Centenário do PCB: Luiz Carlos Prestes, Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui – a construção do partido comunista
Ao apreciar as ideias desenvolvidas por três lideranças revolucionárias, Luiz Carlos Prestes, Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui, que viveram e atuaram no século XX empenhadas na criação de um partido revolucionário destinado a dirigir a luta dos trabalhadores pelo socialismo e o comunismo, podemos observar significativas coincidências. Trata-se de ideias que talvez valha a pena levar em consideração por quem busca hoje novos caminhos para a revolução socialista em nosso país.
Por Anita Leocadia Prestes
Como procurei mostrar em vários trabalhos anteriores, dadas as condições adversas em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi fundado, de grande atraso cultural do país e de inexistência de um movimento operário com tradições marxistas, a repercussão da Revolução Russa de outubro de 1917 revelou-se decisiva para que um pequeno grupo de lideranças anarcossindicalistas, tendo à frente Astrojildo Pereira, tomasse a iniciativa de criar um partido comunista no Brasil. Mas a débil presença do marxismo junto à intelectualidade brasileira, aliada à grande influência do pensamento liberal e nacionalista, contribuiu decisivamente para que o PCB se transformasse num partido nacional-libertador1
“Se as teses defendidas pelos comunistas encontraram repercussão junto a diversos setores da sociedade brasileira, isso se deveu em grande parte, à circunstância de tais posições tenderem a convergir com os sentimentos nacionalistas amplamente difundidos na sociedade civil do país”, assim como os ideais liberais, “dentre os quais se destacava a preocupação com a garantia da soberania nacional” (PRESTES, A. L., 2017, p. 149) A política do PCB não consistiu, portanto, num mero reflexo de supostas imposições da Internacional Comunista (IC) ou do movimento comunista internacional, como frequentemente se afirma.
As consequências para o PCB de tal situação foram corretamente advertidas por Eric Hobsbawm, quando escreveu: “O perigo real para os marxistas é o de aceitar o nacionalismo como ideologia e programa, ao invés de encará-lo realisticamente como um fato, uma condição de sua luta como socialista” (HOBSBAWM, 1980, p. 310).
Em 1943, na Conferência da Mantiqueira, o PCB foi reorganizado, pois fora praticamente desarticulado pela repressão nos anos que se seguiram à derrota dos levantes antifascistas de novembro de 1935. Nesse processo a militância partidária formou-se sob a influência da estratégia nacional-libertadora que vigorou durante décadas em sua trajetória política. Como ficaria evidente, tal orientação não poderia condicionar a formação de um partido e de uma militância voltados para os objetivos da revolução socialista. Na prática essa militância foi preparada para a realização dos objetivos nacionais-libertadores definidos no programa do PCB, embora os comunistas brasileiros tenham estado sempre à frente de todas as causas justas que mobilizaram os setores populares no país. Mas um partido nacional-libertador não poderia conduzir os trabalhadores e as massas populares rumo à revolução socialista, ficaria limitado à luta pela emancipação nacional. Como escreveu Luiz Carlos Prestes, “[…] é impossível construir um partido efetivamente revolucionário, capaz de enraizar-se na classe operária, se se baseia numa falsa concepção da revolução”.2
Embora a estratégia nacional-libertadora do PCB fosse aceita amplamente durante décadas pelos seus dirigentes e militantes, a partir dos anos 1960 ela passaria a ser questionada por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do partido. Durante a preparação e a realização do VI Congresso do PCB, em 1967, as divergências de Prestes com a direção do partido tenderiam a agravar-se, conflito esse que se tornaria explicito no exílio europeu dessa direção, levando à ruptura do secretário-geral com o Comitê Central do PCB em 1980 com a divulgação de sua “Carta aos comunistas” (PRESTES, L.C, 1980).
