Vladimir Putin e a paródia do Ocidente

Ao testar os limites das instituições ocidentais, o presidente russo expõe as contradições da ordem global liberal-democrática.

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Por Rafael Burgos e Timothy Bryar

“Quando as tropas de um país entram no território de outro país sem o seu consentimento, não podemos falar em uma missão de paz imparcial”. Ao se deparar com tal declaração, alguém pode, de início, imaginar que ela teria sido proferida, anos atrás, por parte de uma autoridade dos muitos países invadidos por forças ocidentais nas últimas décadas. Mas acontece que ela é de autoria do secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, dias antes de Vladimir Putin iniciar a sua operação na Ucrânia.

Eis um exemplo cristalino dos resultados obtidos pela estratégia provocadora de Putin perante o Ocidente. Enquanto, em seus comentários, Guterres defendia uma interpretação das missões de paz conforme determinadas pela ONU, deve-se considerar a ação de Putin no contexto da OTAN, que ele vê como uma ameaça militar à Rússia. A OTAN não apenas se considera uma força de paz, mas possui uma missão de paz ativa no Kosovo, por exemplo.

Não se deve esquecer que o que iniciou esta missão de paz de duas décadas foi uma série de bombardeios de 78 dias contra a Iugoslávia orquestrada pela OTAN em 1999. Os atentados ilegais ocorreram sob o pretexto de intervenção humanitária para impedir a limpeza étnica dos albaneses kosovares. Um resultado-chave dos bombardeios foi a declaração unilateral de independência do Kosovo em 17 de fevereiro de 2008, um movimento rapidamente reconhecido pelos Estados Unidos e seus aliados europeus.

É nesse contexto que se deve compreender o movimento de Putin de reconhecer duas repúblicas independentes na região de Donbas, no leste da Ucrânia, e o envio de tropas russas para lá como uma paródia da ordem global liberal-democrática. Ao defender um paradigma tipicamente ocidental para justificar suas ações na Ucrânia, Putin produz uma cena cômica em que a ONU e a OTAN se veem em uma armadilha: antagonizar Putin, neste episódio, significa condenar a aplicação literal de seus próprios procedimentos. Ao fim e ao cabo, assistimos a uma espécie de cena kitsch na qual António Guterres, ao mesmo tempo que condena a hipocrisia por trás das “forças de paz” russas, ecoa as sombras do passado ocidental.

Tal estratégia, ou o que o cientista político Ivan Krastev chama de “paródia violenta da política externa ocidental”, está no centro da abordagem de Putin à Europa, que pode ser descrita como desidratar o Ocidente em nome dos próprios valores ocidentais. Em vez de propriamente incorporar uma alternativa política à ordem global liberal-democrática, Putin age de forma a parecer mais ocidental do que o próprio Ocidente, trazendo à tona o fantasma por trás do arcabouço europeu, a fim de ridicularizá-lo. Como diz Krastev, o horizonte retórico da política externa de Vladimir Putin é agir como um “espelho no qual o inimigo pode observar a imoralidade e a hipocrisia de seu próprio comportamento”.

Embora Putin apareça como o principal expoente desse artifício político, ele não é o único a segui-lo atualmente. Na verdade, essa estratégia vem sendo adotada por políticos e ideólogos de extrema direita em todo o mundo, incluindo figuras como Steve Bannon, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro. Nesse sentido, o que une Orbán, em seu experimento da “democracia iliberal” e Bolsonaro, em sua cruzada suicida contra a Nova República, é, precisamente, a vontade de testar os limites da democracia liberal, dando significado pervertido a seus valores centrais. Ao pretender “salvar a Europa de si mesma” com o seu embrião de teocracia cristã, no caso de Orbán, e, ao levar adiante um morticínio em nome da “liberdade”, no caso de Bolsonaro, ambos encenam uma espécie de “espelho reverso” no qual seus oponentes podem vislumbrar a realidade “cruel” de suas próprias crenças.

Basicamente, o que esses líderes estão sugerindo é que, para drenar as instituições liberais, é preciso combatê-las por dentro. Assim, em vez de abraçarem um projeto de poder claramente alternativo, a extrema direita prefere encarnar o superego obsceno da democracia liberal. Trata-se, em última instância, de seguir à risca os mandamentos ocidentais, e de modo mais literal do que o próprio Ocidente, para então provar que este seria, inevitavelmente, um projeto fracassado.

A ironia de tal empreitada reside no fato de que tática semelhante foi inicialmente empregada, entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, por ativistas democráticos radicais na Iugoslávia contra o regime autoritário local e, desde então, têm sido defendidas por pensadores da esquerda (mais notavelmente, Slavoj Žižek a desenvolveu como uma política de superidentificação). Enquanto a esquerda liberal de hoje, presa a uma agenda comportamental fetichizada, permanece necessariamente cega ao potencial dessa política, a extrema direita parece ter se apropriado dela com algum sucesso.

Desse modo, o ressentimento por trás da estratégia russa para o Ocidente significa, até certo ponto, renunciar à defesa de uma nova ordem mundial em nome de uma política puramente regressiva. Afinal, com seus movimentos na Ucrânia, Vladimir Putin provoca certo espanto em seus adversários. Não exatamente por antagonizar as instituições europeias, mas, precisamente, por aparecer como seu improvável apologista.

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Rafael Burgos é jornalista, editor da coluna Entendendo Bolsonaro (UOL). É mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, onde pesquisa o bolsonarismo.

Timothy Bryar é um pesquisador independente, escritor e especialista em geopolítica global e conflito.

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