Vocês sabiam que livro é muito, muito barato?

Por Urariano Mota

Essa descoberta me ocorreu ontem. Para não sair de casa, devido à maldita pandemia, resolvemos eu e Francêsca pedir um almoço. Era domingo, não era? Pois sim. Quando veio a conta de R$107, no cartão, me lembrei logo da compra de 3 livros que eu havia feito pelo cartão de crédito no fim de semana: R$105. Ora, R$107 x R$105. Qual o valor relativo das coisas?

E fiquei entre o encanto e o desencanto. O encanto: eu havia comprado 3 livros que vão me dar um prazer continuado por, pelo menos, 3 meses, porque um deles é bem volumoso, a vida de Simone de Beauvoir. O outro é “somente” a transmissão do conhecimento acumulado por Stephen King na literatura. E o terceiro fala da pessoa íntima de Jane Austen. Olhem, se os livros comprados forem o que prometem, eu ganharei uma transformação da minha vida pelos conhecimentos que terei até o fim dos meus dias. Se eles realizarem o que imagino, serão aquilo que o poeta Keats escreveu, “A thing of beauty is a joy forever”, a beleza de uma alegria para sempre. Se comparo mal, bem mal, os livros comprados ao que comemos no domingo, teremos a alegria de muitos almoços durante muitos e muitos anos, e alimentos que não se transformam em fezes, digamos pior e porcamente.

O desencanto foi a descoberta do que paguei pelo almoço, e que esteve perto de estragar o sabor do peixe. Se eu fosse Marx, falaria do valor-de-uso x valor-de-troca. Mas como não sou o gênio maior de todos os povos oprimidos, posso notar apenas o valor relativo das coisas na minha pequena experiência particular, que vi ontem. Jamais poderia escrever o que o gênio escreveu: “Se abstrairmos do valor-de-uso das mercadorias, resta-lhes uma única qualidade; a de serem produto do trabalho. Então, porém, já o próprio produto do trabalho está metamorfoseado sem o sabermos”. E, para não me meter a comentarista de Marx, falando que o trabalho de um escritor não são as horas trabalhadas para um livro, mas as horas que viveu durante toda uma vida, só me resta lembrar o livreiro e ex-gerente da Livro 7, o senhor Givaldo Gualberto.

Ele me disse uma vez que não aguentava mais ver os novos burgueses reclamarem do preço de livros. Diziam-lhe:

— Isso está muito caro!

E Givaldo, a observar a chave que o bom burguês rodava na mão como prova de status, respondia:

— É, o preço do carro zero é que está barato.

Givaldo compreendia o valor relativo das coisas, que eu somente no mais recente domingo alcancei. Livro é muito, muito barato.

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Soledad no Recife, de Urariano Mota

O livro Soledad no Recife percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar. Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de candidatos a guerrilheiros, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se mais um extermínio do que um confronto armado. A trama real inspira o romance em que Urariano Mota – com a propriedade de que viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 – resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o país naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem volta ao passado. 

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Urariano Mota  é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

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