Para que Prestes chegasse a uma revisão radical da estratégia da revolução nacional e democrática consagrada repetidas vezes na história do PCB e em particular no VI Congresso, com o conhecido corolário da tese da conquista de um capitalismo autônomo no Brasil, contribuíram os debates que tiveram lugar no exílio com alguns comunistas brasileiros que estudavam em Moscou. Prestes acompanhou de perto os estudos em curso e participou desses debates, a partir dos quais constatou a existência na economia brasileira de um tripé constituído pelo Estado, pelos monopólios nacionais e estrangeiros e pelo latifúndio. O entrelaçamento desses três elementos era de tal ordem que poder-se-ia postular a presença no Brasil de um capitalismo monopolista de Estado (CME) dependente, uma vez que o capital estrangeiro era o dominante no tripé. Era, portanto, inegável o nível relativamente alto de desenvolvimento capitalista atingido no Brasil, fato que invalidava a estratégia da etapa nacional e democrática da revolução brasileira. Na verdade, conforme trabalhos de pesquisa realizados no Brasil e no exterior revelaram, a dominação imperialista e o latifúndio não constituíram empecilho ao desenvolvimento capitalista do país, marcado, contudo, pela dependência do imperialismo e pela ausência de uma reforma agrária de caráter burguês.3
Com a anistia aos presos e perseguidos políticos no Brasil, decretada em agosto de 1979, e o regresso dos exilados, Prestes pôde voltar ao país e entrar em contato com a militância partidária, lançando em março de 1980 a “Carta aos comunistas”, em que apelava aos militantes para que no VII Congresso do PCB, que já estava convocado, “tomassem os destinos do partido em suas mãos” (PRESTES, L.C., 1980). Prestes ainda pensava na possibilidade da realização de um congresso democrático em que as diferentes posições políticas pudessem ser discutidas e apreciadas livremente pelos delegados.
Durante aproximadamente um ano houve um número expressivo de organizações do PCB que, atendendo ao apelo da “Carta aos comunistas”, romperam com o Comitê Central (CC) do partido, solidarizando-se com as posições de Prestes. Com esse objetivo foram criadas numerosas comissões de reorganização partidária em vários níveis. A formação de uma Comissão Nacional Provisória para assegurar a realização democrática do VII Congresso do PCB foi a principal reivindicação desse conjunto de organizações alinhadas com as posições defendidas por Prestes (PRESTES, A.L., 2015, p.491-94).
Em março de 1981, em artigo publicado por ocasião do 59° aniversário do PCB, Prestes revelava que deixara de crer na realização de um VII Congresso do partido efetivamente democrático. O desenrolar dos acontecimentos durante aquele ano após o lançamento de sua “Carta” havia demonstrado que o “pântano”4 tinha o controle da máquina partidária e iria promover um congresso sob seu estrito domínio, de forma a garantir a manutenção do status quo, assim como a aprovação das teses oportunistas de direita, criticadas por Prestes. Acrescentava que, para elaborar uma estratégia “efetivamente revolucionária”, era necessário “construir um novo partido, efetivamente revolucionário, o que só alcançaremos através do trabalho de massas e aplicando uma política correta de alianças”.5
Voz Operária, o jornal dos comunistas então alinhados com as posições de Prestes, alertava que “seria uma ilusão pensar que as profundas deformações criadas na vida orgânica do PCB no decorrer de decênios de uma política errada poderiam ser rápida e facilmente superadas”. Na prática, os mesmos erros se repetiam, e havia uma carência enorme de quadros partidários preparados para assumir as tarefas de direção com eficácia e competência, deixando aberto “um espaço propício à proliferação dos aventureiros e carreiristas”. Diante de tal situação, a orientação do Voz Operária foi a de desenvolver esforços em três direções principais:
