Quais as origens do Dia Internacional das Mulheres?

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Por Daniela Lima

Era perto do fim do expediente da tarde de sábado, 25 de março de 1911, quando uma nuvem de fumaça se espalhou pelos três andares superiores do Asch Building, em Nova York. Ouviu-se o som de estilhaço de vidro seguido de um forte estampido. As trabalhadoras da Triangle Shirtwaist Company, que ocupava o espaço, acreditavam que fossem fardos de tecido ou pedaços da fachada que se desprendiam do prédio consumido pelo fogo. Logo perceberam o horror absoluto: aquele estranho estampido vinha dos corpos de mulheres e meninas que se jogavam das janelas tentando escapar das chamas. Bombeiros tentavam inutilmente amparar a queda com redes de proteção que se rompiam pelo peso dos corpos. A fumaça e os gritos se alastravam por quarteirões, bombeiros desorientados direcionavam as mangueiras para os últimos andares do prédio tomado pelas chamas, mas a água só tinha pressão para atingir o sétimo andar do Asch Building. Em apenas 18 minutos, o incêndio transformou o oitavo, o nono e o décimo andar em escombros. Dentro do prédio, trabalhadoras se espremiam contra duas saídas de emergência – uma delas estava trancada.

Eu, junto com outras moças estava no vestiário do oitavo andar [da fábrica] […], às 4h40 em ponto, da tarde de sábado, 25 de março, quando ouvi alguém gritar: fogo! Larguei tudo e corri para a porta [de emergência] que estava trancada e, imediatamente, as meninas se amontoavam atrás dela. Os patrões mantinham todas as portas fechadas a chave o tempo todo por medo que as meninas pudessem roubar alguma coisa. Algumas meninas estavam gritando, outras esmurrando a porta com os punhos. (Depoimento de Rosey Safran apud GONZÁLEZ, 2010)

Os três pisos da Triangle Shirtwaist Company eram ocupados por 260 trabalhadores e 240 máquinas de costura amontoadas. As máquinas ordenadas em 16 fileiras, muito próximas, bloquearam os caminhos em direção às portas de emergência. A fábrica não respeitava princípios básicos de segurança e havia sido notificada diversas vezes pelo Departamento de Construção sobre as perigosas condições do prédio.

O Asch Building terminou de ser construído em 1901, tinha 41 metros de altura e a sua estrutura, o assoalho, a moldura das janelas e portas eram de madeira. [….] Dadas as suas dimensões, o imóvel deveria ter sido equipado com três escadas de acesso, mas tinha apenas duas […] que foram construídas tortuosas e estreitas. […] O artigo 80 da Legislação Trabalhista Estadual (State Labor Law) estabelecia que as portas das fábricas deveriam abrir para fora […] e que não podiam estar fechadas com chaves durante as horas de trabalho.  No Asch Building, todas as portas abriam para dentro, devido à estreiteza dos corredores e escadas. […] O Departamento de Construção enviou uma carta aos proprietários da fábrica […] na qual denunciava as perigosas condições em que trabalhavam os operários, de quem nunca recebeu resposta. (GONZÁLEZ, 2010, p. 33-35)

No incêndio, morreram 146 trabalhadores, dos quais 17 eram homens e 129 eram mulheres e meninas – 90 delas se jogaram pelas janelas do prédio. A maioria das jovens era imigrante, tinha entre 16 a 24 anos e trabalhava em condições desumanas. Seus salários equivaliam a um terço do recebido pelos homens, enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes e não tinham condições mínimas de segurança.

Isaac Harris e Max Blanck, proprietários da empresa e conhecidos por tratar trabalhadores como “dentes de uma engrenagem”, foram acusados de homicídio culposo. O júri composto unicamente por homens – na época mulheres não podiam ser juradas em Nova York – os inocentou de todas as acusações: “a defesa argumentou que não se poderia provar que eles tivessem mandados fechar as portas” (GONZÁLEZ, 2010). A palavra das sobreviventes, que afirmaram que os patrões trancavam as portas, de nada valeu.

Do lado de fora do tribunal, familiares, trabalhadores e ativistas gritavam: – assassinos! O som se espalhou pelas esquinas de Nova York e 300 mil pessoas foram às ruas debaixo de chuva para um funeral simbólico. A pergunta era: de quem é a responsabilidade? Dos inspetores de construção que permitiram escadas de incêndio inadequadas? Dos políticos que não exigiram normas de segurança? Ou dos proprietários que ignoraram as recomendações da fiscalização em nome do lucro? Ou de todos eles que tratavam operárias, sobretudo as imigrantes, como cidadãs de terceira classe?

A relação entre a Greve Geral e o incêndio

A história do incêndio foi contada e recontada várias vezes e ao longo do tempo alguns fatos acabaram se embaralhando: na versão comumente repetida, as trabalhadoras estariam ocupando a Triangle Shirtwaist Company durante uma greve e os patrões teriam trancado as saídas e ateado fogo na fábrica. No entanto, os relatos das sobreviventes dão conta de que não havia greve naquele momento. Uma das maiores greves da indústria têxtil de Nova York aconteceu de setembro de 1909 até fevereiro de 1910 – cerca de um ano antes do incêndio. As trabalhadoras da Triangle foram as primeiras a parar, produzindo um efeito dominó até a deflagração da greve geral, conhecida como “o levante das 30 mil”. Foi a primeira grande greve de mulheres no país, numa época em que nem mesmo o direito ao voto havia sido conquistado.

