe do Fairwork Brasil, em especial, Marcos Aragão, Rodrigo Carelli, Victória da Silva, Ludmila Costhek Abílio, Ana Flávia Marques, Camilla Voigt Battistela, Jacqueline Gameleira, Helena Farias, Mark Graham, Kelle Howson e Tatiana López Ayala. Também agradecem às equipes do Fairwork em todos os outros 26 países envolvidos na pesquisa.
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Os laboratórios do trabalho digital
Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas, obra organizada por Rafael Grohmann, traça um panorama dos estudos sobre trabalho e tecnologia por meio de 38 entrevistas com os principais pesquisadores da área no Brasil e no mundo, como Virginia Eubanks, Jamie Woodcock, Ursula Huws, Ludmila Costhek Abílio e Ricardo Antunes. Uma das várias lições deste livro é que o cenário atual do trabalho em plataformas não é inevitável como aparenta ser; é, pelo contrário, um laboratório.
Confira também o comentário de Ruy Braga sobre o livro aqui no Blog da Boitempo.
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Rafael Grohmann é professor de mestrado e doutorado em comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour e do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford, além de pesquisador do projeto Histories of Artificial Intelligence: Genealogy of Power, da Universidade de Cambridge. É organizador de Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas (Boitempo, 2021).
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