- o da elaboração de uma política correta, tanto em suas linhas gerais quanto em seus aspectos concretos para cada setor do movimento de massas;
- o da aplicação dessa política no movimento operário, camponês, estudantil etc.;
- o da construção de núcleos de comunistas (desde bases até organizações de diversos níveis) estreitamente ligados a esses diferentes setores do movimento de massas.6
Ainda segundo Voz Operária, o papel do jornal consistiria em ser “o organizador coletivo (na expressão de Lênin) desses núcleos de comunistas”. A perspectiva que naquele momento revelava-se a mais correta era a de os comunistas que estivessem de acordo com a orientação política de Prestes se organizarem em núcleos (bases e coordenações eleitas para coordenar o trabalho das bases em nível estadual), tendo em vista atingir algumas metas pretraçadas. Tratava-se de uma perspectiva de trabalho a longo prazo, uma vez que a própria experiência vinha revelando que ainda não se haviam formado “as condições para a criação de uma comissão nacional que unificasse o trabalho dos diferentes núcleos existentes no país”. A matéria de Voz Operária assinalou que o camarada Prestes deixara claro que não participaria de uma iniciativa desse tipo enquanto não surgissem as condições mínimas para real funcionamento de semelhante coordenação. Ao explicar as razões alegadas por ele, o jornal destacou:
Em primeiro lugar, as condições materiais e de segurança hoje existentes levariam a que a criação no momento atual de uma comissão nacional constituísse na realidade numa repetição dos métodos do CC atual, que passou a atuar legalmente desconsiderando que o regime ditatorial perdura e expondo inteiramente a organização partidária aos intentos da repressão. Em segundo lugar, ainda não surgiram os quadros realmente representativos, provados e capacitados para integrarem o núcleo dirigente do novo Partido que se pretende formar. Certamente esses quadros, assim como as condições materiais e de segurança, poderão se formar num processo, mais ou menos longo, que a experiência parece indicar que poderá ocorrer através do desenvolvimento dos núcleos de comunistas propostos pela Voz Operária.7
A “Carta aos comunistas” teve grande repercussão e levou numerosos militantes a tentar “salvar” o PCB, reorganizá-lo ou estruturar novas organizações em bases verdadeiramente revolucionárias8 – intentos fracassados e reveladores da inexistência das condições necessárias para a organização imediata de um partido revolucionário, fato que foi rapidamente compreendido por Prestes, levando-o, nos últimos anos de sua vida, a desaconselhar novas tentativas nesse sentido. Durante o Encontro Estadual dos comunistas gaúchos que se orientavam pela “Carta aos comunistas”, em janeiro de 1984,9 Prestes explicou sua posição, afirmando que “um partido revolucionário só pode surgir de cima para baixo, por intermédio de um grupo ideológico firme, porque é a ideologia que une os comunistas e os distingue de outras forças”.10
Prestes entendia que, a partir do trabalho de organização, mobilização e formação política nos diferentes setores populares, viriam a surgir e a se destacar lideranças revolucionárias – formadoras dos núcleos comunistas por ele propostos –, a partir da articulação dos quais seria possível chegar a “um grupo ideológico firme” e elaborar um programa de transformação revolucionária do país, baseado na teoria marxista e na prática das lutas populares das quais teriam surgido essas lideranças, assim como garantir a criação de um “novo partido revolucionário”. Entretanto, a vida revelou que não existiam à época militantes em condições de enfrentar tal desafio.