No documentário Triangle – Remembering The Fire, Katharine Weber conta que sua avó, Pauline Gottesfeld Kaufman, trabalhadora da Triangle, foi brutalmente atacada pela polícia e por pessoas pagas para ‘desfazer’ a greve: “minha avó me falou de um guarda que tentou prendê-la ou agarrá-la. Ela se envolveu numa luta corporal com ele e conseguiu fugir. Quando parou e olhou para a própria mão, viu que arrancou um tufo de cabelo dele e ainda o segurava. Muitas mulheres foram presas acusadas de perturbar a ordem pública”.

Em novembro de 1909, na assembleia do sindicato das empresas Cooper, Clara Lemlich, trabalhadora presa pela polícia sete vezes por agitação, fez um discurso que marcou a história do movimento sindical nova-iorquino: “sou operária, uma dessas que estão em greve contra condições intoleráveis de trabalho. Estou cansada de ouvir oradores. […] Estamos aqui é para decidir se entraremos ou não em greve. Apresento uma resolução a favor da greve geral já”.

No setor têxtil, as mulheres constituíam a maior parte da mão de obra. As condições em que trabalhavam eram deploráveis. […] A paralisação começou no dia 27 de setembro de 1909, precisamente na Triangle Shirtwaist Company. […] Os trabalhadores demandavam salários mais altos, melhorias nas condições de trabalho, abolição do sistema de subcontratação, jornada de trabalho de 52 horas semanais e, sobretudo, o reconhecimento de seus direitos sindicais. (GONZÁLEZ, 2010, p. 33-45)

As jovens da Triangle eram consideradas um problema pelos poderosos empresários do Lower East Side. Portanto, não é possível afirmar que não existam conexões entre o incêndio e a greve, ainda que a versão oficial diga que o fogo foi provocado por um trabalhador que teria jogado um cigarro aceso próximo de rolos de tecido que se acumulavam no oitavo andar do prédio. Fica evidente que o aparato jurídico, cujas leis beneficiavam os empresários, responsabilizaram os próprios operários por sua morte.

Quando a greve foi encerrada, mais de trezentos patrões tinham feito acordo com os trabalhadores – no entanto, treze empresas, incluindo a Triangle, não chegaram a nenhum acordo: “se tivessem aceitado as reivindicações dos grevistas, o incêndio que ocorreu no ano seguinte provavelmente não teria acontecido” (GONZÁLEZ, 2010).

Em consequência do incêndio, foi criada a Comissão de Investigação das Fábricas, que passou a avaliar o risco em inúmeros estabelecimentos. Frances Perkins, que se tornaria a primeira Secretária do Trabalho, fez parte da comissão – ela estava na Washigton Square no dia do incêndio e viu as jovens pulando das janelas do prédio de mãos dadas e abraçadas. Os dados apurados pela Comissão levaram à promulgação de leis em Nova York que regulavam normas de segurança, salário mínimo, assistência aos operários desempregados e assistência aos velhos demais para trabalhar.

Dia Internacional das Mulheres: mito fundador e sequestro de significado

O incêndio da Triangle Shirtwaist Company marcou de forma indelével o mês de março como um momento de se interrogar o passado para retomar o presente de forma crítica. Interrogar não apenas a história das mulheres operárias do início do século XX, mas de todas as mulheres que vieram antes de nós. A história do Dia internacional das Mulheres atravessa o movimento das mulheres operárias norte-americanas, que comemoravam em diversos Estados o Woman’s Day, desde 1908, pelo esforço do movimento de mulheres socialistas para internacionalizar a data, em 1910, e por diversos acontecimentos que marcaram a história da luta das mulheres em diferentes partes do mundo. Nenhuma dessas histórias pode ser apagada.

Quando Clara Zetkin propôs, na Segunda Conferência Internacional da Mulher Socialista, realizada em 1910, um dia internacional dedicado à reivindicação dos direitos das mulheres, ainda não havia uma dia definido, mas a intenção de unificar uma data para celebrar a solidariedade internacional na luta pelos objetivos comuns.

As mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão em seus respectivos países um dia especial das mulheres […]. Será necessário debater essa proposição com relação à questão da mulher a partir da perspectiva socialista (ZETKIN apud GONZÁLEZ, 2010, p. 115)

Entre 1911 e 1914, o Dia Internacional das Mulheres foi comemorado em datas diferentes do mês março. Apenas em 8 de março de 1917, com a deflagração da greve das tecelãs de São Petersburgo que impulsionou a Revolução Russa, esta data foi consagrada como o Dia Internacional das Mulheres. No entanto, organizações internacionais – como a ONU e a UNESCO – demoraram mais de 50 anos para reconhecer a data, e só o fizeram por pressão e insistência dos movimentos feministas.