Em 1987, Prestes recebeu o “Apelo” a ele dirigido por um grupo de companheiros para que tomasse a iniciativa de reunir “em âmbito nacional delegados de nossos camaradas em cada um dos estados em que alguns deles residam, com o objetivo de chegarmos à formulação da teoria científica da revolução em nosso país na época atual”. Prestes recusou-se a tomar tal iniciativa, argumentando ser a teoria inseparável da prática e recomendando à militância fazer esforços para penetrar nas fábricas, nas fazendas, nas concentrações operárias e camponesas, como também nas escolas e universidades, nas repartições públicas e estatais, para estabelecer contato com os trabalhadores, contato direto e pessoal – com homens, mulheres e jovens, tanto analfabetos quanto intelectuais – a levá-los a que se organizem em sindicatos ou noutras formas possíveis.11
Prestes considerava que, com o êxito de tal trabalho prático, junto com o estudo do marxismo-leninismo,
a reunião nacional por Vocês proposta poderá, um dia, alcançar algum êxito, deixará de ser uma mera troca de palavras e de opiniões contraditórias, terá por base a teoria da Revolução do proletariado – o marxismo-leninismo – e sua acertada aplicação nas condições concretas de nosso país e poderá, por isso, produzir frutos úteis capazes de estimular a luta pela conquista de um novo regime social que abra caminho para a sociedade livre da exploração do homem, para a construção do socialismo no Brasil.12
Ao procurar fundamentar sua argumentação frente aos autores do “Apelo”, Prestes recorreu mais uma vez a Lênin. Após a derrota da Revolução de 1905, respondendo à ideia dos mencheviques de convocar o congresso, considerando que isso traria “um princípio de coesão à construção organizativa das massas operárias” e faria que se ressaltasse ante elas “os interesses comuns da classe operária e seus objetivos”, Lênin propunha:
Primeiro, construção organizativa e, depois, os objetivos [grifado por Lênin]; quer dizer, o programa e a tática! Não deveríamos raciocinar ao inverso, camaradas “literatos e práticos”? Refleti: é possível unificar a construção organizativa se não se unificou a interpretação dos interesses e os objetivos de classe? Refleti e vereis que não é possível.13
No esforço voltado a explicar o fracasso das diversas tentativas de fundar um partido efetivamente revolucionário no Brasil, empreendidas por numerosos comunistas durante a década de 1980, os escritos de Antonio Gramsci, baseados em grande medida em sua experiência como fundador do Partido Comunista Italiano, têm inegável relevância e atualidade. O teórico e dirigente comunista italiano considerava que “para que um partido exista, é necessária a confluência de três elementos fundamentais (isto é, três grupos de elementos)”:
1) Um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criativo e altamente organizativo. […] Eles constituem uma força na medida em que existe quem os centraliza, organiza e disciplina; mas, na ausência dessa força de coesão, eles se dispersariam e se anulariam numa poeira impotente. […]
2) O elemento de coesão principal, que centraliza no campo nacional, que torna eficiente e poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, representariam zero ou pouco mais; esse elemento é dotado de força altamente coesiva, centralizadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isso mesmo) inventiva, se se entende inventiva numa certa direção, segundo certas linhas de força, certas perspectivas, certas premissas. [Por] si só, esse elemento não formaria o partido, mas poderia servir para formá-lo mais do que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, mas na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. […]
3) Um elemento médio, que articule o primeiro e o segundo elemento, que os ponha em contato não só “físico”, mas moral e intelectual. […]
Gramsci frisava a importância do segundo elemento por ele referido, “cujo nascimento está ligado à existência das condições materiais objetivas (e, se esse segundo elemento não existe, qualquer raciocínio é vazio)”, acrescentando que, para formar esse segundo elemento, “é preciso que se tenha criado a convicção férrea de que uma determinada solução dos problemas vitais seja necessária”.14
Partindo dessas indicações do revolucionário comunista italiano, verificamos que no Brasil dos anos 1980 inexistiam as condições materiais objetivas para a formação do segundo elemento por ele apresentado, ou seja, inexistiam as condições para o surgimento dos “capitães” dotados “de força altamente coesiva, centralizadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isso mesmo) inventiva”. Sem esse elemento, os outros dois se dispersariam e anulariam. Esse foi justamente o resultado do movimento provocado pelos comunistas alinhados com as posições de Prestes, que pretenderam a reorganização do PCB ou a criação de um partido efetivamente revolucionário no Brasil.
Prestes compreendeu inexistirem então os “capitães” dotados da capacidade para “tomar os destinos do partido em suas mãos” e que, para formá-los, seria necessário um longo processo de preparação das condições materiais objetivas. Com a “Carta aos comunistas”, Prestes procurou iniciar esse longo processo, antecipando questões que viriam a se colocar, com grande intensidade, para os comunistas do mundo inteiro uma década mais tarde. Muitas dessas questões mantêm a atualidade.
O peruano José Carlos Mariátegui constitui um exemplo de revolucionário latino-americano que ainda nos anos 1920, sob o regime ditatorial de Augusto Leguía, conhecido como “el oncenio” (1919-1930), percebeu que no Peru estava havendo um significativo desenvolvimento capitalista e, portanto, não seria mais possível, a partir de uma posição revolucionária, defender o desenvolvimento do capitalismo, pois esse era um projeto assumido pelo próprio governo de Leguía.
Dada essa compreensão da situação existente no Peru, Mariátegui entendeu que não havia condições para desencadear uma oposição aberta imediata. Tendo verificado a debilidade do nascente socialismo peruano, percebeu a necessidade de “persistir e durar – a única maneira de garantir uma obra coletiva de grande alento: a ansiada construção do partido e do projeto socialista. Por isso, Mariátegui evitou dirigir ataques frontais a Leguía” (GALINDO, 1980, p.19).15
A presença de Mariátegui, em 1921, no Congresso de Livorno, por ocasião da fundação do Partido Comunista Italiano, contando com a liderança da Antonio Gramsci, certamente teve influência na formação das concepções do jovem Mariátegui a respeito do lugar e do papel do partido revolucionário.
Em outubro de 1928 era fundado, por iniciativa de Mariátegui e um pequeno grupo de correligionários, o Partido Socialista, que até então inexistira no Peru. Em junho de 1929, esse partido seria convidado a participar da Primeira Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, realizada em Buenos Aires. Nesse conclave, ao qual por motivos de saúde Mariátegui não pôde comparecer, a delegação peruana, que apresentara teses elaboradas com a sua participação, é duramente criticada, em particular pelo dirigente comunista argentino Vittorio Codovilla. Segundo José Aricó, a questão do partido foi o centro dos debates entre os socialistas peruanos e a Internacional Comunista (IC) em Buenos Aires (ibidem, p. 73).
Como é sabido, os partidos filiados à Internacional Comunista, fundada por Lênin em 1919, deviam adotar o nome de partidos comunistas, pois historicamente eles representavam no contexto europeu e de alguns países latino-americanos a ruptura com o reformismo dos tradicionais partidos socialistas. Não era, contudo, esse o caso do Partido Socialista no Peru. Os delegados peruanos nessa Conferência defenderam a denominação de Partido Socialista, pois consideravam que a ação política deveria estar subordinada à correlação de forças entre as classes sociais do país, sem desprezar as condições objetivas e a consciência social existente, e a partir disso era impossível elaborar uma tática alheia a essas considerações (ibidem, p. 26).
Mariátegui e seus companheiros levavam em conta que a classe operária peruana era jovem e numericamente reduzida (ibidem, p. 30) e, para eles,
uma vez que o partido era resultado do movimento social, era impossível propor desde o início um modelo destinado a ser cumprido e aplicado. O partido ia sendo construído pacientemente, na teoria e na prática, mas sempre no âmbito do movimento de massas (Ibidem, p. 33).
Frente à necessidade de construir uma ponte com a Internacional Comunista, pois Mariátegui entendia que o movimento revolucionário adquirira caráter internacional, surgiu a tese de “um núcleo comunista no interior do partido socialista, ou seja, uma perspectiva comunista a longo prazo, dadas as condições da sociedade peruana, a possível repressão e a escassa maturidade do proletariado, mas de imediato um agrupamento socialista” (idem). Era rejeitada a adesão a um modelo pronto, conforme as posições então predominantes na IC, das quais V. Codovilla seria um legítimo representante.