Relembrar os caminhos que levaram a instituição dessa data é um modo resistir. Hoje, é importante impedir que o conteúdo emancipatório desta data seja substituído por um significado edulcorante e conveniente ao sistema capitalista. O capitalismo não age sobre os movimentos emancipatórios unicamente com a intenção de eliminá-los: pretende sempre incorporá-los, esvaziá-los de significado e potência revolucionária para transformá-los em produto.

De uma perspectiva histórica, fica evidente o sequestro de significado e o apagamento ostensivo da história do Dia Internacional das Mulheres. Um dia que, nas palavras de Alexandra Kollontai, deveria ser de “consciência política e de solidariedade internacional” (KOLLONTAI, 1982) vem se tornando uma data comercial em que o mercado ‘celebra’ estereótipos de gênero que determinaram e limitaram a vida das mulheres.

É preciso escavar os escombros que parecem se fechar sobre a história das mulheres que lutaram pelo dia 8 de março, impedir tentativas de apagamento de seus rastros e de seus nomes. Retomar o significado político da história do Dia Internacional das Mulheres é uma importante ferramenta contra as fogueiras materiais e simbólicas que continuam acesas.

Este artigo foi anteriormente postado no Blog da Boitempo em 7 de março de 2016 com o título Às que vieram antes de nós: histórias do Dia Internacional das Mulheres.

Referências bibliográficas
GIANOTTI, Vito. A origem socialista do dia da mulher. Rio de Janeiro: Núcleo Piratininga de Comunicação, 2016.
GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
KOLLONTAI, Alexandra. International Women’s Day. Cleveland, Ohio: Hera Press, 1982.
KOLLONTAI, Alexandra .Women Workers Struggle For Their Rights. Bristol: Falling WAll Press in association with Women’s Liberation Movement, 1973.
TROTSKI, Leon. História da revolução russa. São Paulo: Sundermann, 2007.

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Para saber mais sobre o tema, confira aqui no Blog da Boitempo:
O dia da mulher, por Aleksandra Kollontai
Às que vieram antes de nós: histórias do Dia Internacional das Mulheres, por Daniela Lima
As mulheres de 1917, por Megan Trudell
A Revolução também foi feminista, por Flávia Biroli
A revolução das mulheres: uma antologia necessária, por Daniela Lima


A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas panfletos, ensaios, organização de Graziela Schneider Urso

Coletânea de artigos de Nadiéjda Krúpskaia, Anna Kalmánovitch, Olga Chapír, Maria Pokróvskaia, Liubov Guriévitch, Ekaterina Kuskova, Ariadna Tirkóva‑Williams, Aleksandra Kollontai, Inessa Armand, Elena Kuvchínskaia e Konkórdia Samóilova. Nos textos de intervenção e reflexão sobre a condição e a emancipação da mulher, destaca-se sobretudo a importância da igualdade entre os gêneros na defesa da classe trabalhadora: a separação entre mulheres e homens interessava apenas ao capital, para a Revolução Russa a luta deveria ser conjunta. A leitura, que percorre temas como feminismo, emancipação, trabalho, luta de classes, família, leis e religião, permite distinguir que houve, de fato, a conquista de direitos desde então, mas também demonstra que diversos critérios desiguais continuam em vigor, o que torna os textos, apesar de clássicos, mais atuais do que nunca. 

Mulher, Estado e revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936, de Wendy Goldman

Uma premiada análise de estrutura familiar, sexualidade, casamento e divórcio na União Soviética, que explora como as mulheres responderam às tentativas bolcheviques de refazer a família e como as suas opiniões e experiências, por sua vez, foram utilizadas pelo Estado para atender às suas próprias necessidades

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As origens comunistas do 8 de março, com Maria Lygia Quartim de Moraes


A revolução das mulheres: antologia de feministas soviéticas, com Maria Lygia Quartim de Moraes


A invisibilização da mulher na história, com Maria Lygia Quartim de Moraes


As mulheres e a Revolução, com Wendy Goldman


A revolução das mulheres, com Wendy Goldman e Maria Lygia Quartim de Moraes


O que as feministas soviéticas podem ensinar sobre família e Estados na pandemia?, com Wendy Goldman e Flávia Biroli


Da reivindicação dos direitos da mulher ao feminismo marxista, confira a programação do #8M da Boitempo:

Da reivindicação dos direitos da mulher há 230 anos aos desafios do marxismo feminista com a ascensão do fascismo no Brasil e no mundo. O já tradicional #8M da Boitempo buscará apresentar o documento fundacional do feminismo, sua atualidade e seus limites, passando pelas origens do 8 de março na Rússia, pelos conceitos de patriarcado e reprodução social, pelas contribuições do feminismo negro às questões de gênero, raça e classe, com destaque para a interseccionalidade, até chegarmos às lutas feministas no Brasil contemporâneo e aos desafios do marxismo feminista. Ao longo de seis debates na TV Boitempo entre os dias 7 e 14 de março, apresentaremos as obras de Mary Wollstonecraft, Aleksandra Kollontai, Silvia Federici, Angela Davis, Patricia Hill Collins, Nancy Fraser Flávia Biroli.

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Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda, Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014). 

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