Alberto Flores Galindo, historiador peruano e pesquisador da obra de J.C. Mariátegui, escreve que, após sua estada na Europa, para o jovem revolucionário, “o partido era necessário e imprescindível para introduzir no Peru essa espécie de planta europeia que era o socialismo, mas o partido não era exatamente o início dessa tarefa, mas quase seu ponto final”. E, a seguir, destaca:
A ideia intuída no Peru, amadurecida na Europa, devia ser discutida e preparada na volta. É nesse sentido que se inscreve o projeto de Amauta16 e toda a atividade publicista desenvolvida por Mariátegui. Também suas conferências na Universidades Populares Gonzalez Prada e suas palestras com os jovens dirigentes operários […] O partido exigia o desenvolvimento da “consciência de classe”. A consciência operária se formava […] na fábrica. Mas não só na fábrica: também na vida cotidiana dos trabalhadores. […] (ibidem, p. 75-76).
Nesse sentido Galindo relata a importância de uma festa popular em Lima, que durava o dia inteiro, quando havia a oportunidade não só de promover os festejos tradicionais, mas também de realizar trabalho político com os operários, artesãos e estudantes presentes. Mariátegui comparecia com a família, como qualquer outra família, e dialogava com os presentes. Assim, “silenciosamente, ia se formando a consciência classe”, pois era uma ocasião em que os trabalhadores trocavam experiências de luta entre si, se encontravam com os dirigentes sindicais e eram gestados projetos comuns, num período em que ainda não existia uma central operária. O partido não era pensado fora nem acima da classe, mas deveria formar-se no interior do movimento de massas (idem). Deveria gestar-se no interior da luta de classes entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção.
Segundo Mariátegui, no processo de formação do partido, as reivindicações deveriam ser descobertas em cada lugar. Era uma tarefa a longo prazo, que naquele momento não se destinava a derrubar a ditadura de Leguía. Tratava-se de acumular forças. Não se pretendia impor uma organização a partir de fora do movimento de massas. O Partido Socialista seria uma organização de maiorias desenvolvida no interior do movimento popular. O aspecto organizativo do partido deveria ser resolvido no interior do movimento de massas, onde também iria sendo elaborado o programa, cujo esboço preliminar fora apresentado pela delegação peruana na Conferência dos PPCC em Buenos Aires (ibidem, p. 78, 85, 86).
Muito doente, Mariátegui faleceu em abril de 1930 e, logo depois, por imposição da IC, o Partido Socialista por ele fundado teve seu nome substituído por Partido Comunista. Como escreve Galindo, “o projeto de Mariátegui ficara desfeito” (ibidem, p. 108).
Ao apreciar as ideias desenvolvidas por três lideranças revolucionárias, Luiz Carlos Prestes, Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui, que viveram e atuaram no século XX empenhadas na criação de um partido revolucionário destinado a dirigir a luta dos trabalhadores pelo socialismo e o comunismo, podemos observar significativas coincidências. Em especial, destaca-se o esforço pela formação de lideranças populares oriundas das lutas dos trabalhadores e dos movimentos populares que, com base no conhecimento da teoria marxista, fossem capazes de elaborar um programa de transformações radicais baseado na realidade em que atuavam e de acordo com os anseios das grandes massas.
Trata-se de ideias que talvez valha a pena levar em consideração por quem busca hoje novos caminhos para a revolução socialista em nosso país.
Notas
1 Ver, por exemplo, PRESTES, A.L. (2010); PRESTES, A.L (2017).
2 Voz Operária, n. 167, mar. 1981, p. 1-4.
3 Ver, por exemplo, OLIVEIRA, F. (1972); FERNANDES, F. (1975); CARDOSO, F.H. (1972).
4 “Pântano” era a expressão empregada por Lênin, que escreveu: “Praticamente não há partido político com luta interna que prescinda desse termo, que serve sempre para designar os elementos inconstantes que vacilam entre os que lutam”; ver LENIN, Vladimir. Obras escogidas en tres tomos, v.1. Moscou, Progreso, 1961, p. 296, nota.1.
5 PRESTES, Luiz Carlos, “25 de março: o PCB completa 59 anos de lutas pelos interesses dos trabalhadores, pelas liberdades e por todas as causas justas do nosso povo: aprender com os erros do passado para construir um partido novo, efetivamente revolucionário”, Voz Operária, n. 167, mar. 1981, p. 1-4.
6 “Organização: os caminhos da construção de um Partido Novo, efetivamente revolucionário”, Voz Operária, n. 174, out.-nov. 1981, p. 6-7; grifos do original.
7 Idem; grifos do original.
8 Ver, por exemplo, Comitê Estadual Gregório Bezerra (Goiás), Relatório sobre o Encontro Nacional, realizado em Porto Alegre, 5 a 6/10/1985 (documento datilografado fotocopiado, 6 p.; Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, coleção Luiz Carlos Prestes, Manuscritos, PCB-CC, pasta 189).
9 Nesse encontro, os comunistas gaúchos que se alinhavam com as posições de Prestes fundaram o Partido Comunista Marxista-Leninista, o qual, como outras iniciativas do mesmo tipo, não conseguiu consolidar-se. Ver Resoluções políticas do III Encontro Estadual dos comunistas gaúchos que se orientam pela Carta aos comunistas do camarada Luiz Carlos Prestes, jan. 1984 (documento datilografado fotocopiado, 28 p.; Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, coleção Luiz Carlos Prestes, Manuscritos, PCB-CC, pasta 242).
10 PRESTES, L.C., “Declarações” (transcrição não revista), em Resoluções políticas do III Encontro Estadual dos comunistas gaúchos que se orientam pela Carta aos comunistas de Luiz Carlos Prestes, cit.; grifos meus.
11 PRESTES, L.C. Prezados companheiros. Rio de Janeiro, 23 jul. 1987 (documento original, 1 f.; arquivo particular da autora).
12 Idem.
13 LÊNIN, Vladimir, “Exasperado desconcierto (Sobre el problema del Congreso Obrero)”, em Obras completas, t. 12 (Buenos Aires, Cartago, 1907), p. 303. Conforme citado em PRESTES, L.C. Prezados companheiros, cit.
14 GRAMSCI, A. Cadernos de cárcere. V.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 316-8; grifos meus.
15 As citações desse autor apresentadas no texto deste artigo foram traduzidas do espanhol por esta autora.
16 Amauta – revista criada por J.C. Mariátegui, publicada no Peru entre 1926 e 1930, e que expressa a originalidade do seu pensamento em termos de organização da cultura e de construção de uma teoria revolucionária capaz de considerar a especificidade latino-americana. Era vista por seu fundador como um organizador coletivo do partido revolucionário.
Referências bibliográficas
CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1972.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
GALINDO, Alberto Flores. La agonia de Mariategui: la polémica com la Komintern. Lima: DESCO – Centro de Estudios y Promoción del Desarrollo, 1980.
GRAMSCI, A. Cadernos de cárcere. v.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Nacionalismo e marxismo. In: PINSKY, Jaime (org.). Questão nacional e marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1980.
OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Estudos Cebrap. São Paulo, Cebrap, n. 2, out. 1972, p. 3-82.
PRESTES, Anita Leocadia. Os comunistas brasileiros (1945-1958/58): a virada tática na política do PCB. São Paulo: Brasiliense, 2010.
PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015.
PRESTES, Anita Leocadia. A Revolução Russa e a fundação do Partido Comunista no Brasil. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim (org.).1917: o ano que abalou o mundo.1a ed. São Paulo: Boitempo; Ed. SESC SP, 2017, p. 137-149.
PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo: Ed. Alfa-Ômega, 1980.
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Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.
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Anita Leocadia Benario Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres da rua Barminstrasse, em Berlim, na Alemanha Nazista, é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benario Prestes e Luiz Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
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